Opinião de Germano Marques da Silva, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
A crise da justiça não é de agora, é de sempre. A vontade constante de dar a cada um o que lhe pertence (Ulpiano) alimenta a tensão eterna entre os ideais da Justiça e o Direito, por uma parte, e entre a Lei e a sua aplicação, por outra. A crise, aqui e agora, não resulta da lei votada e promulgada em conformidade com os valores e regras que a Constituição democrática consagra, é fruto da sua má aplicação. Mesmo uma má lei, e também as há atabalhoadas, quando bem interpretada e aplicada no espírito do sistema, ou seja, em conformidade com a dignidade da pessoa humana que constitui a pedra basilar da nossa República, ainda pode permitir realizar a Justiça, mas uma boa lei mal interpretada dificilmente conduz ao bonum et aequum que caracteriza o Direito justo. Não são precisas reformas profundas das leis, bastam atualizações para acompanhar a dinâmica social; precisa é a disposição dos meios materiais e humanos suficientes e capazes para que as leis que temos, em geral boas leis, possam ser bem executadas e em tempo razoável porque a aplicação da lei fora de tempo raramente conduz a decisões justas.
Nunca teremos boa Justiça se os meios forem insuficientes e são-no. São-no desde logo no equipamento frequentemente obsoleto, na falta de magistrados e funcionários adequados ao volume de processos que lhes são atribuídos – basta pensar no que se passa com a pendência nos tribunais administrativos e fiscais e com as investigações criminais a arrastar-se por anos a fio! -, mas também, e não menos relevante, no que respeita à formação de todos os agentes da Justiça. A boa execução da lei pressupõe que quem a administra possui o sentido da Justiça, que é uma sensibilidade extremamente exigente, um habitus mentis, que precisa de ser cultivada e se afina com a experiência da vida, a imitação dos maiores, a humildade intelectual e muito estudo. Não compreendo, por isso, que perante as dificuldades por carência de magistrados se siga o caminho mais fácil: o encurtamento da duração dos cursos de formação como foi decretado ainda agora pelo Decreto-Lei n.º 115/2021, de 15 de dezembro. Também o acesso ao CEJ pela via profissional necessita de ser revisto porque quem não aprende na escola, muito dificilmente aprende depois, ademais com cursos encurtados!
A deficiência na formação dá azo à ignorância justiceira. O justiceiro ignora os princípios e valores do sistema legal, abraça o populismo para ser mediaticamente aplaudido, abusa da irresponsabilidade estatutária, reclama das leis e dos políticos pelo excesso de direitos e garantias, desconhece que foi a falta de direitos e suas garantias que originou as monstruosidades jurídicas e humanas da primeira metade do século passado. Ainda há magistrados em Portugal, mas por este andar é de recear que a justiça legal venha a ser substituída pela aequitas cerebrina própria dos incompetentes, o que constitui o mais grave perigo do nosso tempo nos domínios da Justiça.
A lei é como a pauta da música. A insuficiência e desafinação dos instrumentos, a carência dos músicos e a má formação dos executantes fazem má a boa música. Assim é também com a lei: a justiça está na lei, mas a falta de meios e a deficiente formação dos seus agentes é causa da crise. O Direito é a arte da Justiça, mas para ser artista do Direito e da Justiça é preciso ter sensibilidade humana e jurídica, o que pressupõe boa formação jurídica, mas não só! Não são precisas mais leis, o que é preciso é que os serviços da Justiça sejam dotados dos meios materiais e humanos necessários e se cuide escrupulosamente da boa formação dos magistrados, polícias e funcionários.
Este artigo de opinião é parte integrante de um trabalho publicado na edição impressa da Notícias Magazine, em que desafiámos vários pensadores, de diferentes áreas, a lançar o ano de 2022. Germano Marques da Silva abordou o ano que aí vem na perspetiva da Justiça.