Rui Cardoso Martins

Um ladrão inédito

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Dada a sua ausência no tribunal, o que lamento, porque queria ver-lhe pelo menos as costas, farei apenas o elogio das qualidades e mais ainda admiráveis defeitos do ladrão de carros Manuel. Não sei que cara tem. É um dos seus atributos evasivos, num mercado concreto. Apresenta-se, tem os papéis em ordem, o trabalho é bom, os patrões gostam dele. E de súbito, como dizia Dinis Machado, desaparece no ar como Mandrake, aliás, desaparece ele e o carro e até viaturas pesadas, ilusionismo que devia estrear em Las Vegas. Depois – mistério maior – reaparece de forma ridícula, apanhado numa portagem ou lamentando a sorte num quartinho de vão de escada. Manuel é um inédito. Trago dois casos. Trabalhava na limpeza e arrumação de carros no Aeroporto de Lisboa. Contou a primeira testemunha:

– Apresentámos queixa por ter desaparecido uma viatura. Contactámos o último cliente e disse que a tinha devolvido. A polícia mostrou-nos, com câmara de vigilância, que tinha sido ele. O nosso pensamento estava longe do furto, no primeiro instante. Os clientes não devolverem, é habitual…

Mas com um funcionário que trabalha para eles – mesmo que em outsourcing – só aconteceu uma vez. Manuel é um inédito.

– O carro tinha identificador de Via Verde. E até foi através disso que apanhámos a viatura numa portagem. Estava ele ao volante.

– Receberam as facturas da Via Verde por pagar?

– Recebemos. A maioria era na portagem de Alverca.

– E quando é que vos foi devolvida a viatura?

– Foi-nos entregue num depósito da PSP. Se não me engano, apanharam o veículo numa das suas passagens frequentes.

Tinham passado meses. Outra testemunha, então segurança do parque, disse: quando finalmente apareceu, o carro tinha mossas, riscos, e estava porco que metia dó. O homem das limpezas de carros sujara o carro carro. “O interior num estado lamentável.”

Mostraram-lhe fotos de Manuel pouco antes do furto.

– Ele anda aqui às voltas da viatura, parece que se vai embora e que volta para trás… E nesta imagem n.º 3 dá a impressão de que o trajecto que faz é o de quem vai entrar na viatura.

Estaria já roído por furtiva tentação, Manuel, o ladrão inédito, como se viu no segundo crime? Entrou um senhor “reformado, dantes empresário de turismo”, que disse:

– Foi numa altura de muito trabalho. Ele apareceu aqui na Expo à procura de trabalho. Como tinha carta de pesados…

– Está de mal com ele?

– Estou de mal com ele.

– Isso impede-o de dizer a verdade?

– Não, não, respondeu o reformado do turismo.

Manuel “ficou só três dias à experiência”, o suficiente para deixar marca. E desaparecer com a sua marca: uma carrinha de passageiros bem estofada, confortável.

– Fez um serviço para o Algarve e, no outro dia, ia ao Porto com uns senhores angolanos. Era turismo.

Dormiu no Algarve, com a carrinha à sua guarda. Recebeu em mão cerca de 800 euros, o preço de vários bilhetes. Correu tão bem que o novo quase-patrão lhe ligou a meio do trajecto.

– Quando vinha a caminho do Porto até o convidei para almoçar. “Vou já para aí!”, disse-me ele. Esperei uma hora, duas horas, três horas, comecei a achar estranho.

Agora, o homem abanava a cabeça pensando na cabeça de Manuel:

– Nós íamos celebrar contrato de trabalho…

– Quanto ia receber?

– Receberia 25 por cento dos bilhetes.

Com a gasolina paga, etc. Manuel desapareceu no ar. Com o dinheiro, um tablet e a carrinha. Mas tinha deixado algures a morada. O ex-quase-patrão foi lá bater à porta. Nada.

– Fomos com a polícia e ele não abriu. A senhoria tomou a liberdade de abrir a porta e ele estava lá dentro do quarto! Disse que tinha sido assaltado numa bomba de gasolina.

Foi fazer chichi, deixou a chave na ignição e depois, claro, anda para aí uma ladroagem e ele entrou num mundo de sofrimento e olvido e nunca mais o viram. A carrinha apareceu para os lados de Benfica. Mas como é que ia confessar que lha tinham roubado? A única solução foi esconder-se no quarto como uma criança que engole as bolachas. Não fui eu, não fui eu. Admiro Manuel pelo seu ineditismo. Pelo menos, nunca ouvi igual.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)