Com os centros de atividades operacionais que acolhem pessoas com deficiência fechados, as famílias vivem sobrecarregadas com os filhos inquietos, dentro de quatro paredes. Sem as ocupações que lhes estruturam a vida e com menos estímulos, estão a perder capacidades de dia para dia.
Sandra, de 43 anos, tem um baralho de cartas nas mãos. É a melhor terapia para a microcefalia, descoberta aos sete anos e que ditou uma paragem no desenvolvimento do cérebro da criança. “É o escape dela”, traduz a mãe. Senta-se no sofá, as costas arqueadas como um gato assustado e um leve sorriso desenhado na cara. Aperta muito as cartas, como num abraço saudoso, vai baralhando sem parar e sem querer ir a jogo. A mãe, Fátima Monteiro – ou Fatinha, como se apresenta -, de 61 anos, e o pai, Horácio Monteiro, de 64 anos, olham com os olhos pingados de amor para a filha que não deixou de ser criança. “É a nossa vida”, concordam. Da janela do quarto, num segundo andar de um prédio no Cerco do Porto, Sandra consegue ver a sua “escola”, como diz. O Centro de Atividades Operacionais (CAO), da Associação do Porto de Paralisia Cerebral (APPC). É ali que atravessa os seus dias, das 9 até às 17 horas. Agora não. Desde que o país entrou novamente em confinamento, Sandra também confinou, porque o CAO encerrou.
As atividades que desempenhava no CAO – expressão plástica, ginástica, natação – ficaram suspensas há dois meses e a rotina alterada, pelo menos até ao próximo dia 5, data prevista para a reabertura destas estruturas. Tal como Sandra, muitos portadores de deficiência estão privados de apoio, obrigando as famílias a reorganizar as suas vidas para acompanhar estas pessoas altamente dependentes.
“Quando ela fica agitada, levanta a mão e eu tenho de ter pulso firme. Tem tanto de meiga, como de agressiva”, diz Fátima, dando nota que desde que começou o confinamento, e já com a experiência do que aconteceu no ano passado, “as coisas não são fáceis”, porque a filha “fica mais ansiosa, tem saudades da escola, quer regressar à escola”. “Acordo-a de manhã, dou-lhe banho, a refeição, visto-a e mantenho as rotinas, tal qual pediram na escola. Dou-lhe uns trabalhinhos para fazer de pintar e só sai da mesa quando os terminar”, narra a mãe, também ela apanhada pela crise gerada pela pandemia. Deixou de trabalhar numa escola primária, onde “ajudava nos almoços”, e agora dedica-se a Sandra, totalmente dependente dos pais. Uma simples ida ao supermercado exige grande planeamento.
Gustavo Pedrosa, de 39 anos, psicólogo na Cedema – Associação dos Pais e Amigos dos Deficientes Mentais, em Lisboa, sublinha “o sentimento de frustração que tudo isto causa nas famílias”. Trata-se de “adultos com uma grande exigência em termos comportamentais, muito fiéis a rotinas e as famílias ficam completamente desorganizadas” e deixam de poder ter as suas rotinas. A experiência na associação evidencia que este segundo confinamento está a ser mais penoso. “No primeiro, era tudo desconhecido, foi encarado como uma espécie de miniférias; neste segundo confinamento, as famílias já conhecem as dificuldades e exigências que tudo isto acarreta”, explica o psicólogo. No ano passado, as famílias com residentes em lares “preferiram ficar com os utentes em casa para estarem juntos, até por uma questão de proteção, mas agora já não quiseram ficar com eles em casa, porque, devido às doenças mentais, tornam-se muito agressivos e os próprios pais não têm força”.
É o caso da Sandra que pesa tanto quanto a mãe. Fátima, a quem apareceram tendinites nos últimos tempos, confessa as dificuldades. “No banho é que é mais complicado. Digo-lhe ‘Sandra, tens de ajudar a mãe’, e ela percebe, porque pergunta se estou a conseguir ou não.”
Irene Afonso, de 63 anos, é funcionária dos CTT, em Lisboa. Tem uma lesão nos ombros que a obriga a fazer fisioterapia duas horas à tarde, todos os dias da semana. O filho, Filipe, de 37 anos, um rapaz alto e forte, também vai, só que fica essas duas horas dentro do carro juntamente com o pai. “O que o entretém são os livros de animais, com cães e cavalos, que gosta muito de ver, passa o tempo naquilo, a folhear o livro e a ver”, relata a mãe.
Segundo Diana Nova, psicóloga na Associação Portuguesa de Deficientes (APD), em Gaia, “é de extrema importância manter as rotinas”. “Nestas pessoas com deficiência mental, a rotina, as ações da vida diária são extremamente importantes. Se forem quebradas, têm um impacto grande, com consequências de ansiedade e inquietação”, descreve a especialista, referindo que a principal estratégia passa por dizer às famílias para manter a rotina e um plano de atividades diário.
É isto que as duas mães, Fátima e Irene, fazem, cada qual na sua vida, uma no Porto, a outra em Lisboa, apoiadas por associações diferentes. Irene acorda o filho pela manhã, arranja-o. “Aliás, é o Filipe quem prepara a roupa que quer vestir no dia seguinte e deixa-a pronta no quarto”, conta a mãe, convicta do quão importante é manter a rotina: “Ele vive de rotinas. Quer arranjar-se de manhã, dar o passeio higiénico, fazer puzzles e ver os livros dos animais”.
Regressão na autonomia
Ao longo do primeiro confinamento, Diana Nova denotou uma regressão de competências nos utentes da associação com os quais trabalha, principalmente na condição física. De acordo com a psicóloga, quando em junho os centros de atividades ocupacionais reabriram, os profissionais ficaram “surpresos com a perda significativa” de movimentos, de destreza, de competências e autonomia. “Há muito a fazer ao nível do desporto e da terapia ocupacional”, apontou na ordem de trabalhos, na ocasião.
As associações oferecem atividades e terapias variadas, como a expressão musical e plástica, a hipoterapia, terapia assistida por cães, atividades na água, como a natação ou a hidroginástica, teatro, convívios. Neste rol de tarefas, a pessoa com paralisia cerebral vive o seu mundo.
Tânia Nunes, terapeuta ocupacional desde 2018 no CAO da Maceda, no Porto, alerta que as competências que viu falhar nos seus utentes no primeiro confinamento ainda não foram recuperadas. “Com a resposta social encerrada, a perda de capacidade, de interação, de autonomia, da pessoa deficiente ficou seriamente comprometida.” Quando liga às famílias para perceber como se sentem, a técnica constata muita preocupação com o futuro, perguntam até quando irá durar o isolamento. No acompanhamento que faz à distância, Tânia Nunes consegue captar o desgaste e a enorme sobrecarga das famílias. “Muitos pais estão avançados na idade, têm os próprios problemas de saúde, outros trabalham e nem teletrabalho podem fazer.”
Lista de espera, falta de apoios
A frequência dos centros de atividades operacionais é paga de acordo com os rendimentos da família. É o que está estipulado nas normas da Segurança Social. Com os filhos em casa, nalguns casos o pagamento é de 25% do valor, noutros casos 50%, por forma a manter a vaga, já que a lista de espera, em muitos casos, é extensa. De resto, não há mais apoios.
Marlene Fernandes, assistente social na APD, clarifica que a instituição tem sempre, por lei, de cobrar o mínimo, pois também tem despesas fixas, como é o caso da renda e as contas de eletricidade, de água, etc. “Existe a ideia enraizada pelas famílias de que estas atividades deveriam ser gratuitas, mas, no fundo, são um serviço prestado.”
Fátima, que paga cem euros por mês apesar de ter ficado desempregada, defende que “o Governo devia ajudar estas crianças, arranjar alternativas”, porque é muito complicado não irem para a escola. “A dinâmica de se levantarem e irem para a escola é o melhor para eles. E eles, na vida, só têm isso.”
Irene desembolsa 400 euros na Cedema, agora metade da mensalidade porque o centro está fechado. Elogia o trabalho que a associação faz pelos utentes e sem o qual o Filipe já não passa. É do próprio bolso que paga consultas extra de osteopatia para o filho, para que o consiga “controlar melhor” e para ele “andar mais calmo e tranquilo”. No calendário da vida destas famílias, não entram ajudas extras.
António Neves, de 59 anos, ficou desempregado “no momento certo”. Parece um paradoxo, mas não é. Foi no final de 2019, quando o vírus ainda era algo desconhecido e muito distante, na China. “Nem toda a gente pode dizer isto, mas a minha mulher, enfermeira no centro de saúde, e eu somos suficientes.” Reconhece, porém, que nem todas as famílias com filhos tão dependentes têm condições ou possibilidade de oferecer o que oferecem ao seu filho. Luís, de 25 anos, nasceu com tetralogia de Fallot – uma doença caracterizada por uma série de anomalias cardíacas congénitas – que depois de uma cirurgia, aos três anos, o atirou para uma cadeira de rodas.
O pai construiu uma piscina onde antes havia um campo de pencas, em casa. “Para o Luís desanuviar, porque é de mais para ele, começa a ficar nervoso, inquieto.”Anda em casa ou à volta de casa com uma espécie de volante adaptado à cadeira de rodas, passa muito tempo a jogar no computador ou a dar murros no saco, em que o pai recorda os tempos de pugilista. “Ainda tenho força para ele, mas muitos pais não, e nem devem poder dar o que nós, graças a Deus, podemos dar ao Luís.”
Esquecidos na vacinação
Marlene Fernandes questiona por que razão este grupo de pessoas com várias necessidades especiais não foi contemplada nas primeiras fases da vacinação contra a covid-19. “Na associação partilhamos funcionários do lar residencial com o serviço do CAO. Acho que faria sentido estarem incluídos na fase de vacinação dos idosos em lares, por exemplo”, considera a assistente social, chamando a atenção para o facto de muitos utentes viajarem de transporte público nas idas e vindas para o CAO, terem dificuldade na desinfeção das mãos e em manter as regras de higienização de modo autónomo. “Daí a vacinação ser tão importante para estas pessoas.”
Isabel Neves, de 58 anos, mãe de Luís, concorda. O filho está inscrito no CAO de Valbom. Enfermeira de profissão, soube logo no primeiro confinamento que o filho só poderia sair de casa quando a covid passasse.
“O médico disse que o Luís não podia regressar ao CAO em junho quando reabriram”, recorda a mãe, que sabe bem a grande desilusão que isso significa para o filho. Luís intromete-se na conversa para dizer que tem muitas saudades dos amigos e das atividades que com eles partilhava. E as taças alinhadas na sala, a contar as vitórias dele e da sua equipa do CAO em andebol, são prova disso. Mas isso é passado e a mãe retoma a palavra para salientar a importância da vacinação para o Luís e todos como ele. “Ainda há pouco vi um médico a falar na televisão a dizer que se esqueceram destes jovens como o Luís, doentes neuromusculares, com muita urgência na vacinação”, salienta.
Afastados das rotinas organizadoras das suas vidas, os portadores de deficiência estão também privados do tão necessário contacto com o outro. “São seres altamente socializáveis. São seres de toque”, sublinha Gustavo Pedrosa. Marlene lembra a festa de Natal, que, no último ano, não existiu. “É ‘a’ festa do ano, em que há a comunhão dos dois mundos, a família da escola e a família de casa.” Sem esses dois mundos juntos, “a motivação vai-se”.