Valter Hugo Mãe

Um livro novo


Dentro de escassos meses verei meu novo livro editado e, ao contrário do costume, não parto da premissa da ficção mas da realidade.

De cada vez que vejo um novo livro editado tenho a impressão de que assumo o mundo como diferente. Os livros, profundamente exercícios de imaginação, inscrevem-se nas nossas biografias e provocam alterações indeléveis no que os outros pensam e dizem de nós. Provocam mudanças concretas nas nossas condutas e propõem uma consciência mais clara e imediata de determinados assuntos no nosso espírito. Não nos permitem o estado anterior das coisas. Não admitem que regressemos ao que havia antes de terem sido pensados, escritos e publicados.

Dentro de escassos meses verei meu novo livro editado e, ao contrário do costume, não parto da premissa da ficção mas da realidade. Às voltas com um extenso conjunto de textos que fui guardando acerca da minha infância e adolescência, acabei por construir algo mais do que um repositório de lembranças, algumas ofuscantes. Julgo que inventei um romance da minha própria biografia, e digo assim porque agora me parece importar pouco que seja verdade ou mentira o que ali vai escrito. Será a mim, e quase unicamente a mim, que deve importar essa certeza. Ao que o leitor acederá valerá tanto quanto outra história qualquer. Porque nos meus romances também nunca terá sido fundamental entender onde acabava a ficção e começava a realidade.

De todo o modo, escrever o mundo fosco da infância é a absoluta maravilha. Peneirar tanto que entendemos mal, sobre que não tínhamos informação bastante, tantas meias-verdades que nos diziam, o tamanho do medo e da esperança, a mania de nos fazerem crer que existiam sonhos infinitos para serem realizados. Tudo propende para um acesso mais emotivo do que factual. Usamos a infância, enquanto adultos, como um lugar de certo folclore afectivo que nos pode enternecer mas que dificilmente deixamos que nos conduza a uma inspiração. Julgo que escrevi justamente este livro agora para fazer o contrário. Julgo que anotei e guardei tanto da minha infância porque sentia há muito que ela me apontaria o futuro novamente. Para que me relembre do quanto quis a simples benignidade das coisas. Para que me lembre do que justifica a alegria, que não é um alarde momentâneo, impune e sem compromisso. A alegria perdura se soubermos passar por ela de consciência limpa. No regresso de alguma dificuldade, o que nos poderá valer é a lisura de a havermos sentido sem ferir alguém.

Abeirando a saída deste livro pareço vestir-me para ser um homem novo. Como esperando que todos notem alguma diferença indisfarçável, muito mais do que uma roupa a estrear ou um penteado original, que já não se arranja na cabeça de um careca. As folhas impressas do livro que tenho aqui por casa observam-me com impaciência. Escrever é sempre uma ansiedade de diálogo, mas é também uma vontade imparável de sermos mais, muito mais, do que já fomos. Talvez nos tornemos irreconhecíveis. Ou, quem sabe, nos expliquemos e entendamos para sempre.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)