Rui Cardoso Martins

A família castanha

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Erros, golpes do destino, até equívocos podem juntar pessoas. Há um fio frágil nas famílias. No banco dos réus, três mulheres em escadinha: a mais velha, de rabo-de-cavalo branco e tremuras, a do meio, com um Rato Mickey tatuado perto do cotovelo, e a da ponta esquerda, uma rapariga alta, que veste uma camisola de “Stitch”, que é um estranho ser azul, fofo mas monstruoso, que partilha aventuras no Haiti com uma menina dos desenhos animados. A mais velha é a mãe das outras duas. Parece a avó. Engana-se e diz “sou solteira… sou viúva”. Não faz nada. A filha do meio está no desemprego, a mais nova no centro de emprego, onde lhe ensinam manicura, pedicura, depilação.

Nenhuma delas, lê a juíza, tem antecedentes criminais. Mas agora partilham a mesma acusação.

Porque no último Natal do mundo normal, no foragido ano de 2019, quando o Mundo se preparava para sofrer não sabia o quê, foram detidas numa loja no Centro Comercial Colombo, em Lisboa, com sacos cheios de sapatos Nike, estojos de maquilhagem, perfumes, roupas. “Após, as arguidas colocaram os artigos em sacos” e saíram sem pagar, “fazendo-os seus”. Fala a do meio:

– Eu fui com a minha irmã, a Simara. A gente foi comprar uma prenda para a minha sobrinha. Encontrámos à porta do Colombo a minha mãe e a minha ex-cunhada. Eu não tirei nada! Eu fui só procurar a minha mãe, quando de repente ouço um homem…. “pára essa menina que tem o casaco cinzento!”, e a voz de outro homem… “não, ela está de branco!” Eu estava dentro do estabelecimento, mas deixei de as ver. A minha mãe é que fez isto. Eu nem pus o pé fora da porta, eu não passei pelas caixas. Fui a uma porta das traseiras só assim espreitar…

– Quando pretendia sair do estabelecimento não tinha compras?

– Não tinha nada, eu até disse ao segurança: quer ver a minha mala?

Agora interrogam a mãe. A doença vem de dentro dela até à ponta dos dedos, que tremem como formigas à volta da presa. Ela teve uma cúmplice, a ex-nora, mas as filhas não têm culpa, diz a mãe.

– Levava sacos?

– Levava um saco só.

– E ficou com estas coisas?

– Foi a primeira vez, eu nunca fiz aquilo.

– Portanto a Simara e a Ana não tinham nada com isso.

– Nada, fui eu.

– O que é que pensava fazer?

– Deu-me, sei lá, na cabeça.

– Era para vender?

– Era para mim. Eu tirei também por causa da droga.

– A senhora é toxicodependente?

– Sim.

– O que é que consome?

– Castanha.

– Heroína?

– Sim. É com um pacote, depois furo e fumo. E quando tenho pouco… Eu estava com o coiso da droga.

– Está arrependida?

– Estou.

Depois, num rumor de tristeza, arrepiante como um móvel que risca o chão nas mudanças, fala a mais nova das mulheres:

– Eu vivia com a minha mãe, mas cada uma fazia a sua vida. Era o tempo do Natal e a minha filha pequena fazia anos.

Dentro da loja, a mãe separou-se das filhas. Quando foi ter com a mãe, foi apanhada pelo segurança da loja.

– Ele ficou a teimar que eu tinha saído com três sacos. Mas eu não saí com saco nenhum! Aquele que tinha, tinha no braço.

– Sobre a sua mãe… Tem conhecimento de alguma adição, vício? Enfim, se tem conhecimento, não é se já viu!, pergunta o advogado.

– Tenho. E foi por isso mesmo que eu me afastei dela.

– Sabe desde quando é que a sua mãe…

– Isso já vem desde que eu estava dentro dela e tudo!

Simara soluça e limpa a água dos olhos. A mãe tem os olhos secos e cavados e castanhos, como se não tivessem esclerótica, sem massa branca.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)