A Cultura como arma contra o ódio e a estupidez

A arte tem o seu papel num combate difícil e complexo. A desconstruir e a interpretar a realidade, a questionar o Mundo e a inquietar a Humanidade, a esventrar entranhas de discursos agressivos, a criar pontes nas divergências. Como sol na terra. E sem sermões.

No seu último filme, Regina Pessoa, realizadora de animação, faz uma homenagem ao seu tio Tomás. Um homem bom, peculiar, cheio de manias, obcecado por cálculos, tio solteirão sempre gentil com as crianças que brincava e, ao mesmo tempo, transmitia os princípios que, para si, eram éticos e essenciais na conduta do ser humano. Passava papel e esferográficas aos sobrinhos e dizia-lhes em forma de equação: “Meninos, o mais importante da vida é a sabedoria, o conhecimento… sem isso não há nada! Porque Estupidez+Malvadez=Ladrão”. Regina criança, Regina adulta, nunca esqueceu a frase de um dos principais educadores da sua infância. “Essa fórmula ecoou na minha cabeça.” E é essa equação que repete quando o assunto é amor e cultura e o combate ao ódio e à estupidez. “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” é o nome do seu filme de 13 minutos que ganhou vários prémios internacionais. O tio não é um mero atalho para falar do poder da Cultura. É mais do que isso. A arte, nas suas diversas expressões, tem um papel ao explorar ódios e tensões. “E é muito importante que assim aconteça, pois a obra que aborda esse ódio vai fazer um trabalho de desconstrução, de interpretação, tentando fazer a análise e o desenho do seu percurso, as razões por detrás das razões, as manipulações, etc..” A obra, para Regina Pessoa, “é como um reflexo devolvido de nós próprios e de uma realidade anamórfica que já não conseguimos ler corretamente.”

O músico Dino d’Santiago traz Aristóteles para a conversa. Questionado sobre a diferença entre homens cultos e homens incultos, o filósofo grego respondeu: “A mesma diferença entre os vivos e os mortos.” A cultura e o amor são armas contra o ódio e a estupidez? O músico e compositor, que acaba de lançar o álbum “Badiu”, tem ideias claras. “Somente o amor pode combater o ódio e a sensatez travará a estupidez. A Cultura é o cessar-fogo da nossa existência”, responde. A Cultura tem uma costela mobilizadora, certo, ainda assim, em seu entender, é preciso perceber o seu verdadeiro papel não apenas numa sociedade, mas para a Humanidade. Até porque, muitas vezes, refere, ela é utilizada pelos governos “como um instrumento democrático e agregador, servindo as suas agendas e os seus timings.” “Mas, na hora do verdadeiro aperto, a Cultura é órfã e cai no esquecimento.”

O amor sente-se, a Cultura faz pensar. “Como qualquer pessoa pode pensar que os negros são seres inferiores, ou não sabem a língua inglesa, depois de ouvir Martin Luther King? É quase impossível.” “Ao lermos ‘O diário de Anne Frank’ começamos a perceber o efeito do Holocausto, o antissemitismo, sobre uma pessoa, extrapolamos e percebemos o efeito em todos nós.” “Só uma pessoa com uma alma morta não começa a perceber.” O escritor Richard Zimler fala do poder da literatura na luta contra o ódio e a estupidez. “O mais importante feito da literatura é a tendência natural de criar empatia e solidariedade com as pessoas.” Criar uma relação afetiva com o narrador, com o autor, com uma personagem. Abrir um livro, entrar na história, ver o Mundo a partir dos olhos de outra pessoa. Tudo isso cria empatia e há livros que marcam, há autores para a vida. “Qualquer romance sério já faz parte da luta contra o ódio”, diz.

A Cultura inquieta, a Cultura questiona, a Cultura abre caminho à harmonia, ao entendimento do outro e do Mundo ao redor. “A Cultura deverá ser, ela mesma, um combate permanente para observar, para entender e para alertar dos desvios todos que, através dos tempos, os seres humanos fizeram da sua relação com o Mundo e com os outros”, observa António Capelo, ator, encenador, professor de teatro. “Todas as formas de arte são necessárias para esta função tão fundamental: entender os nossos dias à luz dos ensinamentos da História, mas compreender que o Mundo é mais vasto do que qualquer um de nós e vai para além dos nossos dias e deve acrescentar futuro à Humanidade”, sublinha.

Se há desequilíbrios nas inter-relações humanos-mundo-vida, a Cultura deve então ser um alerta. “A arte questiona, inquieta, lembra o nosso papel no Mundo e ativa os nossos sentidos para estarmos mais atentos e mais ativos.” A arte ajuda, mas esse equilíbrio, realça António Capelo, “só será completo quando nos sentirmos mais presentes e quando dermos mais valor não só à nossa vida, mas a todas as vidas.”

O artista plástico Alexandre Farto, conhecido por Vhils, perpetua no cimento de paredes, muros e chãos, rostos anónimos e caras conhecidas em várias partes do Mundo. Esculpiu o rosto de Saramago junto ao mar na praia da Lourinhã, trabalhou no mural de homenagem aos profissionais de saúde, que combatem o novo coronavírus, no Hospital de São João, no Porto. As suas paredes são tributos cravados e dedicados a comunidades. “A arte tem o poder de criar pontes e aproximar pessoas que têm visões diferentes, tem o poder de desarmar as pessoas.” De debater divergências, de aproximar, de escutar, sobretudo numa altura em que, diz, “está tudo polarizado”.

A homenagem do artista Vhils ao escritor José Saramago, na praia da Lourinhã. Mais uma iniciativa do centenário do nascimento do Nobel da Literatura
(Foto: DR)

Uma das funções é justamente criar ligações nessa partilha da obra que se faz e se mostra ao Mundo, que não se esconde num quarto ou numa gaveta. “Há sempre um motivo construtivo para criar e partilhar. A Cultura é um caminho aberto e tudo aquilo que cria, cria para questionar o status quo e o nosso dia a dia”, comenta Vhils.

Lugar de utopias, laboratório de experiências

Rui Paixão é ator, é palhaço, é performer e vê na cultura um espaço social de encontro, de debates mais amplos, para além da ciência, da política, da religião. Um lugar onde se ensaia o Mundo e onde, diz, se constrói e desenvolve ferramentas e armas para o verdadeiro combate no exterior. “Frequentemente é o lugar preferido de utopias e um lugar confortável para as matérias impalpáveis, como o amor, por exemplo. Nesse sentido, a Cultura é um espaço privilegiado para testar os erros da sociedade, quase como um laboratório de experiências, uma incubadora ou um viveiro.” Nas suas expressões e dimensões, cria-se uma realidade paralela, experimentam-se todas as possibilidades. “E através destas ‘tentativas-erros’ conseguimos informar o Mundo real dos caminhos mais acertados a seguir.” O ator deixa um reparo. “Vivemos num tempo em que já é impossível separar a política do capitalismo e todos sabemos bem o que isso afeta nas desigualdades sociais.”

Uma Humanidade sem educação e sem cultura, tantas vezes sinónimos uma da outra, seria impensável e a Cultura, para Afonso Cruz, “é a única arma contra tudo e o único remédio contra tudo”. O escritor, músico, realizador e ilustrador tem um novo livro “Sinopse de amor e guerra”. Dois amantes no Berlim pós-guerra, o destino, a paixão, o amor. “Pode o amor saltar muros sem que alguém se magoe?”, pergunta.

O debate não é simples, tão-pouco linear. “A Cultura pode também promover o ódio. Dificilmente se sustém, mas não quer dizer que não o faça e a História está cheia de exemplos que, a seu tempo e espaço, foi responsável por tragédias imensas.” A Cultura pode servir o mal nas suas piores manifestações, a Alemanha nazi, por exemplo. “Mas, a longo prazo, acredito em absoluto na educação e na cultura, e que os casos trágicos foram na realidade uma ausência de sabedoria no seio da Cultura”, observa o escritor.

Afonso Cruz recorda um mito grego, Dino d’Santiago relembra palavras de Bell Hooks, pseudónimo da escritora Gloria Jean Watkins, feminista, ativista, antirracista, norte-americana, que morreu há poucas semanas, que dizia que “no momento em que escolhemos amar, começamos a mover-nos contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a mover-nos em direção à liberdade, a agir de formas que nos libertem e aos outros”. Dino acrescenta: “A Cultura tem o poder nesse combate, se for instrumento do amor”.

“A cultura é o cessar-fogo da nossa existência”, diz Dino d’Santiago
(Foto: Filipa Bernardo / Global Imagens)

Afonso Cruz vai à Grécia. Epimeteu criou o ser humano e Prometeu corrigiu o que o irmão fez. Epimeteu significa, literalmente, agir antes de pensar. Prometeu significa agir depois de pensar. “Algumas coisas precisam de tempo, precisam de um espírito prometeico, de contemplação, de reflexão, de leitura, para não serem simplesmente rasgos instintivos – nada contra, mas nem sempre é a melhor opção -, que nos orientam para as melhores opções que serão sempre de cooperação”, argumenta Afonso. “Somos uma espécie particularmente bem-sucedida porque somos altamente gregários, sociais. Não estaríamos aqui, para o bem e para o mal, sem cooperação.” Apesar de a Cultura ser muito e tanta coisa é também “extremamente lenta nos seus efeitos”. O que é um problema e uma virtude. “De qualquer maneira, aprender será sempre e sem surpresa uma forma de diminuir a estupidez e, por arrasto, diminuir o ódio”, destaca o escritor.

Rui Paixão também recua à Grécia Antiga, quando se usou o texto teatral Oresteia para, lembra, “instruir os seus cidadãos sobre a noção de justiça e acabar com o tempo das barbáries”. E agora, tantos séculos depois, ainda é difícil, para muitos, perceber a missão da cultura e a função dos artistas, não como seres extravagantes que servem apenas para entreter ou distrair. “A Cultura não pode continuar a ser desprezada e maltratada. Com este distanciamento da sociedade para com a Cultura, o que estamos a observar é um colapso social focado na insensibilidade. A crueldade ganha força e vai continuar a crescer. Não há um final feliz para este debate.”

Rui Paixão tem várias questões. “Não será a cultura um espaço para a discussão política mais centrada no impalpável e no sensível e menos nos orçamentos do Estado? E não será esta discussão, através da Cultura, a melhor e única forma de aliviar o medo instalado pelos políticos de hoje, que são também responsáveis pelo ódio social?” Para o ator, a cultura é, na verdade, o único meio de “restabelecer o otimismo, o equilíbrio, o sensível… e atacar o ódio infiltrado em todos nós”.

Cristina Ataíde, artista plástica, sabe que a Cultura questiona o Mundo, reconhece-lhe o papel ético e mobilizador e os confrontos que motiva. “É uma arma muito poderosa porque é uma criadora de pensamento. Questiona as pessoas e fá-lo em determinados assuntos que são muito importantes, a questão do amor, a luta contra o ódio”, considera. Nas três exposições individuais que, neste momento, tem em Paris, Vila Nova da Barquinha e Leiria, é isso que faz, questiona certos temas como o nevoeiro da pandemia, se ainda nos vemos uns aos outros, se nos afastamos completamente, ou a memória da água que atravessa o rio, ou ainda a paisagem e a relação dos homens com o Mundo, estamos cá e o que fazemos por aqui.

A artista plástica prefere ver o lado positivo, a cultura que cria boas energias, embora consciente de que há obras agressivas e impetuosas. A vontade é pensar de forma positiva e excluir o ódio e a estupidez. “O artista, muitas vezes, reproduz o Mundo. Por que razão não fazê-lo pelo lado positivo?” E questionar, questionar sempre. “Se seremos isto, se queremos ser isto, se não queremos ser isto.”

As redes sociais, a máscara da crueldade

A Casa da Música escolheu o amor para tema da sua programação em 2022. É uma mudança pensada, amadurecida, que sai do caminho habitual de destacar o património musical de um país. Não é por acaso. A proliferação do discurso de ódio é uma das explicações desta escolha. A temporada arranca com o festival temático “If music be the food of love”, de 9 a 23 de janeiro. A abertura oficial acontece dia 14. A Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música dá as boas-vindas com o concerto “Salut d’Amour”.

A arte e o seu conteúdo. O debate continua. A literatura não dá sermões, é mais subtil do que isso, garante Richard Zimler. “Os sermões não funcionam, se funcionassem nunca tínhamos tido a Inquisição – e tivemos 300 anos de Inquisição em Portugal.” O escritor não prega sermões, o seu propósito é outro. “Que as pessoas preconceituosas não consigam utilizar as suas ideias falsas e fantasias para criar leis para dominar a sociedade.”

Para o escritor, é também uma questão de educação. Uma criança de cinco anos que tenha contacto com música, poesia, literatura, que conheça música brasileira, danças africanas ou do Camboja, os discursos de estadistas como Martin Luther King ou Nelson Mandela tem um Mundo aberto à sua frente. No fundo, é de respeito que se fala.

O ódio, a vida, o Mundo, as redes sociais. Rui Paixão mergulha no assunto. “A Cultura nunca deveria ser uma questão, mas sim uma necessidade vinda de uma vontade honesta dentro de cada um de nós e não para enfeitar a mediocridade e a crueldade que se faz sentir.” As redes sociais não são a culpa, as redes sociais “são só uma ferramenta que, bem usada, vai continuar a ter as suas vantagens”. As redes sociais são “a máscara perfeita para o ódio, mas foquemo-nos nas pessoas por detrás da máscara. Até porque a máscara não tem culpa se o ator for mau”, assinala.

Para Rui Paixão, ator, palhaço, a arte restabelece o otimismo
(Foto: André Gouveia / Global Imagens)

A sociedade corre e avança muito depressa, a quantidade de informação é cada vez maior. O Google sabe tudo e não sabe nada, observa Afonso Cruz. Tem toda a informação, mas não é capaz de criar coisas interessantes em termos humanos. E, portanto, é preciso saber lidar com tudo isso, mas não de modo passivo. “Deverá ser uma forma de sabedoria: o acesso à informação sendo democrático não nos dá sabedoria. É o que fazemos com a informação que realmente importa. Fazer uma simples pesquisa num motor de busca necessita de sabedoria.”

Viajar, trabalhar noutro país, conhecer outras formas de vida, contactar com pessoas que pensam diferente sobre assuntos importantes como a amizade, o amor, a crueldade, e tolerância, a intolerância. Zimler abre o leque da cultura para o seu sentido mais amplo, mais abrangente, cultura é também conhecer o Mundo e isso obriga a duvidar de pressupostos e preconceitos, a repensar propósitos de vida. “Alguém que continua a ter preconceitos sobre outra etnia, homossexuais, contra mulheres, tem uma alma morta porque não está a ouvir a mensagem, não está a perceber o Mundo.”

A arte não é um caminho fácil. Trabalhar a Cultura em Portugal é, segundo Regina Pessoa, “um ato de amor, entrega e generosidade por parte dos seus artistas e agentes culturais” sem muita esperança de retorno ou reconhecimento. “Mas continuamos a fazer o nosso trabalho porque, no nosso íntimo, temos a convicção de que, de alguma forma, é importante esse contributo e essa sinceridade artística para uma melhor Humanidade.”

No fundo, é necessário alimentar o espírito, não apenas o corpo. “Se nos fixarmos apenas nos valores materiais do Mundo em que vivemos, a rudeza das nossas vidas vai atormentar-nos a todos e vai constranger-nos a tal ponto que a infelicidade será permanente”, resume António Capelo. Rui Paixão fala do que não é óbvio. “Temos por adquirida uma liberdade para com o amor que não sabemos o quão frágil ela é. São as coisas a que não prestamos atenção e que, lá no fundo, a Cultura nos faz ver que existem e que as conseguimos sentir.”

E, de repente, um vírus virou o Mundo de pernas para o ar. “Talvez o Universo nos esteja a dar uma lição, uma forte lição, da forma como temos vivido a nossa vida e, em tempos de pandemia, talvez possamos entender melhor o quanto precisamos dos outros e de uma vida vivida plenamente em comunidade”, comenta António Capelo. “Não entender isto será uma outra forma de pandemia, ainda mais perigosa e letal que todas as outras. Oxalá consigamos aprender a lição…”, acrescenta. Oxalá.