Rui Cardoso Martins

Um repositor que não repõe, uma mulher sem luz

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Um guarda prisional levou-o ao banco dos réus, tirou-lhe as algemas, voltou à porta da sala e pendurou as algemas no cinto. O preso tinha corpo de alfinete e resumiu a sua vida:

– Tenho duas meninas que estão bem, graças a Deus. Estão com a mãe. Eu trabalhava no Minipreço. Era repositor.

Ficou desempregado, depois foi preso. A 12 de Fevereiro de 2020, foi acusado da seguinte série sobre a ex-companheira: dois socos, pontapés e chapadas em várias partes do corpo, cuspiu-lhe na cara, cortou um cabo eléctrico e, apertando-o nas mãos, pelo menos uma vez lhe pôs o braço em torno do pescoço, gritou bato no meu pai, bato seja em quem for, mato quem se meter comigo, vou fazer as coisas mesmo à homem. Disse ainda que a mulher andava com outros homens e a fazer-lhes tudo o que uma cabeça furada pelo ciúme pode imaginar. Foi preso depois de lhe arrombar a porta.

– Quer dizer alguma coisa?, perguntou-lhe a juíza.

– Não desejo falar, disse o preso.

A ex-companheira falou de longe, através de uma gravação. Nós estávamos no presente a ouvir o que ela dissera no passado para memória futura. Uma voz que vinha lá de longe, da caverna dos pesadelos do amor. A voz do gravador encheu a sala de estática.

– A princípio corria bem. A partir de há dois, três anos para cá é que as coisas começaram a correr muito mal.

– Sabe porquê?

– Derivado ao consumo de droga que ele tinha.

– Antes não consumia?

– Ele consumia, mas não era assim. Sempre consumiu cocaína. Eu já consumi quando era mais nova, agora não. Desde que o meu filho nasceu, o mais velho. O ponto de viragem foi quando perdi os meus filhos. Houve mais nervos.

– Como?

– A radical mudança dele foi quando foi preso a primeira vez. Lembro-me de várias coisas que aconteceram. Tentava-me matar, sufocar. Manipulava-me. Eu era obrigada a ir para o Minipreço porque não podia ficar em casa. E já nem sequer tínhamos uma relação, para mim deixou de fazer sentido.

– Quando foi isso?

– Quando perdi os meus filhos. O mais velho saiu de casa porque presenciou o pai… o pai não, o Pedro a bater-me. O mais novo era muito pequeno, era bebé. O mais velho é que não é filho dele. Ele a bater-me à frente e o meu filho deu-lhe um pontapé: “Não bates na minha mãe!”. Tinha seis anos. Foi para a escola dizer que o padrasto batia na mãe e assim começou esta confusão toda. Isto aconteceu uma ou duas vezes mais. Ele era muito ciumento. Eu não podia ir a lado nenhum sozinha. Não podia ir ao café, as perseguições eram constantes. Na cabeça dele, se eu ficava em casa era para ir ter com outras pessoas. Mas eu não queria ir com outras pessoas, eu só queria ficar sozinha! Dizia-me “puta, vaca, se não és minha, não és de ninguém”.

Um dia, disse-lhe que ali não era uma pensão e que tinha de sair.

– Partiu-me a casa toda. Tenho as janelas todas partidas. A polícia ia lá e, em vez de o levarem a ele, levavam-me a mim, era ele quem ficava em casa. Nós já tínhamos um papel em como não podia estar perto de mim, nem estar em minha casa, mas ele não ligava. Vinha na mesma, dormia na sala. Um dia, atirou-me um pára-sol dos bebés e magoou-me os dentes. E eu passo aqui a mão e não sinto os dedos.

Para tentar estrangulá-la, usou um cabo de telemóvel.

– Ele ultimamente não estava a trabalhar como repositor no supermercado Minipreço?

– Não, não trabalhava no Minipreço, estava a pedir, ele é que dizia que trabalhava. Eu sempre achei que não era vida para ele, estar à porta do Minipreço a pedir. Não fazia sentido nenhum, uma pessoa que é inteligente e tem capacidade para mais, estar à porta de um supermercado a pedir!

Com a covid-19, a mulher está sem dinheiro.

Não é vergonha nenhuma estar na fila duma carrinha para comer.

Deixou de pagar as contas. Há seis meses que não tem água, de dia vai à fonte. Há seis meses que não tem luz, à noite a escuridão.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)