Compras à distância. Visitas a casas e veículos, por dentro e por fora, no sofá. Museus e concertos na sala. Portas e janelas digitais para espaços públicos e empresas privadas.Tudo sem sair de casa, tudo encaixado num ecrã. A máquina está montada. O que funciona num novo formato de vida?
O Portugal dos Pequenitos, em Coimbra, suspendeu as visitas a 14 de março por força das circunstâncias. A equipa reuniu-se à distância e numa semana desenhou uma proposta para abrir janelas digitais. “Não podíamos permitir que nos pudessem esquecer, tínhamos de manter a chama viva”, atira Ivo Pimentel, administrador da Fundação Bissaya Barreto, que gere o espaço lúdico-pedagógico. Foram colocados no ar vídeos para mostrar casas e solares. Todos os dias, são publicados conteúdos inéditos, quizzes e curiosidades, receitas tradicionais, sugestões de leitura e atividades para realizar em casa, em família. Há ainda uma aplicação para dispositivos móveis que é um guia que sugere um itinerário com explicações para cada um dos cerca de 140 pontos de interesse.
As novas formas do parque se dar a conhecer têm impacto. “Tem sido muito bem aceite pelas famílias e tem havido muita interação.” A ideia é continuar, por três razões essenciais. “As pessoas têm reagido bem, faz sentido e já temos a máquina montada.” O parque reabre a 1 de junho e o incremento nas redes sociais não esmorecerá. Em todo o caso, Ivo Pimentel defende o equilíbrio. “Não há nada como ver um espetáculo ao vivo. Respirar, sentir, tocar. As tecnologias vão progredir, mas nunca vão anular a experiência física.”
A Quinta de Soalheiro, em Melgaço, também reagiu de imediato à pandemia. Com a área de enologia encerrada, investiu no enoturismo digital com novidades que chegam a casa, à morada indicada. “Temos uma equipa de enoturismo, foi fácil sermos reativos e colocarmos um projeto novo no mercado”, adianta Luís Cerdeira, produtor enólogo da quinta. “Não é uma compra online, é uma experiência online em casa”, esclarece. Kits de digital tasting com vinhos enviados para casa e acesso exclusivo a provas comentadas e voucher para uma futura visita de carne e osso. São também feitos lives no Instagram em modo conversa e os 25 anos da Festa do Alvarinho e do Fumeiro, cancelada por motivos óbvios, foram celebrados com kits de vinhos e fumeiro. Luís Cerdeira começou a aparecer nos vídeos, a explicar detalhes dos vinhos, com humor à mistura. Em junho, há novos filmes porque há novos vinhos e um livro para crianças que conta a história da casta Alvarinho.
“O que nós queremos? Queremos cultura e estas experiências são uma forma de olhar para os vinhos, não é fazer uma simples compra, mas algo mais.” A máquina está oleada, o online não é uma novidade, as circunstâncias sim. A Soalheiro manterá o que criou em época de pandemia numa lógica de experiência virtual acompanhada da experiência real. “É importante como uma nova área de negócio, mas não vamos pensar que vai ser o futuro. Gostamos de abraçar, de cumprimentar. A visita física é insubstituível, tem um cheiro e o nosso sorriso.”
O padre José Manuel, da paróquia de Rossas, Arouca, não teve dúvidas, mas ficou surpreendido com o alcance da transmissão das eucaristias nas redes sociais. “É o futuro, temos de aproveitar estas oportunidades do século XXI ou então estaríamos a desperdiçar uma grande possibilidade de transmitir a nossa alegria a tanta gente que está só, que precisa de uma palavra amiga”, diz. Foi tudo muito rápido. O Cineclube de Arouca disponibilizou-se para tratar das emissões em direto, abriu-se uma conta no Facebook da pequena paróquia com cerca de 1 500 habitantes, e a junta de freguesia juntou-se à transmissão da cerimónia às 9.30 horas de domingo a partir da capela de Nossa Senhora do Campo. Hoje são mais de três mil amigos no Facebook, gente de outros países, França, Suíça, Alemanha, Espanha, Brasil. “O sucesso está aí.”
José Manuel, padre há mais de 30 anos, é pragmático. “Quem não tem cão caça com um gato.” O contexto ajudou, mas chegar a mais gente é uma felicidade. “Tem sido fantástico, nunca pensei que isto acontecesse.” As igrejas reabrem no próximo fim de semana com restrições. O padre de Rossas só vê vantagens em que a sua eucaristia continue a ser transmitida em direto até para aqueles que por medo, pela idade, ou doença, não conseguem ir à missa. “Uma coisa é assistir a uma missa na televisão, outra coisa é ver o seu padre, o padre da sua terra.”
Os filtros e a interação. E a proximidade?
O mundo virtual não surgiu há dois dias. No início, o discurso enredava-se na desconfiança, em dois espaços isolados que não comunicavam. Depois, lentamente, domesticou-se a tecnologia como uma ferramenta. Veio a pandemia e com ela a pergunta de como instaurar um novo formato com um pé num mundo que ainda não morreu totalmente e outro num território desconhecido. “Ou fica-se agarrado ao passado ou tenta-se abrir e descobrir outras hipóteses”, considera o sociólogo Gustavo Cardoso, professor e investigador do ISCTE.
As atividades económicas ou de lazer, que vivem da presença física, tiveram de encontrar soluções de emergência. Reinventaram-se. A experiência mudou porque se quebrou a dinâmica comercial. “As questões do virtual só podem ser úteis, enquanto pessoas e cidadãos, se soubermos que tipo de experiências queremos ter num mundo diferente do anterior.” Ter o mesmo num mundo diferente ou experimentar e diversificar? “Fomos obrigados a sair para um campo em que ninguém estava preparado. É um campo de experimentação provavelmente para a maior experiência social das nossas vidas.” Há grandes interrogações e a lei do mercado, da oferta e da procura, andará pelo caminho tentativa-erro.
O portal imobiliário Idealista reforçou as visitas virtuais e, por causa do confinamento, acrescentou um novo filtro de procura. Material gráfico de última tecnologia para ver cantos e recantos sem sair de casa. 3D, panorâmicas, fotografias, vídeos, visitas interativas de mais de 1 600 casas. Para os profissionais, há o “vídeo visita”, novo serviço de visualização virtual e personalizada, que permite troca de informação em tempo real e sem deslocações. Há ainda outra funcionalidade que permite decorar casas, escritórios e armazéns de forma virtual.
“O mercado imobiliário pós-pandemia deverá estar em grande parte focado no desenvolvimento tecnológico. A distância social necessária criará resistência a deslocações desnecessárias e, por isso, os novos desenvolvimentos tecnológicos serão comuns em breve”, afirma César Oteiza, fundador e diretor-geral do Idealista Portugal. Os clientes têm sempre razão. “Outra das mais-valias que os nossos clientes encontram na visita virtual é a possibilidade de mostrar os imóveis a compradores internacionais sem que seja necessário deslocarem-se ao nosso país”, acrescenta Ruben Marques, responsável de comunicação.
Amélia Lopes está noutro ramo, na venda de autocaravanas. A empresa Quebom está em Leça da Palmeira e o online sempre foi importante. A pandemia acelerou o reforço desta componente com ideias que já andavam na cabeça. Os veículos podem ser vistos a 360º graus, com fotografias, por dentro e por fora. As visitas virtuais serão, em breve, potenciadas, desta vez com histórias em áudio sobre cada autocaravana. É um sistema inovador, uma maneira emotiva de mostrar veículos como se tivessem alma.
“Temos de nos adaptar a todos os clientes”, reconhece Amélia Lopes. O virtual é fundamental e “tem de existir”, até porque há clientes cada vez mais jovens. O contacto também. “Eu vejo este negócio como a mercearia local, a proximidade é inevitável”, sublinha Amélia.
O telefone da Plug-in Studio, em Matosinhos, começou a tocar mais do que o habitual nos últimos meses. Há cerca de ano e meio, a empresa fez uma prospeção de mercado para apresentar as maravilhas das visitas virtuais, zooms possíveis, detalhes impensáveis, informação áudio complementar. Os potenciais clientes achavam piada, mas não avançavam. Tudo mudou com a pandemia. O negócio na área virtual, até então residual e complementar à empresa de gravações de som e de spots, cresceu mais de 100%.
“Com todas as regras que existem agora é uma ferramenta com algumas armas que são poderosas”, refere Ricardo Britan, gestor da carteira de clientes. São imobiliárias, quintas do Douro, gabinetes de arquitetura, empresas de construção civil que querem mostrar em 3D o que ainda não existe. Ricardo Britan acredita que o caminho passa por aí. “A pandemia serviu para que alguns paradigmas e estigmas caíssem – a questão do teletrabalho é um deles.” O mundo virtual, na sua opinião, abre janelas de oportunidades e de investimento. “As visitas virtuais ganharam a importância que merecem ter.” Não é apenas uma questão global, é local também. “Se o comércio local está online, e é bem feito, pode chegar a muitos mercados.”
Estradas vazias, museus sem gente
O ensino também passou para o digital. “É uma modalidade de emergência em que se tenta garantir alguma normalidade à distância”, realça Luís Pedro, professor auxiliar no departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, investigador em projetos relacionados com o uso de tecnologia em contextos de educação e formação. A questão é transversal, ou seja, como usar a tecnologia para melhorar processos. Luís Pedro não crê que se possa voltar a fevereiro de 2020 e considera que a pressão da tecnologia será cada vez maior. “Vai-se perceber com maior acuidade, e com maior certeza, o que funciona e o que não funciona.”
Os museus foram obrigados a fechar por todo o Mundo, mas depressa abriram portas para mostrar o que têm dentro e adaptar programas. O Louvre, em Paris, o Guggenheim, em Nova Iorque, o Museu Britânico, em Londres, a Acrópole, em Atenas, Van Gogh, em Amesterdão. A Gulbenkian também. O digital não é novidade, a tecnologia entranhou-se no quotidiano há muito. “É uma ferramenta muito democrática, faz chegar conteúdos a muita gente”, sustenta Elisabete Caramelo, diretora de Comunicação da Gulbenkian. A fundação disponibilizou conteúdos online, como concertos gravados na temporada de música, e criou momentos de raiz como “Das duas, uma (obra do museu)”, obras escolhidas pelo público e comentadas por curadores nas redes sociais, atividades educativas diversificadas, visitas guiadas às coleções. A Orquestra da Gulbenkian também se juntou online, cada um em sua casa, para interpretar uma peça. O coro fez a mesma coisa e cantou “Liberdade II”, poema de Sophia de Mello Breyner, com música inédita.
A estratégia já existia e manter-se-á. “O investimento no digital é um investimento que queremos manter.” Mas a essência está num auditório cheio, nos concertos ao ar livre, na arte vista sem filtros ou ecrãs.
E, de repente, as autoestradas ficaram praticamente vazias e a Via Verde mudou ligeiramente a agulha da sua estratégia de promoção do destino Portugal para um país confinado em casa. A equipa editorial criou roteiros virtuais, de norte a sul do país, pela voz dos gestores operacionais da Brisa, que estão no terreno e conhecem as suas terras. A hashtag #ViajarSemSairdeCasa nasceu assim, num contexto especial. A ideia, explica Francisco Esteves, responsável pelo programa Viagens e Vantagens, foi “criar conteúdos com que as pessoas se identificassem e que tivessem um cunho pessoal.”
Um roteiro virtual que dá a conhecer praias da Arrábida, uma ponte secular de Ponte de Lima, o leitão da Mealhada, ruas de Coimbra, património de Alenquer, palácios e igrejas de Loures. Viajar sem sair de casa. É um ciclo que se abriu, um ciclo que prosseguirá o seu caminho. “É uma comunicação dirigida às pessoas que estão em casa e também uma forma de manter a ligação aos nossos clientes.” Francisco Esteves defende que a nova realidade implica mudanças e potencia a utilização dos suportes digitais. Nada de novo. Até porque, recorda, “o programa de fidelização é 100% digital.” O digital, sempre o digital, que veio para ficar.