A luta pela sobrevivência da arte da construção naval

Foi ali, entalada entre o rio e o mar, que Vila do Conde se fez gente, à boleia de uma construção naval em madeira pujante, que moldou a cidade e as suas gentes. Nos velhinhos estaleiros, passados mais de 500 anos, ainda há quem resista e dê cartas. No país e no Mundo. Por quanto tempo?

“Quando formos embora, não fica cá ninguém. Acaba-se tudo”, atira Joaquim Fangueiro, olhando o rio. Sentado na prancha, a abanar as pernas, vai desfiando o rosário de 53 anos nos estaleiros: a era dourada, em que dali saíam 12 novos barcos por ano e eram 117 no ofício, só no estaleiro Samuel & Filhos; a dureza de um trabalho feito ao sol e à chuva, tantas vezes com água pela cintura; o saber fazer ensinado pelos mestres à “catraiada”; as festas do “bota-abaixo”; os rituais com mais de um século.

Hoje, na cidade que foi, outrora, a maior porta de saída de naus e caravelas do reino resta uma dúzia desses carpinteiros navais. Os únicos no país, dos poucos no Mundo. São eles próprios património, guardiões de um saber-fazer que não vem nos livros e que, por ali, foi passando de geração em geração. A batalha já começou. Chama-se “Um porto para o Mundo”, mas a candidatura da construção naval em madeira de Vila do Conde a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO é uma verdadeira corrida contra o tempo.

“Vai-se acabar esta arte bonita”, lamenta Joaquim, olhando o martelo, que ganhou aos dez anos quando, decidido a não ser pescador, arranjou emprego “como rapaz” nos estaleiros. Ferramenta não se troca nem se empresta e, por isso, como Joaquim, o martelo resistiu ao tempo.

O pai tinha um barquito e a pesca era sina certa, mas o “rapazito” fintou o destino e, na primeira fila, assistiu aos anos pujantes da construção naval em madeira de Vila do Conde. Nos anos 1960 e 1970, o “boom” na pesca, nos 1980 a entrada na União Europeia e os apoios à modernização da frota. Os estaleiros cresceram, cresceram, cresceram e fizeram jus à Vila do Conde dos Descobrimentos.

Há mais de uma década que os estaleiros de Vila do Conde se dedicam apenas a reparações. Os novos barcos são de alumínio ou de fibra de vidro

Depois, vieram os incentivos ao abate e, em 20 anos, a frota pesqueira ficou reduzida a menos de metade. A opção por barcos de alumínio e fibra fez o resto. Quando os estaleiros deixaram o centro da cidade para se mudarem para a Azurara, já só eram 90.

Agora, dos 117, no Samuel & Filhos, restam 20 e os carpinteiros navais contam-se pelos dedos de uma mão. Ali ao lado, resistem ainda o Barreto & Filhos e a Sicnave e, na Poça da Barca, os Irmãos Viana. Ao todo, empregam 60 pessoas. Não mais de “uma dezena de velhos” carpinteiros, quase todos à beira da reforma.

Joaquim põe-se a pé num salto, disposto a mais umas marteladas. O “Memórias do Douro” não pode esperar e “tristezas não pagam dívidas”.

“Antigamente aprendíamos com os velhos. A ver, a ouvir. Agora, não ensinamos nada. É uma pena!”, suspira Carlos Santos que, ali ao lado, prego numa mão, martelo na outra, assenta novas tábuas de madeira no barco rabelo, ali construído em 2002. É um dos quatro que saíram do Samuel & Filhos. Está, por estes dias, em reparação.

Só reparações

Há mais de uma década que os estaleiros de Vila do Conde se dedicam apenas a reparações. Os novos barcos – “poucos, muito poucos” – são de alumínio ou de fibra de vidro.

Que o diga Bruno Barreto. Aos 41 anos, ele e a irmã, Luísa, tocam o negócio de família no Barreto & Filhos. O pai, Henrique, foi aprendiz no Samuel. Era lá, à época, a “escola naval”. Bruno quis seguir-lhe as pisadas. No hangar há, por estes dias, uma traineira da sardinha em construção. Em alumínio. Entre a centena de clientes, a madeira ainda domina, mas “só para reparações”. A mão de obra, essa, é que escasseia. “Os novos vêm e passados dois dias desaparecem. Entre fevereiro e julho, tive aí uns 20 assim”, conta. É duro, sujo, rude. Ninguém quer.

Os mestres vão morrendo e, com eles, morre aquele saber-fazer acumulado ao longo de séculos. “Em toda a Europa se está a desativar a madeira”, observa José Carmo, ele que com o primo Samuel gere, hoje, o estaleiro Samuel & Filhos, fundado pelo avô em 1948. Dói-lhe, dói-lhe muito, ver o declínio.

António José Carmo, Mário Rodrigues e Bruno Barreto são guardiões de um saber-fazer que não vem nos livros – foi passando de geração em geração

Mas Vila do Conde é, apesar de tudo, ainda hoje a “referência” e o “grande resistente”. Ali chegam barcos rabelos, marítimo-turísticos do Gerês, de Aveiro e do Douro, embarcações de pesca de Viana ao Algarve e até do norte de África.

“Sempre que é uma reparação mais ‘a fundo’, vêm para Vila do Conde”, explica. Por ali passam, por ano, duas centenas de barcos, num trabalho que vive ao sabor das paragens da pesca e da época baixa no turismo. “Dos 411 barcos de pesca existentes em 2015 [dos 12 aos 18 metros], 292 são de madeira. Daqui a uns anos, se não se fizer nada, não vai haver gente habilitada para os reparar”, completa o primo António José Carmo.

A sala do risco

António José é neto do velhinho Samuel. Morou sempre paredes-meias com o rio e, por isso, aos cinco anos, as brincadeiras eram ali, no meio de tábuas, pregos, pranchas e muito serrim, entre os estaleiros do avô e os do velho Jeremias.

“Em 80 anos, a nossa empresa fez 550 barcos com mais de 12 metros”, diz, orgulhoso de um passado que se mistura com a história de Vila do Conde.

A geometria dos barcos sempre o fascinou. Tinha jeito para os “rabiscos”. Apurou-o nas aulas de desenho técnico, mas estava longe de se imaginar nos estaleiros. Em 1981, regressado da Marinha, o projeto passou a ser obrigatório para barcos com 12 a 15 metros. O estaleiro da família tinha dez em construção sem desenho. António José agarrou-se à tarefa.

Eram já o pai e o tio quem, à época, assumia a sala do risco no Samuel & Filhos. Era um lugar especial. Entrava uma ideia e, duas semanas depois, saía um plano geométrico do barco à escala real. Pelo meio ficavam contas, ângulos, muitos riscos, cálculos de peso e centro de estabilidade, desenhados de gatas no chão, por homens que não tinham mais do que a quarta classe. Por ali, depois, fazer um barco era como “montar uma casa de legos com as instruções ao lado”. Poupavam “dias e dias” no corte das madeiras, ganhava-se precisão. “O meu pai levava para a sala do risco quatro ou cinco aprendizes por semana. Ia fazendo, punha-os a tirar medidas e, ao terceiro dia, já sabia os que iam dar mestres”, recorda, sorrindo.

Séculos de história

A história da construção naval em madeira de Vila do Conde vem de longe. Dali saíram, no século XV e XVI, embarcações para todas as carreiras marítimas. “Era o maior construtor de naus do reino”, salienta António José, citando os estudos de Amélia Polónia, muitos guardados no Centro de Documentação dos Portos Quinhentistas, hoje instalado na antiga Alfândega Régia. Vila do Conde “dava cartas”. Misturavam-se técnicas mediterrânicas e nórdicas. Os barcos de hoje “beberam muito desses cinco séculos de evolução”.

Em 1987, para assinalar os 500 anos da descoberta do Cabo da Boa Esperança, foi construída a réplica de uma caravela. Vila do Conde foi a escolha natural. A “Bartolomeu Dias” é, hoje, barco-museu em Mossel Bay, na África do Sul. Dali, saíram mais duas: a “Boa Esperança”, para o Algarve (1989), e a “Vera Cruz”, para Lisboa (2000). Os projetos são do almirante Rogério D’Oliveira. O risco de António José e do pai.

Dois anos mais tarde, António José ainda riscou a réplica de uma nau de 200 toneladas. É hoje museu flutuante na zona ribeirinha de Vila do Conde. António José mora mesmo ao lado. A nau lembra-lhe todos os dias esse “dever de partilhar o que recebeu”.

Três sobreviventes

Hoje, no país, sobram três homens capazes de riscar um barco: António José Carmo, José Viana (o dono dos estaleiros Irmãos Viana) e um antigo encarregado já reformado do Samuel & Filhos.

António José desenhou até 2004, altura em que acabou o “Novo Rosa Clara”. A traineira de 18 metros anda à pesca em Sines. Foi o último barco em madeira, construído de raiz, em Portugal. Sem trabalho, deixou o Samuel & Filhos em 2006. Teve uma loja de bicicletas, depois um restaurante, mas era da madeira que sentia falta. Dedicou-se aos livros, determinado a não deixar morrer a arte que pôs Vila do Conde no mapa.

Na Casa do Barco, na zona ribeirinha, está, agora, o desenho de um barco de pesca de meados do século passado, cuja sala do risco recriou, em 2017, no âmbito do projeto “Um porto para o Mundo”.

“Daqui a uns anos, se não se fizer nada, não vai haver gente habilitada para reparar os barcos de madeira”, garante António José Carmo

“É a nossa identidade que se está a perder”, solta, numa espécie de “grito de alerta”. António José está a traduzir, em desenho técnico, o “Livro da fábrica das naus”, de 1580, um dos primeiros tratados portugueses de arquitetura naval, escrito pelo padre Fernando Oliveira. Encontra-lhe paralelismos: no linguajar, nas peças, no processo de construção.

Há quatro anos sem resposta

Consciente de que, se nada for feito, o património se vai perder, a Câmara de Vila do Conde submeteu, a 23 de agosto de 2016, a candidatura da construção naval em madeira ao Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial. É condição essencial para a candidatura à UNESCO – “o grande objetivo”. O projeto “Um porto para o Mundo”, de que o teatro comunitário de rua que todos os anos se faz em Vila do Conde é a face mais mediática, visa, por um lado, salvaguardar técnicas e ferramentas. E, por outro, garantir que este saber-fazer se continua a transmitir às gerações mais jovens.

A antropóloga municipal Ivone Pereira desdobra-se em pesquisa, recolhas, entrevistas e filmagens. António José Carmo tem levado a construção às escolas. É consultor do projeto e parceiro de equipas de investigação nacionais e estrangeiras. Amélia Polónia preside à comissão científica.

Mas, quatro anos depois, e “apesar da insistência”, sublinha a presidente da Câmara, Elisa Ferraz, a Direção-Geral do Património Cultural “ainda não se pronunciou”. As três caravelas provaram que a construção de réplicas históricas é um mercado e Vila do Conde ainda pode agarrá-lo. A nau recebe, anualmente, milhares de visitas de todo o país. O turismo cresce, à boleia da História e dos desportos náuticos.

Em 2016, a vinda do “Shtandart” faria renascer a esperança. A fragata russa do século XVIII, misto de museu e escola náutica, que, há 21 anos, percorre o Mundo, esteve cinco meses em reparação no Barreto & Filhos. Fascinado com o saber dos estaleiros, o dono, Vladimir Martus, sonha construir em Vila do Conde o “Cutty Sark”, a última das embarcações da Rota do Chá. O projeto obriga a intervenções na foz do rio Ave – por culpa das areias, o “Shtandart”, com 33 metros, saiu dali “à rasquinha” -, mas está empancado na burocracia.

A Câmara recusa desistir. Agora, trabalha no projeto do futuro Centro de Artes Náuticas, que ficará na antiga Seca do Bacalhau. Será um misto de museu – cruzando a história da construção naval com a secagem do bacalhau -, centro interpretativo e escola. Aquele espaço, que por ser grande foi tantas vezes usado como sala do risco pelos estaleiros, terá uma oficina destinada à formação e uma pequena residência para acolher construtores navais nacionais e estrangeiros, promovendo a partilha de saberes. Há já um estaleiro norueguês parceiro do projeto.

Recuperar saberes

De volta ao estaleiro, já na plataforma, o “Notorious Classic” prepara-se para regressar ao mar, depois de dois meses na Sicnave. Andava à pesca de amêijoa. Agora, foi convertido em barco turístico. “Sinais dos tempos”, constata Mário Rodrigues, o dono da Sicnave. Também ele começou no Samuel & Filhos. Já lá vão 57 anos. Não fosse o filho ter-lhe seguido as pisadas e “já tinha fechado a porta”.

Mário Rodrigues

O barco a descer traz à memória as festas do bota-abaixo. Joaquim recorda-se bem desses dias. “Vinha toda a gente ver.” Nunca se saía à terça nem à sexta, que dava azar. Na proa, a madrinha – “sim, porque o barco tem sempre madrinha” – partia uma garrafa de champanhe e o padre benzia a embarcação.

Hoje, já não é a gravidade e a força de braços que leva o barco à água. A plataforma é elétrica. O “Notorious Classic” desce em silêncio, mas, baixinho, os velhos carpinteiros desejam-lhe boa sorte e já agora que volte sempre, para que ali o trabalho nunca falte. Haja quem o faça.