Grande parte das doenças infecciosas tem origem animal. Um agente patogénico dá a volta ao Mundo num corpo humano em pouco tempo. O debate reacende-se. O que comemos? Como tratamos os ecossistemas e as reservas selvagens? Como perceber que a saúde dos animais é a saúde dos homens? Para onde nos conduz a globalização?
É uma matéria complexa com vários ângulos. Mas com uma certeza: quase 70% das doenças infecciosas que atingiram o homem, nas últimas décadas, têm origem animal. E haverá cerca de 1,7 milhões de vírus por descobrir na vida selvagem. O problema não será tanto o que está dentro dos animais. A questão é o que a humanidade faz ou deixa de fazer uma vez que as doenças são e sempre serão uma ameaça. A ciência estuda e produz conhecimento. A saúde faz das tripas coração para lidar com o que lhe chega às mãos. A veterinária controla e monitoriza. O poder político decide.
Realidades e comportamentos voltam à discussão. Os animais infetam os homens. Os animais estão mais perto uns dos outros. Os humanos estão mais perto dos animais por via da desflorestação. Os animais selvagens têm menos espaço e procuram novos destinos e formas de sobreviver. Os vírus aproveitam-se das vulnerabilidades humanas. Os habitats naturais têm sofrido ataques. Um sistema alimentar desequilibrado afeta a saúde. Terras agrícolas galgam terrenos. A produção de gado não pára de crescer. Na China, o negócio dos animais selvagens envolve 12 milhões de pessoas e 65 mil milhões de euros por ano. A população mundial tem duplicado e vive concentrada em cidades. O mundo global é uma autoestrada em que se viaja à velocidade da luz.
Os dados estão lançados. Um agente patogénico que passou de um animal para um humano percorre muitos quilómetros em poucas horas. E o Mundo está, neste momento, virado do avesso. O mais recente coronavírus, o sétimo, terá sido transmitido por uma espécie de morcego num mercado de venda de animais selvagens em Wuhan, China. Ainda não se sabe ao certo se, na atual pandemia, terá havido pelo meio um pangolim, pequeno mamífero selvagem, como intermediário na mutação de um vírus desconhecido e nessa transmissão para a espécie humana. Sabe-se, no entanto, que o coronavírus não precisa de um animal para sobreviver.
Exemplos não faltam. Em 2002, o coronavírus SARS foi identificado como causa de um surto de síndrome respiratória aguda grave. Dez anos depois, o MERS-CoV era apontado como responsável pela síndrome respiratória do Médio Oriente. Nos dois casos, o provável hospedeiro original terá sido um morcego. E é um morcego que também é apontado como o reservatório natural do ébola. A gripe das aves, causada por uma estirpe altamente agressiva de um vírus, vem de aves infetadas, vivas ou mortas. O vírus influenza passou das aves para os porcos e para os humanos. Um rato que mora em África espalhou a febre de Lassa pela Nigéria, Libéria, Guiné e Serra Leoa, e ainda voou para os Estados Unidos e Reino Unido. A malária é uma doença infecciosa transmitida por mosquitos. A leishmaniose, doença parasitária, é igualmente transmitida pela picada de um mosquito. A doença das vacas loucas, ou doença de Creutzfeldt-Jakob, ataca o gado doméstico bovino e é transmissível ao homem. O VIH migrou para os humanos e teve a sua origem em chimpanzés selvagens.
Os animais transmitem doenças ao Homem desde sempre. Ponto. Os morcegos, os primatas e os roedores são referidos como os animais selvagens que mais vírus transmitem à humanidade. E os vírus têm uma extraordinária capacidade de adaptação, esperando uma oportunidade de entrar nas células humanas e fazer estragos. Sempre houve riscos, sempre haverá, o impacto é que pode ser mais suave ou mais violento na saúde humana. A atual pandemia colocou o Mundo em casa e já matou quase 200 mil pessoas.
Como é que os vírus, as bactérias e os parasitas saem dos animais e infetam o homem? De várias maneiras. “Por contacto, por inalação, pela alimentação, entre outras possibilidades”, responde Manuel Vilanova, imunologista, professor no ICBAS – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto. Ninguém tem o dom de adivinhar quando um vírus sai de um animal, como acontece a sua mutação, quando e como atacará o homem. “Não podemos prever, podemos reagir, e tem de se atacar o problema em várias frentes, farmacológica, imunológica, e tudo isso demora tempo.” De qualquer forma, a comunidade médica e científica mundial nunca esteve tão focada e unida para tentar encontrar uma solução para a atual pandemia.
Matar animais está obviamente fora de questão. “É necessário ter cuidado como os produtos animais são disponibilizados e como são organizadas as regras de higiene e de segurança alimentar.” Uma coisa é certa: a saúde dos animais afeta a saúde dos humanos. “Sem dúvida. É uma lição que toda a gente não devia esquecer nunca e que agora foi colocada de uma maneira muito evidente”, sublinha Manuel Vilanova.
Mais próximos, mais expostos
A percentagem chegou da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) com o aviso de que não se pode continuar de braços cruzados: cerca de 70% das novas doenças que infetam o homem têm origem animal. O relatório é de 2013, é o mais recente na matéria, e continua atual. A agência alimentar das Nações Unidos pediu, nessa altura, uma intervenção integrada e global para gerir as ameaças à saúde. Tentar antecipar em vez de reagir.
A saúde humana, a saúde animal e a saúde do ecossistema não podem ser vistas separadamente. É necessário refletir a saúde em conjunto e sem fronteiras, estruturar ideias, identificar problemas, fazer recomendações, criar um plano de ação, comprometer e responsabilizar o poder político. “Tem de haver respeito pelo conhecimento e pela ciência”, refere Henrique Cyrne de Carvalho, diretor do ICBAS, doutorado em Medicina, representante português na One Health – World Health Organization, grupo europeu que trabalha na fusão de organismos de saúde humana e veterinária, que se mexe nesse eixo da saúde humana, animal, ambiental. A intervenção, em seu entender, tem de ser feita o mais possível a montante e a informação produzida com consistência e sem margem para dúvidas tem de estar em cima da mesa de quem decide. Não pode ser de outra forma. “Estamos francamente expostos a infeções que dizimam populações em números assustadores, sejam bactérias, vírus, parasitas”, observa. “E é preciso termos a humildade de reconhecer que o Mundo não está preparado para situações desta natureza”, acrescenta.
O Mundo é global, extremamente urbanizado, o campo é um lugar distante, a vida selvagem uma imagem remota. João Niza Ribeiro, médico-veterinário, doutorado em Ciências Veterinárias, professor no ICBAS, membro do One Health, coloca todos esses pontos na conversa. “O que acontece é que doenças altamente infecciosas se globalizaram, se generalizaram. Este tipo de situação está ligado com a urbanização.” Cidades cheias de gente, densidades populacionais fora do comum. As pessoas infetam-se, infetam os outros, e depois percebe-se o que está a acontecer. Enquanto isso, diz, “os agentes patogénicos fazem o seu percurso”.
Didier Cabanes, doutorado em Biologia Molecular, líder do grupo de investigação em Microbiologia Molecular do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, tem opiniões, não tem soluções. “O que está a acontecer é o resultado da nossa maneira de viver há 50 anos. Estamos sempre a reduzir o espaço reservado aos animais selvagens e muitos desses vírus, que não são conhecidos, vêm de animais selvagens.” Quanto mais próximos, mais expostos. E as doenças têm as suas particularidades, as suas originalidades. “Os vírus têm uma capacidade enorme de modificar o genoma para se adaptarem, encontram uma maneira de infetar o homem, e isso não é novidade”, assinala. A questão é que a história se repete vezes sem conta e, por vezes, deixa o Mundo de rastos.
Pandemónio alimentar
O que chega à mesa tem extrema importância. Francisco Sarmento, ex-representante da FAO em Portugal, com 30 anos de experiência internacional em sistemas alimentares, junta vários elementos. “A pandemia vem, muito provavelmente, do pandemónio alimentar. A forma como industrializámos a agricultura e globalizámos a alimentação nas últimas décadas faz com que estejamos a matar o planeta e, consequentemente, a nós próprios. Arrasamos a biodiversidade e eliminamos organismos protetores para produzir mais calorias e não mais nutrientes”, salienta. Os mais expostos aos vírus que “saltam” dos animais, que provocam pandemias, acabam geralmente por ser os que mais carregam um histórico de doenças e complicações. “Ficamos mais vulneráveis ao sobrepeso, obesidade, cancro, diabetes, doenças cardiovasculares, entre outras patologias que se vão tornando crónicas. E vamos morrer mais e mais rapidamente de um conjunto de outras enfermidades se não mudarmos o sistema alimentar e a sua relação com os ecossistemas. Muda-se com vontade política, participação social e ciência. O maior inimigo, como sempre, é a ignorância.”
A circulação de animais e pessoas também explica a transmissão de doenças. O número de viajantes por ano anda na ordem dos biliões. “Os modelos de movimentação de animais para consumo estão muito regulamentados na Europa e nos Estados Unidos, muito mais do que está regulamentado o movimento das pessoas”, repara Henrique Cyrne de Carvalho. A mobilidade dos animais é um movimento mais organizado e fácil de controlar. A dos humanos não está feita para evitar a exposição a agentes patogénicos. “Isto é um modelo de enorme complexidade que envolve variáveis não controláveis”, comenta o diretor do ICBAS.
A saúde animal é também a saúde humana e, em todo o caso, as estruturas de veterinária têm mecanismos de controlo apertado de vigilância e monitorização dos animais para consumo humano, desde as rações que comem à comercialização em mercados. “Não podemos prever tudo, temos estruturas capazes de prevenir e com capacidade de reagir”, garante João Niza Ribeiro. A questão são os meios ao dispor, aponta, lembrando que o orçamento anual dos maiores hospitais do país é quatro a cinco vezes superior a toda a estrutura veterinária do país.
Homens, animais, ecossistemas. Tudo se articula neste triângulo em que cada vértice tem a máxima importância. “Não podemos colocar a natureza numa caixinha de vidro. Temos de respeitar a natureza”, afirma João Niza Ribeiro. Didier Cabanes não tem dúvidas. “Este problema vai acontecer mais vezes e ninguém se preparou realmente, os sistemas de saúde não estavam preparados.” Mudar o modo de vida, maneiras de consumir, dar mais espaço à vida selvagem? Está tudo em aberto. “Temos de nos preparar para a próxima vez porque vai acontecer. Não podemos parar a economia durante dois anos. Isso não é possível.” Prever é uma impossibilidade, reagir não basta, é preciso então definir planos e articular estratégias para proteger a saúde. De animais e humanos.