Warre’s, um negócio de vinho do Porto com 350 anos

A Warre’s não é apenas uma das mais antigas empresas de vinho do Porto. É a mais antiga empresa em atividade contínua em Portugal. Uma história com forte traço britânico, feita de sabores, experiência e territórios de paixão que só a vinha consegue oferecer.

Ano da graça de 1670. Em Portugal, dominava D. Pedro II, que afastara do poder o irmão, Afonso VI, o Vitorioso, filho de D. João IV e herói da Guerra da Restauração, sacado do trono ao ser declarado impotente sexual e, por isso, incapaz de proporcionar descendência ao reino, num julgamento público em que dezenas de mulheres testemunharam as suas fraquezas carnais. D. Pedro II não perdeu tempo e logo tomou medidas de aproximação às grandes potências de então, em particular à Inglaterra, cuja ajuda militar e diplomática fora preciosa no conflito que permitiu a Portugal libertar-se definitivamente do jugo espanhol. Entre os dois países, de amizades antigas e sólidas, firmaram-se acordos que abriam novos horizontes comerciais, como o que permitiu que negociadores ingleses se estabelecessem em terras lusas e exportassem para terras de Sua Majestade, com taxas reduzidas, vinho, peixe e outros produtos nacionais. Disso se aproveitou a família Warre, que nesse 1670 registou a patente comercial daquela que viria a ser a Warre’s, a primeira companhia britânica de sempre de vinho do Porto. Que até hoje não parou. Desde há 350 anos, portanto. História longa que lhe concede a garantia de ser considerada a mais antiga empresa a laborar em registo contínuo em território português. E, quiçá, a que em toda a Europa há mais tempo segue em atividade ininterrupta, pormenor de relevo que estudos em marcha estão a tratar de comprovar definitivamente.

“É um sinónimo da história britânica no Porto”, resume Johnny Symington, presidente da também histórica Symington Family States, carimbo familiar igualmente de raízes britânicas com marca forte no Porto e no Douro e que desde o início do século XX tomou conta dos comandos da Warre’s. Olhos azuis vivos, que mais vivos ficam ao lembrar a história de tão mítica marca de vinho do Porto.

As caves da Warre”s guardam preciosidades vínicas que o tempo amadurece com sabedoria
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

A empresa começou por ser denominada Burgoyne & Jackson. Dedicava-se ao comércio em geral e só centrou atenção e foco na produção e comercialização do vinho do Porto anos mais tarde, sobretudo quando foi assumida em absoluto, em 1729, por William Warre, britânico nascido na Índia, que viria a batizar a companhia com o próprio apelido de família. Os Warre’s assentaram arraiais e o neto de William, que carregou o mesmo nome próprio do avô, tornou-se um mito. “Serviu como oficial na Guerra Peninsular e foi um marco da resistência contra a invasão francesa do Porto, de 1807 a 1814”, recorda Johnny Symington.

Eram tempos em que os vinhos desciam o rio Douro nos típicos barcos rabelos e depois aguardavam vez nos cais de Vila Nova de Gaia e do Porto antes de embarcarem para uma viagem que tinha como destino Inglaterra e levava semanas por mar. Tais esperas tornaram-se fundamentais para uma descoberta que viria a revelar-se preciosa. “Os produtores começaram a perceber que quanto mais tempo o vinho ficava dentro das pipas, mais melhorava. Ou seja, que o envelhecimento valorizava a qualidade”, explica Johnny Symington. E assim nasceu a ideia de se construírem armazéns de recolha, onde o precioso néctar do Douro ganhava forma, gosto e apuro antes de ser definitivamente vendido. As caves, essas mesmas. Que, a partir de meados da década de 1850, tiveram importância fundamental no incremento significativo das exportações para Inglaterra.

Meio século depois, em 1904, novo capítulo foi acrescentado à tradição da Warre’s com a entrada em cena dos Symington. “A minha família tornou-se sócia da empresa e quatro anos mais tarde, em 1908, proprietária na totalidade”, rebobina no tempo Johnny Symington. Foi Andrew Symington quem então tomou conta da produção de vinho do Porto da companhia, ele que tinha deixado a Escócia natal com apenas 18 anos em busca de novas oportunidades de vida num Portugal que lhe abrira portas ao sonho. Geriu a produção e as vinhas da Warre’s, deu-lhes novo fôlego, entusiasmou-se e passou esse amor aos seus. “Daí em diante as gerações Symington trabalharam na empresa. Os Warre’s, esses, continuaram a acompanhar de perto e as ligações foram sempre muito estreitas”, testemunha.

A família Symington tornou-se proprietária da Warre”s em 1908
(Foto: DR)

Johnny é exemplo desta tradição familiar. Nasceu no Porto, no já desaparecido Hospital Britânico, em Massarelos, estudou engenharia e gestão em Inglaterra, trabalhou no Médio Oriente e em África como responsável de vendas de produtos médicos, voltou a Portugal aos 25 anos movido pelo desafio. “Não percebia nada de vinhos”, garante. “As primeiras seis semanas foram passadas nas vindimas. E, depois, nos seis meses seguintes nada mais fiz senão passar dias inteiros nas provas de vinhos, das nove da manhã até ao final da tarde.” Tarimba que lhe deu escola para agarrar com as duas mãos o futuro da Warre’s.

O homem de todos os sabores

Hoje, 350 anos sem parar um dia que fosse a laboração, a Warre’s tem como principais mercados paragens tão diversas como a Holanda, os Estados Unidos, a Rússia, o Canadá e, claro, o Reino Unido. E mais cerca de 40 países, onde chega o vinho do Porto saído das vindimas do Douro e da mítica cave de Vila Nova de Gaia. Que ainda hoje é a mesma, autêntica casa de segredos vínicos ao alcance de poucos. Um labirinto de corredores onde se encaixam pipas, tonéis e balseiros que guardam e maturam vinhos do Porto com anos e anos de produção. E que é quase casa principal de Manuel Rocha, 60 anos, provador e funcionário mais antigo da Warre’s, onde entrou tinha então tenros 19 anos. “São 41 anos de empresa, entrei a 8 de janeiro de 1979. Logo no primeiro dia o meu avô pediu-me para subir para cima dos balseiros e retirar amostras de vinho para levar para a sala de provas. Fiquei todo atrapalhado com receio de me enganar, mas lá me safei”, diz na ponta da língua. “Já era pequenito e vinha para aqui com esse meu avô, que também foi provador durante mais de meio século, e com o meu tio, irmão gémeo dele, que foi chefe de armazém”, lembra.

A Warre”s continua a manter tanoeiros em atividade permanente
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O homem cuja boca é radar de sabores de todos os vinhos do Porto que saem da Warre’s é uma enciclopédia viva. O prazer com que fala da arte que lhe dá ofício nota-se-lhe no sorriso permanente que instintivamente solta à medida que vai falando das colheitas, da vinha, dos segredos e magias que a profissão lhe oferece e que aceita com gosto e prazer quase como se desafio fosse. “Este ano, por exemplo, foi totalmente surpreendente. O clima foi diferente dos anos diferentes e fez com a vinha se defendesse e atacasse o fruto, foi incrível”, desenvolve Manuel.

“Os anos foram passando e nunca deixei de me surpreender com o vinho do Porto, ele proporciona surpresas absolutamente inesperadas. Ano houve, em 2015, em que um vintage continha cheiros tropicais fantásticos”, delicia-se.

Manuel não se vê a fazer outra coisa. É de família. Antes do avô e do tio, também o bisavô serviu a Warre’s durante uma vida de dedicação. “Morreu com a chave do armazém pendurada à cintura”, conta o homem que se orgulha “de aprender todos os dias”, porque só assim sabe que o vinho do Porto continuará a dar-lhe razões para que se admire com tantas e tão agradáveis exclusividades espantosas ao sabor. “Tenho o privilégio de ter provado todos os vintage da empresa”, orgulha-se. “De ano para ano é um mundo novo a cada vindima. Absolutamente fantástico.” E o sorriso, o tal sorriso especial, volta a irradiar luz.

Chave está nos mais novos

O futuro da Warre’s parece assegurado e não apresenta dúvidas de maior. “A quinta geração dos Symington está a ser preparada. Antes de entrarem na empresa, os membros dessa geração, tal como os das anteriores, estão a fazer coisas completamente diferentes. É a nossa forma de ver e fazer as coisas, só com experiências variadas conseguimos obter o melhor das pessoas. Antes de aqui trabalharem têm que provar que sabem alguma coisa”, observa Johnny Symington.

A Warre’s tem como principais mercados a Holanda, os Estados Unidos, a Rússia, o Canadá e, claro, o Reino Unido
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

É o caso de Patrícia Vale Lourenço, 35 anos, brand manager da Warre’s, para onde entrou há apenas um ano, após experiências, lá está, de âmbitos completamente diferentes. “Trabalhava em marketing mas numa área diferente. A partir do momento em que entrei na Warre’s fiquei apaixonada”, confessa. É Patrícia quem coordena as ações de promoção da empresa, quem oferece imaginação para valorizar um produto que, já de si, tem marca histórica que lhe confere admiração internacional traduzida nos inúmeros destinos onde é consumida e apreciada.

“A minha função e objetivo é um misto entre respeitar a história da Warre’s e poder levá-la a novos consumidores, sobretudo os de uma geração mais recente”, especifica. No fundo, “é uma ponte entre vários níveis”, espécie de equilíbrio delicado que Patrícia Vale Lourenço tenta dominar sem deixar fugir o essencial. “Estou apaixonada. Já não me vejo a fazer outra coisa, é fascinante”, rende-se.

Johnny Symington reforça a tecla da comunicação entre diferentes gerações e os proventos que daí advêm. Não esquece quem está e quem esteve ao serviço da empresa, realçando o legado que deixaram e que promete jamais deixar esquecido numa qualquer gaveta discreta. Sublinha, contudo, que é no futuro e com os do futuro que está a chave para que a Warre’s continue a ser moderna, apesar de a mais antiga empresa em funcionamento permanente a operar em Portugal.

Manuel Rocha, Johnny Symington, Patrícia e Vale Lourenço, o trio que dá alma à Warre”s
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

“Com o conhecimento dos mais novos, não só da família mas de todos aqueles que vão entrando, vem a adaptação aos novos tempos, a modernização. Eles ensinam muito, dão novas perspetivas que os mais antigos não conseguem alcançar”, considera.

Mas o vinho é que mandará sempre. Assim foi, assim é e assim será, é quase lema não escrito. Porque, afinal, “nós não mandamos no vinho, o vinho é que manda em nós tantas são as suas delicadas, diferentes e surpreendentes características”. Palavra de 350 anos de uma história que recusa o ponto final.