
São 9.30 da manhã. Na Quinta do Monte Bravo, em Ervedosa do Douro, São João da Pesqueira, sentados no chão à sombra das videiras, dez trabalhadores abrem as malas térmicas e retiram a segunda refeição do dia. Há que repor energias para continuar mais uma jornada de vindima, que começou às sete da manhã e acaba às quatro da tarde, com duas pausas de meia hora para comer. Às 10 horas começa a segunda etapa da colheita. Em tempo de pandemia, o uso de máscara é dispensado por ser um trabalho ao ar livre, sob um calor abrasador e feito, maioritariamente, por homens e mulheres que trabalham juntos durante praticamente todo o ano. Nariz e boca só são tapados durante o transporte e em espaços fechados, procedimento comum no Douro.
Naquela dezena de vindimadores, Maria da Graça Almeida. 60 anos. Assume que tem cuidado. Quando sair da quinta, para alguns dos companheiros de jorna até pode ser o final do dia de trabalho, mas para ela ainda irá a meio. Em casa, à espera de cuidados, estará uma pessoa de risco para a covid-19: o marido, tolhido numa cama já lá vão 15 anos.
Maria da Graça foi ganhar o dia à vindima no Monte Bravo noutras ocasiões. “Quando tinha o marido numa instituição a recuperar.” Este ano é mais exigente, porque não só tem de estar a horas certas em casa, como ainda tem de “despir a roupa toda e tomar um banho” antes de se acercar do companheiro. “Ele não sai de casa desde o início da pandemia.” Na vinha, assume que o risco de ser contagiada é baixo. Porque para além de trabalharem ao ar livre “não andam uns em cima dos outros” e “nas carrinhas de transporte o uso de máscara é obrigatório”.
Nesta fase da colheita só andam no Monte Bravo dez vindimadores, mas quando começou, na última quinzena de agosto, e foi necessário dar gás ao trabalho para colher as uvas no ponto certo de maturação, chegaram a andar quase meia centena. Para além dos da equipa permanente eram mais umas dezenas de pessoas levadas por um empreiteiro agrícola. “Não trabalhávamos todos juntos”, assegura António Campos, 55 anos, que coordena os trabalhos na vinha e distribui o pessoal. “Se tivesse que acontecer alguma coisa connosco já tinha acontecido”, calcula, como que para justificar o à-vontade com os habituais companheiros da vinha.

(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)
Tal como no Norte, também no Sul é nos espaços fechados que as normas da Direção-Geral da Saúde são levadas à risca, até porque não se pode correr o risco de os trabalhos terem de parar. O presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), Francisco Mateus, diz que nas adegas está a ser necessário “manter as equipas com algum distanciamento” e mesmo “desfasadas em termos de horários ou colocadas em diversos setores”.
Na vinha é mais complicado manter a rigidez. Mas, dado que a vindima ocorre sob temperaturas altas, para conseguir cumprir os cuidados necessários de forma a prevenir contágios pelo novo coronavírus, “houve a necessidade de alguns produtores fazerem a vindima o mais cedo possível, tentando evitar as horas de maior calor”. E sempre que possível “recorre-se à vindima mecânica”. Dispensa muita mão de obra.
Menos produção de vinho
O trabalho no duriense Monte Bravo recomeça após a pausa das 9.30 horas. António Campos distribui três ou quatro pessoas por bardo com algum distanciamento. Ouve-se o ruído estaladiço do afastar das folhas das videiras, o tiquetique das tesouras a cortar os pés dos cachos e não muito mais. “Agora parecemos uns mudos. Antigamente isto era muito mais alegre, com as pessoas a cantar e tudo”, torna Maria da Graça, que entende que com animação “o serviço até rendia mais”. Revela saber de quintas onde “tocadores de concertina andavam à frente e atrás do pessoal”. Onde trabalha vai havendo dois dedos de conversa, mas “não é a mesma coisa”.

(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)
O trator passa entre os bardos para carregar os balsões cheios de uvas. “Não é como antigamente, que tínhamos de andar com eles às costas. E antes deles os cestos vindimos, que eram muito mais pesados”, recorda António. Depois são descarregados para dentro dos contentores em cima de uma carrinha, que por sua vez os levará para a adega. Não é fácil a circulação por caminhos e estradões estreitos e sinuosos. Se àquele sítio o batizaram como Monte Bravo não foi certamente por ser meigo. Nem em inclinação, nem em temperaturas. No verão, o proprietário, Francisco Rodrigues (filho), não raras vezes lê “50 graus” no termómetro. Não admira que algumas uvas estejam por estes dias a ficar passas, quase desidratadas.
Nesta quinta de 50 hectares de vinha a verter para o vale do rio Torto, que por sua vez desagua no Douro, espera-se que a vindima termine antes do fim de setembro. Francisco Rodrigues estima que a quebra de produção fique “entre 20% e 25%”.
Para este ano, a Associação de Desenvolvimento da Viticultura Duriense colocou o teto máximo de expectativas de produção nas 224 mil pipas de vinho (550 litros cada uma) – no ano passado a produção declarada foi acima da média e atingiu as 278 mil pipas.
Em termos nacionais, nas previsões para a vindima de 2020, o Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) avançou que a produção de vinho deverá diminuir no país em cerca de 3% face à campanha passada, para um volume na ordem dos 630 milhões de litros, o que corresponde a uma quebra de 2% face à média das cinco últimas campanhas. O IVV previu para o Douro um decréscimo na quantidade “entre 20% e 35%”, à semelhança das regiões vitivinícolas de Trás-os-Montes, Terras do Dão e Terras de Cister.

(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)
O presidente da Comissão Vitivinícola da Região do Dão, Arlindo Cunha, confirma que neste ano “a produção deverá ser 30% abaixo do ano passado”. A culpa é da “geada em algumas partes da região”, principalmente na fase inicial do ciclo da videira, e “muito míldio, sobretudo, em junho”. “Como choveu de mais em maio e junho, as videiras cresceram muito depressa, não houve tempo para lhes retirar ramagem e os produtos com que as curámos não conseguiram penetrar”, justifica o também produtor. Em contrapartida, “a qualidade deverá ser boa” porque “os cachos estão ótimos”.
Tendo em conta o “stresse que afetou as vinhas desde o início de setembro” e a “desidratação dos bagos”, Francisco Rodrigues temeu que o ano fosse menos bom, mas nesta altura do campeonato diz-se “surpreendido com a qualidade dos vinhos” que já começou a fabricar. Se numas zonas se produz menos, noutras colhe-se mais. Para o Minho (+9%), Lisboa (+5%) e o Alentejo (+5%). Em linha com a previsão do IVV, a Comissão Vitivinícola Regional Alentejana prevê que a produção de vinho aumente à volta dos 5% neste ano, para um total próximo dos 105 milhões de litros (no ano passado foram 98 milhões).
“Os relatos que temos tido dos produtores apontam para que se possa atingir esse aumento”, avança Francisco Mateus, embora “não tenha sido generalizado na região”, já que “houve viticultores com quebras”. Apesar do incremento previsto, o Alentejo fica “dentro da média dos últimos cinco anos, que não foram fabulosos em termos quantitativos”. Com capacidade produtiva de 23 mil hectares, a colheita alentejana deste ano “não será por aí além”, dado que a produção de referência “anda à volta dos 115 milhões de litros”.
Receio da chuva
O presidente da CVRA adianta ainda que as colheitas, que devem terminar na primeira semana de outubro, estão a decorrer de “forma tranquila”, com uma aceleração das maturações nas últimas duas semanas. Tal implicou a “necessidade de vindimar mais depressa do que se estava à espera, pressionando a entrada da uva na adega para evitar quebra de rendimento devido à desidratação”.
Esta é também a pressa dos produtores na Região Demarcada do Douro, onde este ano vitícola foi muito desafiante para os engenheiros agrícolas e enólogos, surpreendidos por variações bruscas de temperatura, chuvadas seguidas de muito calor, condições muito favoráveis a ataques de míldio e oídio. Os que não foram combatidos a tempo originaram perdas. As altas temperaturas também provocaram escaldão na vinha. “Um ano difícil em termos de tratamentos”, resume Francisco Rodrigues. Que agora só pede para o São Pedro deixar terminar a vindima sem chuva e evitar “a incidência de podridões nas uvas”, numa altura em que “70% do Douro ainda terá as vindimas por concluir”.

(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)
Também Arlindo Cunha está a cruzar os dedos. O presidente da Comissão Vitivinícola da Região do Dão olha para a previsão meteorológica e fica a torcer para que a chuva prevista para estes dias não venha deitar por terra a estimativa de vinho de boa qualidade, uma vez que na região que lidera ainda falta colher praticamente todos os tintos. “Se forem dois ou três dias com precipitações fracas ou moderadas, tudo bem. Passados três dias, podemos vindimar e não há impactos ao nível da podridão. Mas se for uma semana ou mais, como já aconteceu aqui, será mais complicado. Vamos esperar que o São Pedro seja nosso amigo.”
O trabalho da vindima é duro, quantas vezes sem folgas, porque com muito calor as uvas mirram de dia para dia. Há que apanhá-las o quanto antes. Mas, ao mesmo tempo, é das atividades mais alegres e compensadoras do ano na vinha. Apesar da vida contada ao minuto, Maria da Graça Almeida está disponível para continuar a cortar uvas nos próximos dias. E nos próximos anos. “Enquanto o senhor engenheiro me cá quiser, eu continuarei a vir.”