A atração pelo mórbido

As redes sociais expandem esta tendência inata do ser humano de ser atraído pelo mórbido

Na estrada, espreita-se o acidente na outra faixa. Nas redes sociais, dá-se atenção à notícia sobre a tragédia. Nas plataformas de streaming atingem o topo os documentários sobre homicidas em série e atentados terroristas. O sangue, as lágrimas e o medo repelem e seduzem em igual medida. O que nos atrai naquilo que mais nos inquieta?

Por volta dos dois ou três anos, quando uma criança faz um disparate e olha para mãe, ela está a testar uma hipótese fascinante que ainda não lhe tinha ocorrido: aquilo que mãe deseja e pensa é diferente daquilo que ela própria deseja e pensa. É um marco de desenvolvimento cognitivo chamado a teoria da mente: a perceção de que aquilo que os outros têm dentro das suas cabeças é diferente do que temos dentro da nossa. Em certos aspetos, nunca deixamos de ser como crianças de dois anos, permanentemente fascinadas com a ideia de que dentro das mentes dos outros estão coisas tão diferentes. E quanto mais divergentes parecem, mais queremos compreendê-las. É isto que nos leva, em adultos, ao interesse intenso por assassinos em série e documentários sobre crime real: o que é que esta pessoa, aparentemente parecida comigo, tem por detrás dos olhos? “Para cada crime, há a questão do ‘porquê?’ e do ‘como?’”, explica Paul G. Mattiuzzi, ex-presidente da Associação de Psicologia do Vale de Sacramento (EUA) com décadas de experiência em Psicologia Criminal e consultor do Departamento de Saúde Mental da Califórnia.

“Às vezes, a motivação para o crime é óbvia. Outras é intrigante ou desconcertante e, quando isso acontece, é mais provável que fiquemos curiosos e fascinados, especialmente se for um crime chocante ou com circunstâncias incomuns”, diz o especialista. A questão de “como” o crime foi cometido serve muitas vezes de base para os filmes de suspense, considera o psicólogo criminal, e reflete também a perplexidade sobre a mente do criminoso. “A pergunta que fazemos é: ‘Como pode alguém fazer uma coisa destas?’.”

Mas não são apenas as diferenças que nos atraem. São também as inquietantes semelhanças. Quando há um crime, há uma interrogação, silenciosa e perturbadora, que fazemos a nós próprios: “Também eu seria, em alguma situação, capaz de fazer isto?”. Paul G. Mattiuzzi lembra que “os sentimentos que podem dar origem a impulsos homicidas – como a raiva, o ciúme e a ganância – são emoções humanas essencialmente universais”. “A maioria das pessoas admite que, em algum momento, já pensou ‘Eu estava capaz de matar aquela pessoa’.” O próprio facto de a lei contemplar atenuantes para o homicídio deixa entrever essa ideia, que o especialista garante ser ainda “um tabu”: “O impulso de matar é, sob certas condições, algo que todos podemos entender”.

Além da curiosidade e da avaliação de diferenças e semelhanças, somos atraídos para tudo o que é inquietante e nos causa angústia. “A nossa atenção é sempre direcionada para o que é fora do comum, especialmente se for assustador ou alarmante. Os acidentes e os desastres naturais, por exemplo, também são uma violação do nosso sentimento de segurança e normalidade. É natural que as pessoas se concentrem nesses eventos e se perguntem: ‘Isto poderia ter acontecido comigo, estou seguro?’.”

Saber para prevenir

A ansiedade é a força que anima a vida, que nos faz reagir às ameaças e cria a tensão necessária para nos focarmos naquilo que mais importa: a nossa sobrevivência e bem-estar. Marissa A. Harrison, psicóloga evolucionista da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA) que investiga tanto os assassinos em série como o interesse do público por eles, refere que essa curiosidade faz todo o sentido, evolutivamente falando. “A curiosidade mórbida serve de vigilância protetora. Nós sintonizámo-nos com coisas que nos podem prejudicar para que possamos evitá-las”, salienta.

Isso causa-nos alguma culpa porque nos deixa entre duas apetências naturais. “Estamos evolutivamente pré-programados para prestar atenção ao que é horrível, mas também para sentir empatia.” Segundo a investigadora, as diferenças de género existem, mas não são muito evidentes: os homens pontuam mais na sua curiosidade mórbida, “provavelmente porque, num ambiente ancestral, estavam encarregues de defender o território e a tribo de ameaças”. Mas nas mulheres – que hoje, como há milénios, são frequentemente vítimas de violência – este interesse também é muito evidente.

Saltando dos produtos com fins de entretenimento, como as séries televisivas, para os conteúdos com fins informativos, como as notícias nas redes sociais, a tendência mantém-se. De tal maneira que já tem um nome: “doomscrolling”, um trocadilho em inglês que substitui o “deslizar para baixo” (scrolling down), pelo “deslizar para a desgraça”. “Os próprios estudos feitos pelas redes sociais mostram que as publicações negativas, sobretudo com conteúdo assustador e perturbador, tendem a receber muito mais atenção e interações do que as positivas”, ilustra Jeffrey Hall, diretor do Laboratório de Relações e Tecnologia, na Universidade do Kansas (EUA), que tem investigado a atração por notícias negativas.

Uma das razões que leva os utilizadores a ficarem perdidos no vórtice da Internet é um atalho cognitivo chamado “viés da negatividade”, que nos faz prestar mais atenção a situações negativas. Também o professor de Estudos da Comunicação entende que a tendência tem como objetivo “manter-nos atentos a coisas potencialmente perigosas”. Não é que o fenómeno tenha nascido com as redes sociais, também nos meios tradicionais o “sangue, suor e lágrimas” capta a atenção. “Eu passei dias a fio com a televisão ligada em canais de notícias depois do 11 de setembro de 2001. Morava em Washington DC e tinha muito medo de outros ataques em andamento”, exemplifica.

Mas as redes sociais expandem esta tendência inata por três razões: com as aplicações nos telemóveis “não há nenhum lugar nem nenhum momento dos nossos dias em que estejamos livres de novas informações”, as próprias empresas “amplificam as informações muito envolventes para manter a atenção dos utilizadores” e, muitas vezes, nas plataformas sociais, estas partilhas negativas são feitas por familiares e amigos, o que eleva ainda mais o nosso nível de atenção.

Ai que horror, tão bom!

Como pano de fundo de tudo isto está outra emoção básica: o medo. Ele tanto nos repele como nos atrai e começa por ser explorado desde cedo, quando as crianças pregam sustos umas às outras e os adolescentes partilham assustadoras histórias de fantasmas. Na idade adulta, continuamos voluntariamente a procurar esta emoção: compramos bilhetes para filmes de terror, para casas assombradas, para a montanha-russa. Pagamos para nos assustarem. Porquê? Porque é bom.

“As atividades assustadoras ativam a nossa resposta de lutar ou fugir: o sistema nervoso desencadeia uma cascata de neurotransmissores e hormonas, como endorfinas, dopamina, serotonina e adrenalina, que mudam a forma como pensamos e sentimos, geralmente criando muita energia e excitação”, realça Margee Kerr. A socióloga e professora na Universidade de Pittsburgh (EUA) é autora do livro “Scream: chilling adventures in the science of fear (“Gritos: aventuras arrepiantes na ciência do medo” – tradução livre, sem edição em português) e uma das principais especialistas americanas num objeto de estudo pouco frequente: a função recreativa do medo. Para isso, estuda as casas do terror ou assombradas que se encontram em parques de diversões.

Apesar da resposta fisiológica do nosso corpo ser a mesma, há uma grande diferença entre interpretá-la como aterrorizante ou agradável – o contexto. Num lugar seguro, como um parque de diversões ou atração assombrada, sabemos que a nossa vida não está em risco. “Por isso, essa energia toda que sentimos no nosso corpo é considerada uma experiência divertida, em vez de assustadora”, verifica a investigadora. “Nos nossos estudos, as pessoas relataram menos ansiedade e menos stress depois de fazer algo assustador”, constata Margee Kerr. Para isso, contribui também uma sensação de libertação que pode ser comparada a ter uma dor e depois deixar de a ter. “Pensamos que o alívio experimentado no fim da experiência assustadora contribui para o prazer”, esclarece.

Fazer coisas assustadoras pode ser também uma forma de aumentar a autoestima e a autoconfiança: terminamos a experiência a sentirmo-nos um pouco como super-heróis. “Isto acontece porque, apesar de a ameaça não ser real, há uma sensação de superação que funciona como uma recompensa. Além disso, há uma componente social importante no prazer de ter medo. Estas experiências, por norma, são feitas com família ou amigos, acabando por estreitar os laços e o sentimento de proximidade. Se observarmos as pessoas a saírem de uma casa de terror, veremos muitos abraços”, assinala a socióloga.

O filme de terror e a notícia sobre o atentado, a casa assombrada ou o acidente rodoviário ensina-nos muito sobre nós e sobre os outros. Queremos, como o poeta Terêncio, poder dizer: “Nada do que é humano me é estranho”.