Viver o dia a dia de bicicleta

Bicicletas e trotinetes têm vindo a ganhar terreno nas cidades, mas o caminho faz-se lentamente, com muitos obstáculos pelo meio. As vantagens e as dificuldades que ainda resistem, apontadas por quem se desloca diariamente para o trabalho recorrendo a um meio de transporte alternativo.

Alice, três anos, já sabe de cor o ritual matinal que a espera de segunda a sexta-feira. Pelas 8 horas, mais coisa menos coisa, o pai, Rui Figueiredo, 37 anos, está a acordá-la. Veste-a, dá-lhe o pequeno-almoço e prepara-a para saírem. Quando a temperatura começa a baixar, o cachecol e o casaco quentinho não podem faltar. A viagem que se segue é feita sem habitáculo nem cobertura, só o ar fresco do Porto a servir de derradeiro toque de despertar. Antes de partirem, Rui senta-a na cadeirinha própria que tem instalada na parte de trás da clássica bicicleta bege e coloca-lhe o capacete. Arrancam então, para deleite de ambos. Ao fim de cinco minutos, Alice está na creche. Depois, o pai, investigador, prossegue até à zona do polo universitário. “Ela gosta muito, por ser mais divertido. Se num dia tivermos de ir de carro [só acontece quando a chuva é intensa], pergunta logo porque não vamos de bicicleta. Também por ter sido habituada desde bebé. Uma criança que se habitue a andar de bicicleta depois já não quer outra coisa.”

No caso de Alice, o hábito desenhou-se a quase dois mil quilómetros da Invicta, em Pavia, pequena cidade do norte de Itália onde Rui e a esposa viveram durante cinco anos, entre 2014 e 2019. “Em Pavia o próprio casco histórico da cidade impediu que fossem feitas certas alterações. Os automóveis não podem circular em várias zonas e há uma cultura de bicicleta implementada, entre pessoas de todas as idades e classes sociais.” Rui e a mulher renderam-se de imediato. E nem o nascimento de Alice os fez repensar a opção. “São cadeirinhas homologadas, que têm não sei quantos pontos de segurança. Não acarretam qualquer risco. Claro que quando se conduz uma bicicleta com uma criança se tem a preocupação de ter mais cuidado, mas em Pavia era muito comum ver crianças transportadas nas bicicletas.”

Há dois anos, veio a mudança para o Porto, uma cidade distinta, bem menos familiarizada com as bicicletas. Ainda assim, garante Rui, a transição não encerrou dificuldades de maior”. “Acaba por ser uma cidade bastante amigável para andar de bicicleta, no sentido em que se tivermos um bocadinho de coragem percebemos que os condutores acabam por respeitar. É claro que o problema do Porto é o excesso de automóveis, mas não é um obstáculo inultrapassável. Nunca tive problemas com os automóveis.” E para quem se deparar com um trajeto mais acidentado, as bicicletas elétricas podem ser uma boa solução, aponta. “Creio que podem ser o elemento mais disruptivo. Há muita gente que ainda não está preparada para pegar na bicicleta por causa disso e assim deixa de existir o obstáculo dos declives.”

Para Rui, motivos para preferir a bicicleta a outros meios de transporte não lhe faltam. Corta aos gastos e ao tempo no trânsito, ganha em bem-estar e boa-disposição. E ainda ajuda o ambiente. “Fico genuinamente contente quando ao fim de uma semana percebo que não tirei o carro da garagem.” De resto, e apesar de ver hoje “muito mais gente” a andar de bicicleta e trotinete do que via quando chegou ao Porto, não tem dúvidas de que o número aumentaria consideravelmente “se houvesse vontade política de fazer alterações mais ambiciosas”. “Há um caminho a trilhar, no sentido de tornar as cidades mais modernas e amigas do ambiente. É um caminho que se está a fazer por toda a Europa. Em Portugal também, embora seja óbvio que ainda estamos muito atrasados.”

Rui Figueiredo, 37 anos, leva a filha à creche de bicicleta. Depois, segue caminho até ao local de trabalho
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Os números não abundam – e os que existem são antigos ou parcelares – mas permitem validar a tese de que há um longo trilho a percorrer. Em 2011, segundos os Censos, apenas 0,5% das deslocações pendulares em Portugal eram feitas de bicicleta. Em 2017, um inquérito realizado pelo Instituto Nacional de Estatística debruçou-se sobre a mobilidade nas áreas metropolitanas do Porto (AMP) e Lisboa (AML), com resultados igualmente desanimadores. De acordo com o INE, as viagens de bicicleta na AMP representavam então apenas 0,4% do total. Na AML não iam além dos 0,5%. Para esta percentagem quase residual muito contribui o peso excessivo do automóvel nas deslocações diárias. Segundo o mesmo estudo, nesse ano, no Porto, 67,6% das viagens diárias eram feitas de carro. Em Lisboa, o peso era ligeiramente menor: 58,9%.

Já no princípio de 2020, mas com uma amostra consideravelmente menor (3500 inquiridos), um estudo da Deco tentou perceber como se deslocam os portugueses em várias cidades. Na Invicta, 61% dos inquiridos usavam carro ou mota em pelo menos três dias da semana, com a percentagem na capital a fixar-se nos 48%. Já em relação aos inquiridos que em três ou mais dias da semana se deslocavam de bicicleta, o estudo aponta para os 4% no Porto e os 5% em Lisboa. Alargando a outras cidades, a percentagem chegava aos 10% em Faro, fixando-se nos 7% em Setúbal e nos 6% em Aveiro.

O professor que chega à universidade a pedalar

João Matos, 61 anos, natural de Oliveira de Azeméis mas residente em Aveiro desde os quatro anos, contribui para engrossar essa estatística. Sempre que o tempo lhe permite, vai para a universidade, onde dá aulas de Eletrónica e Telecomunicações, a bordo do velocípede que o acompanha faz tempo. São cerca de cinco quilómetros, que lhe levam entre 15 a 20 minutos a percorrer, e que lhe servem como lufada de ar fresco para o dia que está para vir. “As minhas motivações relacionam-se sobretudo com o ambiente e com a saúde. Se estiver bom tempo, apanha-se um sol, anda-se ao ar livre, mantém-se alguma atividade física, ajuda a descomprimir bastante. Depois, uma pessoa vicia-se e já não quer outra coisa. Já estou um bocado nessa fase. Às vezes pego no carro só para ele não estar demasiado tempo parado.” Aos poucos, vai passando o bichinho às pessoas que lhe são próximas. A irmã, por exemplo, médica de profissão, também já tem uma bicicleta elétrica que costuma usar para se deslocar para o trabalho. E a tendência vai-se estendendo de mansinho a outros aveirenses. “Vê-se cada vez mais gente, sobretudo dentro da cidade propriamente dita.”

O docente lamenta, no entanto, que a vida ainda não esteja propriamente facilitada para os ciclistas. Desde as infraestruturas – “Se apanhar uma molha durante o caminho chego ao emprego e não tenho condições para me secar nem para me mudar” – ao civismo de quem anda na estrada. “Andar em duas rodas é sempre um risco porque as pessoas ainda andam distraídas, nem sempre veem as bicicletas. Já fui abalroado à saída de uma rotunda e disseram-me que não me viram. É preciso investir na consciencialização dos condutores. Há uns anos eu e minha filha viemos da Holanda para Portugal de bicicleta, numa viagem de cerca de quatro semanas, e só quando chegámos cá é que nos começámos a assustar com os automóveis.”

João Matos, 61 anos, dá aulas na Universidade de Aveiro e, sempre que pode, desloca-se para o instituição a bordo do seu velocípede. Só lamenta que os condutores ainda andem “distraídos” em relação às bicicletas
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Gisela Antunes, que vive na Margem Sul e tem na trotinete uma fiel companheira nas deslocações diárias até ao local de trabalho, em Lisboa, também aponta a falta de civismo, mesmo entre peões. “Há muita gente que não respeita o nosso espaço. Pessoas que continuam a caminhar nas ciclovias quando têm um passeio enorme do outro lado. Parece que fazem de propósito, não entendo.” A arquiteta de 37 anos dá graças por nunca ter tido nenhum acidente. Mas já leva uns quantos percalços para contar. “Volta e meia lá tenho de fazer umas travagens bruscas. A última vez foi por causa de uma senhora que ia com um cão.”

Todos os dias, Gisela sai de casa pelas 8.50 horas e vai de trotinete até à estação da Fertagus, em Corroios. Daí segue de comboio até Entrecampos, onde volta a pegar na trotinete, rumo ao Saldanha. E assim se consegue livrar da confusão matinal do metro, a principal razão para, em abril de 2019, ter optado por outro meio de transporte. “Estava sempre muito cheio. Muitas vezes não conseguia apanhar a primeira carruagem. Não havia espaço, era toda a gente a passar à frente, não estava a ser nada agradável. Foi nessa altura que adquiri a trotinete.” Porquê a trotinete e não uma bicicleta? “Por ser mais leve, mais fácil de transportar, mais cómoda. E para experimentar uma coisa nova”, partilha Gisela, que não tem dúvidas de que a opção veio melhorar consideravelmente a sua qualidade de vida.

Foi para incutir aos portugueses o uso crescente dos meios de transporte alternativos que foi lançada a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030. Entre as principais metas, destacam-se o crescimento da quota modal de viagens em bicicleta no território nacional para os 7,5%, chegando aos 10% nas cidades, o aumento da extensão total das ciclovias num total de dez mil quilómetros (em 2018, era de apenas dois mil) e a redução da sinistralidade rodoviária de ciclistas. Em 2018, tinha já sido apresentado o Programa Portugal Ciclável 2030, que previa a construção de 960 quilómetros de ciclovias, sobretudo em redes cicláveis intermunicipais, num investimento total de 300 milhões de euros.

Gisela Antunes, arquiteta de 37 anos, vive na Margem Sul e trabalha na zona do Saldanha, em Lisboa. Todos os dias apanha o comboio entre Corroios e Entrecampos. Mas o resto do trajeto é feito a bordo de uma trotinete elétrica
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

No âmbito deste artigo, a “Notícias Magazine” solicitou ao Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAT) uma conversa telefónica com o secretário de Estado da Mobilidade, Eduardo Pinheiro, mas foi-nos dito que, nesta altura, não seria possível agendar uma entrevista com o governante. No entanto, fonte oficial do MAAT fez-nos chegar um documento com um resumo de vários investimentos realizados na mobilidade ciclável ao longo dos últimos anos. Entre estes, consta o lançamento do programa UBike, que permitiu a 12 instituições académicas de todo o país a aquisição de quase 2 500 bicicletas, 65% das quais elétricas. Ou os apoios do Fundo Ambiental destinados à aquisição de bicicletas, elétricas sobretudo: em 2019, foram 250 mil euros; em 2020, 400 mil (valor previsto). O MAAT lembra ainda os apoios do Fundo Ambiental e do Fundo de Transportes para “medidas de fomento da intermodalidade dos transportes públicos com o modo ciclável”.

De resto, é sabido que a transição climática é uma das prioridades do Plano de Recuperação e Resiliência, recentemente apresentado pelo Governo, estando previstos investimentos nos transportes na ordem dos 975 milhões de euros. Que percentagem desta verba visará especificamente a mobilidade ciclável, e como esses fundos serão aplicados, é algo que continua, para já, no segredo dos deuses. Questionado pela NM sobre planos a médio e longo prazo, o MAAT fez saber apenas que “ao nível dos programas de financiamento comunitário que estão atualmente em fase de discussão, estão a ser propostas pelo Governo medidas com dotações financeiras elevadas no âmbito para a mobilidade ciclável”, ressalvando que as mesmas “ainda não podem ser divulgadas publicamente”.

“Éramos tão poucos que nos cumprimentávamos uns aos outros”

As mudanças vão-se percebendo, aos poucos, ainda que a um ritmo bem mais lento do que desejariam os adeptos dos velocípedes. Miguel Batista, da Mubi (Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta), dá conta disso mesmo. Residente em Queluz, vai diariamente de bicicleta para o trabalho, na zona de Benfica, há quase dez anos, tempo mais do que suficiente para percecionar uma realidade em mudança. “Claro que comparando com o início é totalmente diferente. Na altura praticamente não havia ciclovias e muito pouca gente andava de bicicleta. Éramos tão poucos que nos cumprimentávamos uns aos outros. Agora não. E os condutores já vão estando um bocadinho mais familiarizados com os ciclistas. Nesse aspeto mudou alguma coisa.” Dados registados pela Câmara Municipal de Lisboa, em parceria com o Instituto Superior Técnico, em 60 pontos da cidade comprovam isso mesmo. De 2017 para 2018, o aumento de velocípedes nesses trajetos aumentou, em média, 78%. De 2018 para 2019 o crescimento foi de 9%.

Mas Miguel garante que o cenário está longe de ser o ideal. E avisa que, antes de mais, é preciso distinguir entre a cidade da Lisboa e a área metropolitana. “Se em Lisboa parece haver algum empenho político em tornar a cidade mais amiga das pessoas e não tão feita para o carro, fora do concelho de Lisboa o caso é outro”, observa. Em relação à capital, Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa, anunciou, em junho deste ano, que o objetivo seria chegar aos 200 quilómetros de ciclovias em toda a cidade já em 2021. O responsável da Mubi garante, no entanto, que as obras estão atrasadas, dando como exemplo a Avenida da Liberdade, a Avenida da Índia e a Avenida do Uruguai, entre outras. Fonte oficial do gabinete da mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa admite atrasos pontuais na construção de dados troços, mas vinca que o objetivo de ter uma rede de 200 quilómetros de ciclovias concluída no final de 2021 se mantém. “A autarquia continua empenhada em criar condições para que cada vez mais pessoas possam optar por esse meio de transporte”, sublinha a mesma fonte, adiantando que neste momento Lisboa tem 120 quilómetros de rede ciclável.

Desde abril do ano passado que João Brandão, voluntário da Mubi, faz o trajeto Gaia-Porto de bicicleta
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Bem mais sombrio é o cenário na área metropolitana, lamenta Miguel Batista. “Aí o empenho é praticamente zero. Há concelhos que estão a construir ciclovias em cima de passeios, a roubar espaço ao peão, a apostar em trajetos descontínuos. Não existe um compromisso sério com este objetivo.” Entretanto, revela Miguel, a Mubi vai-se desdobrando em reuniões com a Câmara de Lisboa e com vários partidos políticos, para perceber as propostas que estão em cima da mesa em termos de rede ciclável e de incentivo à compra de bicicletas.

A ação da associação não se cinge à capital. Também no Porto a Mubi se tem empenhado em facilitar a vida aos ciclistas. João Brandão, voluntário desta associação habituado a fazer diariamente a viagem Gaia-Porto de bicicleta, explica isso mesmo. “Para além dos contactos que temos feitos com a Câmara Municipal do Porto, no sentido de perceber os planos que há e de irmos dando a nossa opinião, temos promovido várias iniciativas. Uma é o programa Bike Buddy, dirigido a pessoas que querem começar a andar de bicicleta, mas que têm receio. Assim, numa fase inicial, oferecemo-nos para ajudar a fazer os seus trajetos diários, para que a pessoa ganhe confiança. Também temos o Bike to School, que organiza deslocações de grupos em direção à escola, mas por causa da pandemia tem estado parado. E estamos neste momento a promover um inquérito online destinado aos utilizadores, para perceber que problemas é que quem circula de bicicleta enfrenta diariamente.”

No caso deste diretor de fotografia, de 28 anos, o uso diário da bicicleta só surgiu em abril do ano passado, quando se mudou de Famalicão para Gaia. “Quando percebi que em hora de ponta demorava 40 e tal minutos a fazer cinco quilómetros achei que tinha de encontrar uma solução. Experimentei a bicicleta e fiquei fã. Além da questão do trânsito, que me stressava imenso, é o dinheiro que se poupa, é a questão ambiental. E para mim a bicicleta é uma maneira de começar o dia de forma descontraída e alegre.”

Lamentando que o ritmo da mudança na cidade seja “muito lento”, João congratula-se, no entanto, pela evolução que vai vendo. “Já se nota uma mudança de discurso relativamente às bicicletas. Quando comecei na Mubi, há ano e meio, a autarquia não via a bicicleta como uma alternativa viável. Neste momento, já não é assim.” A intenção anunciada pela Câmara Municipal do Porto de aumentar até ao final do ano a rede de ciclovias para um total de 50 quilómetros (construindo portanto mais 35) parece ser sinal disso mesmo. João Brandão não tem dúvidas que o caminho passa por aí. “Conheço muita gente que tentou andar diariamente de bicicleta e desistiu, por não sentir segurança. Está provado que se as ciclovias forem construídas as bicicletas aparecem. O que não pode acontecer é as câmaras estarem à espera das pessoas e as pessoas à espera das câmaras.”