Um golpe no ódio
Nascido em 1996 na Ucrânia, a viver na Amadora, agora sem trabalho… Não queria falar. Mesmo assim, mostraram-se no julgamento alguns pensamentos de Ruslan. Em que canto dele estavam guardados? A manhã de Inverno do Campus de Justiça recuava agora ao Verão de 2017, a 2 de Julho, numa discoteca da Grande Lisboa. A sua vítima quase ficara destruída, mas era mais forte do que ele pensara.
– És paneleiro?, perguntou Ruslan a outro jovem na esplanada.
Após Francisco “ter retorquido que não era paneleiro, mas gay”, leu a juíza, “desferiu-lhe um empurrão, fazendo-o embater no vidro da esplanada onde se encontravam. Decorridos alguns instantes, o arguido e outro sujeito cuja identidade não se apurou, desferiram-lhe vários murros e pontapés. A seguir, despejaram-lhe o conteúdo de um copo e partiram-lhe um copo na face.”
Francisco sofreu dores, traumatismos craniofaciais, no tronco e nos membros. Sofreu lesão na região zigomática, o nervo que faz rir a nossa cara, felizmente sem o cortar.
– Eu não fiz nada, sorriu Ruslan, num tique nervoso.
Entrou Francisco. Os olhos eram duas bolas pretas, brilhantes na máscara de cera. Não vi olhos mais tristes em nenhum tribunal, nunca. O jovem sentou-se, numas calças de tweed elegante. Disse que não desistia da queixa.
– Sou cozinheiro.
– Conhece este senhor?
– Não. Eu tinha-o visto uma vez na outra festa anterior.
Francisco tinha ido a uma festa com uma colega, ucraniana.
– Nessa noite, a Luba estava a dançar, eu queria parar um bocadinho e ir fumar um cigarro e beber um gin tónico. Vim cá fora à esplanada. Sentei-me numa mesa encostada ao parapeito de vidro. Estava a falar com uma das raparigas daquele grupo. Entretanto este senhor aproximou-se, eu não estava a perceber o que dizia, não sei que língua estava a falar. Ele provou o meu gin, entretanto a rapariga disse-me “ignora, que só está a sair porcaria:”
Ela entendia o que dizia Ruslan e pedia a Francisco que ignorasse.
– Perguntou-me se gostava de homens. Disse que sim, gosto.
– Foi em português?
– Ou foi ele que disse, ou foi ela que traduziu. Depois disse que eu era paneleiro. Eu disse: não, eu não sou paneleiro, sou homossexual, são duas coisas diferentes. Continuaram os insultos em ucraniano e português, tudo misturado.
Ruslan a dizer que se fosse embora, que não fazia parte dali.
– Obviamente que não ia sair. No momento em que me levantei para ir embora dali, não da discoteca, mas daquele problema, sou empurrado. Fico com as pernas paralisadas na mesa. Socos, murros, pontapés, e o copo de gin a bater na minha cara.
Francisco tremia como se cada célula do corpo estivesse com frio.
– As perguntas não são a duvidar do que está a dizer, mas temos de as fazer e temos de as gravar. Este senhor começou a dar-lhe murros? É disso que o senhor se lembra?
– Eu estou a tentar reviver, mas ao mesmo tempo não quero, por isso é que está a ser difícil.
Um copo partido na cara, uma sorte não ter cortado. Nem os seguranças se meteram. Luba estava a dançar e não viu.
– Ninguém nos separou, deixaram. E depois quando eles pararam diziam para me ir embora já e eu disse não, vou chamar a polícia, vou chamar a ambulância, eu não vou deixar, porque isto que aconteceu comigo já aconteceu com muitas outras pessoas, e não quero que isto continue a acontecer porque o ódio é uma coisa… é uma coisa muito má… e acho que ninguém merece e não posso… não é só por mim, mas por outras pessoas. Eu estou com uma depressão profunda. Estive bastante tempo sem trabalhar. No passado também sofri muito por causa da homofobia com a minha família, e depois com isto criei um medo. Fiquei com uma paranóia, às vezes não consigo sair à rua sozinho, se vou na rua tenho de estar sempre acompanhado. E se vou tenho de telefonar ao meu namorado, não consigo andar sozinho.
Ruslan, condenado, perdeu. De um modo, o ódio ganhou. Mas Francisco e o namorado deram a mão na sala do tribunal, um abraço, e qualquer coisa muito forte atirou o ódio contra a parede.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)