Valter Hugo Mãe

18 mil dias na Terra

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Felizes são os que não têm medo. E andamos há meses a gerir o medo, sem sermos livres nem felizes.

Eu e o meu grande amigo Paulo diferimos em quarenta e oito horas o nosso nascimento. Exactamente hoje, ele completa 18 mil dias de vida, e eu completá-los-ei já na terça-feira. Se alardeamos os aniversários, talvez devêssemos ser mais efusivos com assinalar cada mil dias conquistados, tempo longo, mais parecido à contagem que se faz dos guerreiros nos exércitos, dos livros nas bibliotecas, das lendas que se lembram sobre fomes e colheitas, das estrelas que sobram.

No entanto, parece-me pouco. Medidos em dias estamos repartidos em migalhas, bocadinhos de tempo que tantas vezes desperdiçamos, damos de barato, nem prestamos atenção. A cada passo perdemos um dia, cansados ou entediados, ansiosos pela sexta-feira, pelo sábado à noite, pela ida a algum lugar ou encontro. Se nos medirmos assim, parecemos sempre um detalhe sem importância. São muito poucos esses 18 mil dias, e não sinto probabilidade rigorosamente nenhuma de chegar sequer ao dobro, o que confirma a minha convicção antiga de que nenhuma idade das pessoas é velha. Morreremos sempre novos. As pessoas vivem tragicamente uma experiência avara, diminuta.

Meu querido Paulo, tu que és mais cheio de contas do que eu, organizado e desassombrado destas manias melancólicas ou poéticas, vais certamente passar este domingo grato por iniciar mais um milénio de dias, tão a começar também o novo ano de 2021. Eu, por outro lado, vou matutar na terça-feira acerca de já ir a muito mais de metade da vida, e me saber a tão pouco, que me deixo, no mínimo, perplexo. Vou comprar um bolo de milenário e comer como quem adoça o fígado por vingança. Farei minha festa quieta de grato desalento, porque também sou grato mas não resisto a emitir, para informação de Cronos, o protesto de que sei que estamos a ser meramente entretidos na sua avareza.

A melhor padaria das Caxinas é a de Avelino Vaz, junto aos Correios. A que melhor coze o pão estaladiço. Na terça-feira lá irei comprar algo açucarado para pôr na mesa e imaginar uma festa. Farei uma festa um bocado de trombas, refilando contra a vulnerabilidade, a brevidade, a certeza de que isto devia ser tudo mais intenso de bom, brilhante, sem declínios, sem pandemias nem medo.

Este ano foi que me convenci de que não é só a liberdade que acontece aos que não sentem medo. É a felicidade. Felizes são os que não têm medo. E andamos há meses a gerir o medo, sem sermos livres nem felizes. Alguém dizia que ainda nos haverão de remarcar os concertos do Nick Cave (e os dos Dead Can Dance também), que têm sido consecutivamente cancelados, para quando já os atendêssemos de andarilho. Que demora. Mais queria um bolo que ao invés de duas velas trouxesse duas vacinas. A vacina é um privilégio dos países desenvolvidos e eu não vou obstacular com as minhas dúvidas à manifestação de capacidade e esperança que a ciência nos está a dar. Quero, sim, ser vacinado o mais depressa possível. E quero mais um milhão de dias. É o que quero. Isto, assim, não vai dar tempo para nada.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)