Rui Cardoso Martins

Uma fadista noutro palco

(Ilustração: João Vasco Correia)

Aquela meia hora foi como se alguém chorasse um triste fado de abandono, mas com refrão cómico, e pelo meio dois ou três versos marialvas, uma estranha mistura nesta arte. Património da humanidade, desamor português, andava a desgraçadiiinha no gamanço. Uma tristeza já conformada. Um desafio neste vale de lágrimas. A sensação talvez viesse da voz rouca da mulher, talvez da cabeça altiva como se – entrando de calças e casaco escuro no tribunal – cantasse de xaile aos ombros, vestido de lantejoulas, purpurinas nas pálpebras. A procuradora pediu:

– A senhora é artista, mas escusa de mexer no microfone.

– É porque sou baixinha…, respondeu, e pôs as mãos atrás das costas.

Mas era muito difícil escapar: como responder num momento capital da vida sem ajustar o microfone no sítio? Não é também um palco o banco dos réus? E assim, de vez em quando, a pulseira subia ao microfone da gravação do depoimento, a dona da pulseira lembrava-se que hoje não actuava nos Estados Unidos, nem numa grande sala de Paris, ou do Rio, nem numa revista do Parque Mayer, era o Campus de Justiça de Lisboa e, num movimento de cena, retirava as mãos, voltava à posição de pomba na praça.

– Tem alturas em que trabalho muito, outras em que não trabalho nada.

Em 2018, no interior da sua residência – lia a juíza a acusação – “a ofendida decidiu terminar a relação entre as duas”. E a fadista deu-lhe “pontapés nas pernas e costas e agarrou-lhe pelos cabelos e puxou-os. Isto aconteceu no dia em que a ofendida retirava os seus pertences da casa para se ir embora.”

– Isso não corresponde à verdade.

– Não vivia nesta casa?

– Vivia e vivo.

– E a senhora L…?

– Podemos dizer que sim, que vivia na minha casa.

– Mas tinham relacionamento?

– Na altura, não. Abri-lhe a casa porque não tinha para onde ir.

– Como se fosse uma amiga?

– Pode-se dizer que sim.

Pode dizer-se muito mais. A voz da arguida movia-se nos tons graves e agudos das cantoras experientes, um fado falado.

– Quando cheguei a casa, eu vinha de Castelo Branco de um espectáculo, começou.

E na sala deu com L., outra mulher que conhecia e duas pessoas desconhecidas que ajudavam a tirar as coisas de casa. Uma carrinha lá fora. Várias coisas não pertenciam a L., como um isqueiro avariado, e só não lhe levava a mala de viagens porque precisamente acabara de viajar com ela… Ainda há dias, lembrou-se a fadista, deu pela falta de um cinto: “olha, este também foi…”

– De certa forma, já estava à espera que isto acontecesse. Pode ter havido uma troca de palavras. Amena não posso dizer que tenha sido, mas também não foi nada de transcendente.

– Não lhe bateu?

– Não sou pessoa de bater em ninguém. Nem pessoas, nem animais, não sou uma pessoa agressiva.

A juíza e a procuradora falavam-lhe em L., a sua antiga namorada, a mulher com quem viveu, mas a fadista ficava pensativa, uma interrogação erguia-se diante dos olhos, como se não a conhecesse.

– Ah, ela é L.? Eu só a conheço como D., [disse o nome artístico], não L. Eu já estava à espera. Porque a forma dela funcionar é essa. De repente sair, e as pessoas ficarem sempre…

Disse que um dia lhe abriu as portas, mas só para ajudar.

– Foi mais um abrir as portas a quem não tem para onde ir.

Mas sabia a arguida que essa senhora sofria do coração? Bom, respondeu, ela fazia espectáculos e fazia aquela vida toda. Mas sabia que ela estivera em perigo de vida? Sim, mas isso não foi nada comigo, respondeu de novo. Ela até lhe dissera para arranjar uma casa para não andar sempre com os saquinhos atrás.

– Mas ela podia ficar em pé seis horas?

– Ah, isso era uma chantagem que ela fazia. Até ao dia em que eu lhe disse: tu não gostas mesmo é de trabalhar…

“Je ne supporte pas d’entendre le bruit d’une porte ou d’un coeur quis se ferme.” Não suporto ouvir o barulho de uma porta ou de um coração que se fecha, escreveu Antoine Blondin. Até em francês dava um fado.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)