A Justiça em 2022 – o que não podemos esperar, mas devíamos

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Opinião de Germano Marques da Silva, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.

A crise da justiça não é de agora, é de sempre. A vontade constante de dar a cada um o que lhe pertence (Ulpiano) alimenta a tensão eterna entre os ideais da Justiça e o Direito, por uma parte, e entre a Lei e a sua aplicação, por outra. A crise, aqui e agora, não resulta da lei votada e promulgada em conformidade com os valores e regras que a Constituição democrática consagra, é fruto da sua má aplicação. Mesmo uma má lei, e também as há atabalhoadas, quando bem interpretada e aplicada no espírito do sistema, ou seja, em conformidade com a dignidade da pessoa humana que constitui a pedra basilar da nossa República, ainda pode permitir realizar a Justiça, mas uma boa lei mal interpretada dificilmente conduz ao bonum et aequum que caracteriza o Direito justo. Não são precisas reformas profundas das leis, bastam atualizações para acompanhar a dinâmica social; precisa é a disposição dos meios materiais e humanos suficientes e capazes para que as leis que temos, em geral boas leis, possam ser bem executadas e em tempo razoável porque a aplicação da lei fora de tempo raramente conduz a decisões justas.

Nunca teremos boa Justiça se os meios forem insuficientes e são-no. São-no desde logo no equipamento frequentemente obsoleto, na falta de magistrados e funcionários adequados ao volume de processos que lhes são atribuídos – basta pensar no que se passa com a pendência nos tribunais administrativos e fiscais e com as investigações criminais a arrastar-se por anos a fio! -, mas também, e não menos relevante, no que respeita à formação de todos os agentes da Justiça. A boa execução da lei pressupõe que quem a administra possui o sentido da Justiça, que é uma sensibilidade extremamente exigente, um habitus mentis, que precisa de ser cultivada e se afina com a experiência da vida, a imitação dos maiores, a humildade intelectual e muito estudo. Não compreendo, por isso, que perante as dificuldades por carência de magistrados se siga o caminho mais fácil: o encurtamento da duração dos cursos de formação como foi decretado ainda agora pelo Decreto-Lei n.º 115/2021, de 15 de dezembro. Também o acesso ao CEJ pela via profissional necessita de ser revisto porque quem não aprende na escola, muito dificilmente aprende depois, ademais com cursos encurtados!

Germano Marques da Silva, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
(Foto: DR)

A deficiência na formação dá azo à ignorância justiceira. O justiceiro ignora os princípios e valores do sistema legal, abraça o populismo para ser mediaticamente aplaudido, abusa da irresponsabilidade estatutária, reclama das leis e dos políticos pelo excesso de direitos e garantias, desconhece que foi a falta de direitos e suas garantias que originou as monstruosidades jurídicas e humanas da primeira metade do século passado. Ainda há magistrados em Portugal, mas por este andar é de recear que a justiça legal venha a ser substituída pela aequitas cerebrina própria dos incompetentes, o que constitui o mais grave perigo do nosso tempo nos domínios da Justiça.

A lei é como a pauta da música. A insuficiência e desafinação dos instrumentos, a carência dos músicos e a má formação dos executantes fazem má a boa música. Assim é também com a lei: a justiça está na lei, mas a falta de meios e a deficiente formação dos seus agentes é causa da crise. O Direito é a arte da Justiça, mas para ser artista do Direito e da Justiça é preciso ter sensibilidade humana e jurídica, o que pressupõe boa formação jurídica, mas não só! Não são precisas mais leis, o que é preciso é que os serviços da Justiça sejam dotados dos meios materiais e humanos necessários e se cuide escrupulosamente da boa formação dos magistrados, polícias e funcionários.

Este artigo de opinião é parte integrante de um trabalho publicado na edição impressa da Notícias Magazine, em que desafiámos vários pensadores, de diferentes áreas, a lançar o ano de 2022. Germano Marques da Silva abordou o ano que aí vem na perspetiva da Justiça.