Viciados em séries

A forma como as séries são consumidas tem vindo a mudar drasticamente (Foto: Mohamed Hassan/PxHere)

Atualmente, a única distância entre o espectador e a sua série preferida é o genérico. Importa perceber que o acesso exacerbado a milhares de conteúdos todos os dias, a qualquer hora, pode ter tanto de interessante como de preocupante.

Num café portuense, isolada dos restantes clientes, Maria Amaral. A jovem, de 27 anos, aproveita o tempo chuvoso para assistir à segunda temporada de “You”, na companhia de um descafeinado. Esteve a aguardar o dia indicado para o fazer, porque precisava de “colocar o sono em ordem”. Não é muito frequente, quando se dedica a ver séries. “Trabalho ao fim de semana, de noite”, interrompe Maria. “Chega domingo e penso que vou aproveitar para entrar nos eixos, mas não acontece.” A fotógrafa freelancer descobriu a Netflix há cerca de um ano e meio, mas foi rapidamente conquistada pela Nos Play, com a estreia exclusiva de “Handmaid’s Tale” em Portugal. Maria confessa que, inclusivamente, teve de fazer uma pausa de dois meses, após sucessivas sessões de “binge-watching”. “Na altura do ano novo fiquei cinco dias sem dormir, porque estava a trabalhar e tinha muitas dores nas costas.” Começou a assistir à série protagonizada por Elisabeth Moss como alternativa às insónias. “Aquilo mexeu mesmo com a minha cabeça”, recorda, de olhos postos no ecrã. Por sofrer de ansiedade, deixa-se viciar facilmente pelas séries. Mesmo quando a fazem sentir-se mais tranquila. “Good Place”, exemplifica, “ajuda no sentido em que não tem grande conteúdo e é puro entretenimento”. Ao contrário de “Stranger Things”, a que não foi capaz de dar continuidade. “Chegava ao ponto de adormecer com aquilo ligado e sonhava com o que estava a acontecer, porque ouvia o som”, conta. Mesmo em contexto de trabalho, costumava assistir a séries nas horas mortas. “Eram cinco minutos que se transformavam em 45”, explica, entre risos. “Ainda assim, nunca cheguei a faltar ao trabalho, porque o dinheiro é necessário.”

Maria Amaral gosta de ver séries no café
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Maria faz uma breve pausa para refletir. “Acho que 90% da população deve passar pelo mesmo”, conclui. “Os sites pirateados mais conhecidos encerraram e os que existem são muito lentos”, o que, por sua vez, resultou numa crescente adesão às plataformas de streaming, em que a “a oferta é imediata”. Em relação a valores, a fotógrafa não acha as opções muito caras, “especialmente a Nos Play”, sendo que está inserida no pacote da Nos que partilha com a família. “Abdiquei de canais como a TV Cine e acabei por ter acesso a filmes e séries na mesma.”

Rápido, barato e estimulante

A forma como as séries são consumidas tem vindo a mudar drasticamente. Diz-se “adeus” às semanas de espera e “olá” às temporadas completas, disponibilizadas de uma só vez. “Não percam os próximos episódios”, ainda se ouve, remetendo a velhos tempos e a uma inegável nostalgia. Tempos em que a Netflix não era uma plataforma de “streaming”, mas um serviço americano de entrega de DVD pelo correio.

Estudos recentes da investigadora Emily Walton-Pattison revelam que o “binge-watch” é considerado quando “o utilizador consome dois ou mais episódios de uma série seguida” ou “mais do que um episódio da mesma série em dias consecutivos”. O conceito aparece associado a um estado de “total imersão”, onde outras responsabilidades sociais e tarefas diárias são subestimadas, como tomar banho ou vestir. Há também uma “falta de consciência no controlo do tempo”, priorizando a duração e o conteúdo da série.

O fotógrafo Carlos Cirilo passa as noites de sexta para sábado agarrado às séries
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

No conforto da cama, com o computador em cima das pernas, Carlos Cirilo, 28 anos, viaja pelo passado. “Antigamente, com o Blockbuster, gastávamos o equivalente a 1,50€ por filme, completando 8€ no final da semana”, valor que se aproxima da mensalidade exigida pelas plataformas de streaming. Assim como Maria, descobriu este universo há pouco mais de um ano. Netflix e HBO são as preferências de Carlos, que é o único utilizador dos pacotes que paga. “Vejo séries de sexta para sábado, até às seis da manhã, na companhia de um copo de vinho do Porto” e da sempre fiel cadela Kila. Também fotógrafo de profissão, afirma que o que mais o atrai é “o visual e a componente técnica”, não descurando a curiosidade que sente no fim de cada episódio. “Não acho que seja caro, para a diversidade de temas e conteúdos”, defende. Contudo, não acredita que dormir menos de três horas para assistir a séries seja saudável. “Eu, por exemplo, vou para o trabalho e sou capaz de adormecer em qualquer canto”, confessa. “Mesmo lá, quando não tenho nada para fazer, vejo dois ou três episódios.” É com “Mindhunter”, de Joe Penhall, que ocupa esses momentos.

Uma adição “silenciosa”

Rita Morais, psicóloga clínica, considera que “o simples ato de assistir a séries não aparenta ser, por si só, um fator decisivo, indicador de doença mental”, mas sim quando o comportamento se sobrepõe a tarefas do quotidiano e o espectador apresenta sintomas de ansiedade, depressão ou alterações de humor. “Nesse sentido, podemos estar perante uma dependência ou perturbação da adição”, define a especialista. Mas será que quem tende a usar excessivamente a TV, e visualiza séries consecutivas, já padece de alguma perturbação depressiva e sentimento de solidão?

A psicóloga realça que não existem evidências suficientemente conclusivas que justifiquem a inclusão dessa questão no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais. Assistir a duas séries seguidas poderá não ter o mesmo significado e impacto psicoemocional em todas as pessoas. “É crucial contextualizar, caso a caso, conhecer as diferentes situações clínicas e identificar a presença ou ausência de risco.” Considerando outros casos silenciosos e progressivos de adição, inúmeras pessoas podem não ser capazes de reconhecer qualquer tipo de desconforto ou mal-estar emocional.

“Já vi mais de 14 mil episódios em toda a vida”

Catarina Nogueira, rececionista, confidencia que tenta “despachar” tudo o que tem a fazer no local de trabalho, de forma a reservar algum tempo para assistir a séries. Partilha o pacote “premium” da Netflix com três amigos e não se arrepende. “O conteúdo é muito bom e acho que até é acessível”, comenta. Sentada no sofá da sala, a jovem, de 24 anos, procura incessantemente por algo no telemóvel. “Ah!” – faz-se luz – “Já vi mais de 14 mil episódios em toda a vida”, revela, com entusiasmo. Consegue ter acesso aos resultados através de uma aplicação. “São 13 meses e 19 horas”, acrescenta. Entre os culpados estão “Don’t Fuck with Cats”, “La Casa de Papel” e “13 Reasons Why”, exclusivos da Netflix. “Acabam sempre de forma a que tenhamos necessidade de continuar a ver.” Por consequência, passa “noites sem dormir, com trabalho no dia seguinte”. “Já evitei assumir compromissos porque tinha um encontro com uma série”, diz, em tom de brincadeira. Tarefas diárias, como tomar banho ou preparar a refeição, não são impedimento se o objetivo for aliviar um pouco a curiosidade. Catarina também assiste a séries em transportes públicos devido à possibilidade de descarregar episódios diretamente da Netflix. “Às vezes, os meus amigos ligam-me e eu não atendo, porque estou a assistir [a episódios] no telemóvel.”

“Às vezes, os meus amigos ligam-me e eu não atendo, porque estou a assistir [a episódios] no telemóvel”, diz Catarina Nogueira, entre sorrisos
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)
Em Lisboa, a “Notícias Magazine” encontrou João Simões, tradutor, de 28 anos, e assumido entusiasta pelo tema. Seja no lar, ou no comboio a caminho do trabalho, não rejeita a possibilidade de mergulhar no ecrã, a partir das contas da Netflix e da HBO da namorada. “Se eu estiver mesmo em pulgas para ver o que se segue numa série, até o faço durante a hora de almoço.” Em casos pontuais, junta várias pessoas na casa de um amigo, utilizador da Amazon Prime Video.

João, contudo, não se considera um viciado, e encara a atividade como um simples “hobby”. “Tenho uma abordagem mais regrada, e tento ver apenas um ou dois episódios por dia.” Algo que, por sua vez, não se manifesta em relação a “Russian Doll”, da Netflix. “Tem oito episódios de 20 e poucos minutos. Por isso, assisti em menos de dois dias.” Ou mesmo “The Witcher”, inspirada nos romances de Andrzej Sapkowski, que deram origem a aclamados jogos eletrónicos. “Como sou fã do jogo, passei duas tardes inteiras das férias de Natal a ver a série”, admite. “Mas, no geral, tento não o fazer para não me cansar e fazer uma pausa para outras séries.”

Quando questionado sobre possíveis efeitos na sua saúde, o jovem garante que não sente “nada muito negativo”. Pelo contrário, denota uma “ansiedade positiva”. “Se me apegar muito a uma série, gosto de discutir teorias e possíveis cenários sobre o final com outras pessoas que também estejam tão entusiasmadas.”

O clínico Eduardo Ramadas da Silva associa o fenómeno à “cultura atual das sociedades ocidentais”, marcada pela “impaciência e gratificação instantânea”. É também uma consequência do de- senvolvimento tecnológico que pode ser identificada tanto nas redes sociais como noutros serviços. “As plataformas de streaming são apenas o mais recente dos serviços a capitalizar essa procura”, defende o diretor da Clínica Villa Ramadas. “À distância de um clique, as séries podem ser consumidas no auge da comodidade: onde queremos, quando queremos, sem necessidade de espera e sem interrupções.” O formato de vídeo é, por si só, particularmente estimulante e, dessa forma, “prende facilmente o espectador ao ecrã”. Eduardo Ramadas realça ainda que o mais importante “é o estabelecimento de limites”, que devem ser impostos pelos pais ou cuidadores, numa fase inicial, “para que na idade adulta o indivíduo consiga impô-los a si mesmo”.

João Simões não se considera um viciado. Diz sentir uma “ansiedade positiva”
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Contactada pela “Notícias Magazine” relativamente à possibilidade de alterar a disponibilização dos conteúdos, priorizando o lançamento semanal, a Netflix Portugal descarta essa hipótese, que chegou a ser divulgada em alguns sites, alegando que o que move, essencialmente, a empresa “é dar poder ao consumidor”. Ou seja, permitir que o espectador controle o entretenimento de que mais gosta. No que diz respeito às restantes plataformas, não existem registos de que possam vir a alterar o modelo “binge”, nem foram obtidas respostas que sustentem a ideia.

Até ao momento, não foi admitida nenhuma pessoa na Clínica Villa Ramadas devido ao “binge-watching”. “Contudo, é algo que já começámos a identificar em alguns pacientes como uma realidade”, remata o diretor Eduardo Ramadas da Silva. Uma nova temporada para os viciados em séries.