Rui Cardoso Martins

A casa do polícia-advogado

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Foi há um ano – madrugada de 13 de Setembro de 2020 – e Lívia nem precisa de falar porque a sequência dos seus dois crimes será sempre memorável (se ela se lembrar)… Só contou o obrigatório: que nasceu no Brasil, foi personal trainer em Lisboa antes do confinamento com fecho dos ginásios, fez-se cuidadora mas agora não trabalha porque foi operada à coluna cervical. Lívia apanhara o cabelo loiro em rabo-de-cavalo e vestia oscilando entre o luxo e o desportivo. Sobre a acusação, preferiu o silêncio.

– Diz aqui, começou a juíza, que no dia 13 de Setembro de 2020, pelas 4.15 horas a senhora conduzia um automóvel ligeiro de passageiros, marca Peugeot, pela avenida General Norton de Matos, área de Alvalade, quando foi interceptada e fiscalizada por agentes da PSP…

Taxa no sangue de 2 gramas de álcool por litro.

– Foi devidamente notificada da inibição de conduzir pelo período de 12 horas, ficando a saber que, se não cumprisse, incorreria na prática de um crime de desobediência qualificada.

Era madrugada de sábado para domingo. Nos fins-de-semana desse mês antigo, se ainda não nos perdemos na névoa da pandemia, os bares e restaurantes voltaram a fechar a seguir ao almoço, e não se percebe onde é que Lívia bebeu tanto, ou melhor, onde continuou a beber. Porque às 7.52 horas, quatro horas depois da primeira ida à esquadra, um carro-patrulha, em serviço no Lumiar, viu um carro aos esses e mandou-o encostar.

O polícia falava ao tribunal de longe, por vídeo. Disse que servia na esquadra de Telheiras. De súbito, o caso abriu um terceiro acto surpresa, quando o advogado de Lívia exclamou:

– Em Telheiras… boa casa, boa casa!

O polícia contou que estava a circular na R. Filipe Duarte [compositor da opereta A Severa e do Fado da Ceguinha, há cem anos, não o grande actor que morreu a 17 de Abril de 2020]:

– Verificámos uma viatura com uma condução um pouco alterada, assim aos esses, e mandámos parar. A condutora em questão disse que já tinha sido mandada parar e mostrou-nos uns documentos. Esses documentos eram um auto de detenção por condução com álcool. Ela tinha uma inibição de conduzir por 12 horas e… foi conduzida de novo à esquadra onde foi lavrado o auto de detenção por desobediência.

– Mas a detenção foi durante o período de inibição?, perguntou a procuradora.

– Sim, sim.

– E verificaram que ela estava proibida de circular?

– Sim, através dos documentos que ela nos facultou, sim, sim!

Isto é, Lívia abriu o jogo. Estou bêbeda e ainda há pouco me prenderam a conduzir, muito azar junto, né? Algumas testemunhas faltavam, a juíza tinha de marcar nova sessão e foi o momento certo para o advogado de Lívia subir à boca de cena para ser o protagonista da comédia.

– Foi a minha primeira esquadra!, anunciou.

O advogado queria contar as suas aventuras na polícia, já que Lívia se calava. A juíza abriu os olhos, à espera. Ele até se engasgava de entusiasmo policial, a cabeça a rolar nos ombros largos.

– Eu e o procurador Carlos G… fomos os dois, no ano de 1999, primeiro para essa esquadra, em Telheiras. E depois saí e…

– Por isso é que o senhor doutor disse logo que era…

– Boa casa! Depois saí para as Operações Especiais, voltei… Foi quando fui estudar Direito. Boa casa!

– O mundo é pequenino, admitiu a juíza.

– Pequenino! Foi onde… recorda-se certamente do “Gangue do Multibanco” que matou aquela rapariga, a Ana Cristina?

– Sim.

– Foi ali naquela zona, naquela esquadra… ele agora já está reformado… foi com ele que aprendi a abrir um carro com aquelas fitas das paletes, estava um miúdo, um bebé num supermercado fechado dentro do carro e a gente, para não partir o vidro… e porquê? Porque o miúdo estava à frente… e é o Carlos que sai da esquadra e vai a uma mata ali em frente e é ele que vê a última rapariga que foi raptada e é ele quem faz uma série de perguntas, o que leva a PJ a concluir que eles atravessavam a ponte com as vítimas. O famoso “Gangue do Multibanco” que matou a rapariga. Ali é uma boa casa!

Fitas de paletes que salvam bebés. Sempre a aprender.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)