A dor de viver uma pandemia não se vê, mas já se sente

É durante o lento regresso à normalidade que algumas mazelas psicológicas podem surgir (Ilustração: Bárbara R.)

Os efeitos psicológicos mais imediatos da pandemia já se começaram a fazer sentir, mas é provável que surjam mais com o tempo e com a tentativa de regresso à normalidade.

Um verdadeiro balanço sobre o impacto da pandemia na saúde mental dos portugueses só pode ser feito a posteriori, mas já surgem dados que dão um vislumbre dos efeitos. Um inquérito do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica mostra que 35% dos inquiridos considera que a sua saúde mental está pior do que antes da crise.

O questionário “Opinião Social” do Barómetro Covid-19, da Escola Nacional de Saúde Pública, revela que um quarto dos portugueses diz sentir-se ansioso ou triste “todos os dias” ou “quase todos os dias”; que um terço reportou distúrbios de sono; 16% admitem comer mais doces, gorduras ou comidas mais calóricas; e 8% reconhecem estar a fumar mais ou a beber mais álcool. E, em meados de abril, foram divulgados dados da consultora IQVIA que mostram que durante o mês de março foram vendidas 2,2 milhões de embalagens de antidepressivos e ansiolíticos, um aumento de 28% em comparação com fevereiro de 2020 e de 27% em relação a março de 2019.

A psicóloga clínica Marina Baptista é uma das muitas profissionais que se disponibilizou para, gratuitamente, dar apoio psicológico online durante esta pandemia, e os principais motivos de pedido de apoio recebidos têm estado relacionados com perturbações de ansiedade. “É frequente a referência a stresse, irritabilidade, perturbações do sono, sentimentos de solidão e autodesvalorização, dificuldades em gerir e conciliar as várias dimensões da vida, que agora parecem estar misturadas entre as responsabilidades parentais e profissionais”, explica a psicóloga.

Mas apesar de o cenário parecer trágico, também há razão para esperança: “A maior parte das pessoas experienciará esses sintomas de forma ligeira e encontrará formas de os autorregular, ultrapassando-os sem recurso a ajuda especializada”, defende o médico psiquiatra Pedro Morgado, docente na Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho e investigador no ICVS/3B’s.

Situação diferente será a das pessoas com doença psiquiátrica, porque as circunstâncias podem descompensar o quadro já existente. Pedro Morgado acredita que “é preciso um olhar muito atento a estas pessoas nesta fase, procurar manter as consultas por meios de contacto alternativos – como telefone e videochamada -, assegurar que não há falhas no acesso a medicação e promover a manutenção dos tratamentos de psicoterapia”.

Apoios, só especializados

Seja quando há uma descompensação, seja quando existem sintomas novos que são expressivos ou prolongados no tempo, é importante pedir ajuda. E é importante pedir ajuda no sítio certo. Marina Baptista frisa que, não sendo possível o contacto com um técnico de saúde mental que já tenha acompanhado o doente, deve-se em primeira instância aceder à Linha SNS 24, acionando a tecla 4 para apoio psicológico. Isto porque, frisa a psicóloga clínica, “desde que se iniciou o estado de emergência, nasceram inúmeras formas de apoio voluntário e gratuito na área da saúde mental, nomeadamente nas redes sociais”. E embora positivos, estes recursos podem também ser perigosos. “Há muitas pessoas que, sem o devido conhecimento técnico para este apoio que estão a prestar, poderão inadvertidamente intensificar alguns dos sintomas indesejáveis em vez de os aliviar ou controlar”, alerta.

(Ilustração: Bárbara R.)

Para os profissionais de saúde na linha da frente no combate ao SARS-Cov-2 e que estão expostos a níveis mais elevados de ansiedade e exaustão, há iniciativas como o projeto “Cuidar de Quem Cuida”, da Escola de Medicina da Universidade do Minho, que consiste na realização de teleconsultas de psiquiatria gratuitas, podendo ser disponibilizada intervenção psicoeducativa, psicoterapêutica breve, de suporte ou psicofarmacológica.

Pedro Morgado, o responsável pelo programa, conta que já fizeram à volta de 100 atendimentos e que os sintomas mais frequentes são quadros de ansiedade, sintomatologia obsessivo-compulsiva e, mais raramente, o surgimento ou agravamento de sintomas de natureza depressiva. “A maioria dos profissionais necessita nesta fase de boas condições de trabalho e de proteção individual, de períodos de descanso adequados e de justiça e proporcionalidade na distribuição do trabalho dentro de cada serviço. É normal que experienciem momentos de sofrimento e angústia que serão ultrapassados com o tempo. Mas nos casos de sintomas mais graves, deve proporcionar-se apoio especializado. E é isso que o programa permite – orientar de forma rápida e ágil situações que necessitam de consulta.”

E depois?

Alguns efeitos da pandemia não são imediatos. É durante o lento regresso à normalidade que algumas mazelas psicológicas podem surgir. A experiência da epidemia de SARS de 2002 a 2004 mostrou que, além das perturbações depressivas, obsessivo-compulsivas e de ansiedade, há outro distúrbio que pode surgir: o stresse pós-traumático. Pedro Morgado lembra que “todas as situações extraordinárias têm o potencial de marcar as pessoas” e que, embora seja difícil fazer comparações, “há a evidência de que situações com algumas semelhanças no passado estiveram relacionadas com casos de stresse pós-traumático”, embora não seja o problema mais frequente.

Há também quem questione que marca vai deixar este período de distanciamento social nas relações. Será que vai quebrar ou redefinir os laços? Marina Baptista não acredita que quebre. Pelo contrário. “As pessoas estão de uma maneira geral necessitadas de contacto com os outros, precisamos do toque, de nos sentirmos perto, de abraçar, beijar, e não me parece que isso vá mudar. Sentimos necessidade de estar com amigos e familiares, quando nos sentirmos seguros provavelmente será das primeiras ações, marcar jantares, matar saudades de conviver.” Mas admite que é provável que, “numa primeira fase, sejamos cautelosos principalmente nos contactos com estranhos”.

É essa a principal preocupação futura da psicóloga social Luísa Lima, professora no ISCTE-IUL: a ideia de que não vamos confiar nas outras pessoas. “As nossas relações e a vida em sociedade são baseadas num pacto de confiança, e este medo de ser contagiado pode levar ao medo e distanciamento do outro”, avisa. Luísa Lima teme que muita gente se mantenha próxima apenas do núcleo mais íntimo, de família e amigos chegados, fechando-se ao resto. “Faz-nos falta todo esse lado da vida social que não tem que ver com as relações íntimas, que nos fazem sentir únicos, mas antes com aquelas que nos fazem sentir iguais aos outros: a conversa na loja com a senhora da fruta, a conversa de circunstância com o vizinho no elevador. Esse género de relações é uma grande parte da nossa vida social e os estudos mostram que também são importantes para o bem-estar e para nos sentirmos sincronizados com o mundo à nossa volta. Ter de abdicar delas é preocupante e triste.”

Acompanhamento psicológico por telefone

Para fazer frente a situações de ansiedade aguda, fragilidade psicológica ou agravamento de doença psicológica existente, está disponível através da linha telefónica SNS24 (808 24 24 24) um atendimento de aconselhamento psicológico (opção 4). Disponível 24 horas por dia e sete dias por semana, o serviço é realizado por psicólogos clínicos que desenvolvem uma abordagem focada na intervenção psicológica no contexto de crise.