A fobia de agulhas em tempos de vacinação

Há diversas abordagens que podem ajudar a arrumar de vez com a fobia de agulhas

Estudos americanos garantem que, à custa do medo de serem picados, 16% dos adultos optam por não se imunizar contra a gripe. E em relação à covid, como vai ser?

A descrição que Ana Rita Peixoto, 27 anos, faz dos momentos que lhe reservam encontros imediatos com as agulhas encaixava bem num trecho arrancado a um filme de terror. “Quando sei que vou ter de ir tirar sangue já vou nervosa. Mas quando me sento naquela cadeira é o fim. Começo com suores frios, fico mesmo muito ansiosa, muitas vezes chego a desmaiar.”

A bracarense não consegue apontar especificamente a origem do trauma, mas está certa de que é algo que a acompanha desde que se lembra de ser gente. “Eu tenho hipotiroidismo, que foi descoberto logo aos dois anos, e desde então que faço análises de seis em seis meses. Lembro-me de ser pequena e de começar a tremer assim que via a agulha.” O medo foi-se acentuando com uma ou outra experiência traumática.

Como aquela vez, tinha ela uns 15 anos, em que teve de ir tirar sangue em dia de greve dos enfermeiros. “A senhora [a enfermeira que lhe tirou sangue] já estava lá há imensas horas e aquilo não correu bem. Ainda por cima não é nada fácil tirar-me sangue. As minhas veias parece que fogem, ou se escondem, ou desaparecem. Eu sei lá”, conta Ana Rita, com graça à mistura. Correu tão mal que saiu de lá com quatro picadas, três desmaios a registar, soro pelo meio, até um saco de gelo sobre o braço para conseguir ir para casa.

Outras vezes houve em que saiu do laboratório sem levar a missão a bom porto. E ainda houve um episódio em que levou com ela um namorado, para a apoiar (achava ela…). Só que também não correu bem. “Não estavam a conseguir picar-me e ele começou a ver-me a transpirar, a tremer… desmaiou ele. Às tantas era eu a dizer ‘tem calma, tem calma’”, prossegue, sem perder o sentido de humor.

Nem tudo é mau, garante. Dentro do medo que a invade de cada vez que se depara com as agulhas, jura que agora já não é tão grave. “Entretanto tive de arranjar maneiras para me controlar mais. Uma coisa importante é que eu tenho que ver o momento em que me vão picar. A incerteza é o pior.” Mesmo assim, confessa que anda há um mês para fazer umas análises que foram inconclusivas – e que portanto terão de ser repetidas.

E como vai ser quando for chamada a tomar a tão celebrada vacina para a covid-19? “Pois, já pensei nisso, já. A minha esperança é que esteja tudo vacinado até lá e não passe por mim”, diz, meio a sério, meio a brincar. E continua, como que num monólogo interior que inadvertidamente lhe sai em voz alta. “Se for realmente necessário tomo. Mas depois lembro-me que ainda por cima são duas doses. Só espero que não seja como a do colo de útero, que doeu imenso”, partilha Ana Rita, ainda sem uma decisão final tomada.

20% a 30% da população tem medo de agulhas

O pânico de agulhas que atormenta a jovem bracarense – a chamada aicmofobia – é mais comum do que o que se possa pensar. Um estudo conduzido pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, garante mesmo que 20% a 30% da população americana entre os 20 e os 40 anos tem medo de agulhas. Mas medo e fobia são coisas bem distintas, conforme realça o pedopsiquiatra e psicoterapeuta Ivo Peixoto.

“O medo de agulhas é uma reação universal à dor. Já a fobia é uma experiência emocional de medo e evitação que causa perturbação. Implica um diagnóstico médico-psiquiátrico e é quantitativa e qualitativamente diferente do medo normal”, distingue o especialista. E traduz-se em quê? Depende muito. Pode ir desde os episódios de choro intenso à agressividade. “Ou pode haver uma reação de ansiedade tão intensa que o corpo cede, desmaia.”

Importa perceber também a origem do problema. “Geralmente este tipo de fobia resulta de experiências prévias, que começam na infância”, sublinha o especialista. E o zelo excessivo de pais hiperprotetores pode ser o maior dos obstáculos. “Quando se tenta preparar demasiado a criança, falar demasiado nisso, dizer que tem de ser muito corajoso, pode estar-se a fazer com que os mais pequenos processem a experiência de forma traumática.”

A ideia será, pois, encontrar um meio termo saudável. Explicar e desmistificar sem fazer disso um bicho de sete cabeças. “Filtrar a nossa própria ansiedade”, resume o pedopsiquiatra, apontando para o papel importante que a comunicação social também pode ter neste processo.

De resto, há boas notícias. No caso, as diversas abordagens que podem ajudar a arrumar de vez com a fobia de agulhas. “Pode recorrer-se a terapia cognitivo-comportamental, a uma terapia específica para trauma ou, em crianças mais sugestionadas, pode mesmo apostar-se na hipnose.”

Uma estratégia possível, no caso das crianças, passa, por exemplo, por introduzir uma componente de distração associada àquele momento. Seja com brinquedos, com simulações, com música. “Há várias estratégias de distração que podem ajudar a associar aquela experiência a um momento mais pacífico.” Sendo certo, assegura Ivo, que “quanto mais cedo se abordar o problema, mais cedo se terão resultados”.

Um entrave à imunidade de grupo?

Voltando aos Estados Unidos, e ao tal estudo da Universidade de Michigan, recentemente destacado pelo jornal “Washington Post”, salta à vista outro dado relevante. Em 2018, 16% da população estudada terá evitado tomar a vacina da gripe à custa do medo das agulhas. Mary Rogers, professora de saúde pública reformada e co-autora do referido estudo, antecipa que “se o mesmo fenómeno acontecer com a vacina da covid-19 a metade desta taxa, seria um número considerável de adultos a evitar a vacina, o que poderia impedir os esforços de imunidade de grupo”.

A questão impõe-se, portanto, sobretudo face ao processo de imunização em curso: em Portugal, há receios de que a aicmofobia constitua um entrave à vacinação (e à respetiva imunidade de grupo)? Confrontado com a questão, Francisco Ramos, coordenador do plano nacional de vacinação, respondeu com um lacónico “não sei”. “É tudo o que posso dizer. Não sei.” Já Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, não se mostra preocupado.

“Se pode [afetar a vacinação]? Pode. Mas acho que apesar de tudo a população portuguesa já demonstrou que isso não é um impedimento. Temos uma boa cobertura vacinal e não prevejo que haja problemas a esse nível. Haverá seguramente pessoas que têm receio de agulhas, mas é um pequeno preço a pagar para obter uma proteção que é seguramente mais importante.”