Uma manhã na vida
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Foi um 0-0, ou um um-a-um (hum, não me lembro de alguma vez ter começado tão nasalado, à futebol…), o julgamento terminou empatado. Nem vencedores nem vencidos. Um caso muito enrolado ali no miolo. Já no capítulo disciplinar, uma desgraça.
Um dia, de manhã, ao ver os homens das mudanças a carregarem os seus móveis para uma camioneta, uma mulher gritou na rua:
– Ladra, estás-me a roubar!
E depois no café da rua terá feito o mesmo, e várias vezes, muita gente viu e Campo de Ourique começou a ferver. Mas cada lado viu só o seu lado, por isso deu empatado. Disse a juíza na sentença:
– Temos aqui dois blocos, duas versões, e no nosso entender nenhuma das versões nos mereceu maior credibilidade do que a outra. Ambas são plausíveis, ambas podiam ter acontecido, mas a verdade é que as testemunhas todas que ouvimos ou têm uma relação muito próxima com a arguida, ou têm uma relação muito próxima com a assistente, e nenhuma delas me pareceu melhor do que a outra.
Os acontecimentos do café não foram provados, só a gritaria no passeio. A mulher sentia-se roubada, não há dúvida: alugara um consultório dentário a outra mulher que alegadamente saiu sem pagar as rendas e levando mobiliário que pertencia ao local. A dona ainda estava a pagar os móveis. A juíza falava com calma, recuperando “o contexto”:
– O que nós temos aqui é um episódio de vida, é uma manhã. É uma situação em que as pessoas estão exaltadas, zangadas, há um litígio latente, e obviamente que a assistente se terá sentido ofendida e perturbada e nervosa e envergonhada por alguém estar na rua a chamar-lhe “ladra”. Ninguém gosta de passar por uma situação dessas.
Fez uma pausa. Ia entrar no centro do caso: as consequências para a ofendida. Aquela manhã estragou-lhe mesmo a vida toda?
– Agora dizer-se que foi isso que causou a depressão que depois teve… A depressão certamente existiu… as pessoas vieram aqui, há documentos no processo sobre isso… mas dizer que “foi por causa desta ofensa nesta manhã que depois com isso, e só por causa disso”, a assistente fica com uma depressão que leva imensos meses a passar, que lhe tira o sono, lhe tira a alegria, lhe tira tudo, isso a mim parece-me um exagero. Não se fica com uma depressão só com uma coisa, há muitas razões na vida.
No banco dos réus, os ombros da acusada subiram e desceram pneumáticos, respirando de alívio.
– Foi aqui referido que Campo de Ourique é um bairro muito pequeno. Ora o tribunal também conhece Campo de Ourique. É um bairro onde as pessoas se conhecem, mas não é assim um bairro tão pequeno. Já terá sido em tempos… Dizer que as pessoas lhe vinham perguntar na rua “mas andaste a roubar, andaste a roubar, andaste a roubar?” As regras da experiência ditam que isto não é assim. Pode haver até cochichos e mexericos, como se costuma dizer mas, a não ser que tenham muita confiança, e aí poderão perguntar “o que é que se passou?, vieram-me dizer isto…”. Agora, até os vizinhos que não têm muito à-vontade virem perguntar-lhe se a senhora tinha andado a roubar, não faz sentido!
A semântica do caso: chamar ladra a alguém “é um juízo, é uma opinião, é qualificar, adjectivar uma pessoa”. Já dizer “estás a roubar-me”, é uma acusação concreta, “mas a prova de que a senhora roubou ou não roubou depende de uma sentença transitada em julgado que será proferida noutro tribunal”.
– Se queria proteger os seus bens, dizia aos senhores da mudança: “Os senhores parem imediatamente de fazer esse carregamento porque esses bens são meus e eu já chamei a polícia”.
E por isso a mulher dos gritos foi condenada, por injúria, a 50 dias de multa a sete euros por dia, uma pena de 350 euros. A ofendida pedia uma fortuna pelo infortúnio de lhe chamarem ladra no seu bairro. Mas só receberá 500 euros de indemnização, os únicos danos morais que se apuraram em Campo de Ourique, numa certa manhã da vida.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)