Um AIT pode ser o primeiro sinal de um AVC

Os AVC são bastante conhecidos por serem a principal causa de morte e incapacidade permanente em Portugal (Foto: PxHere)

Os acidentes isquémicos transitórios não são muito conhecidos. O facto de os seus sintomas serem passageiros faz com que as pessoas os desvalorizem. Mas atenção: podem anteceder um acidente vascular cerebral, que causa sequelas neurológicas permanentes e também a morte.

O dia ficou-lhe marcado na memória. Naquele 31 de outubro, quinta-feira, já de noite, juntou-se aos amigos, como era habitual, para uma partida de futebol. O episódio deu-se num dos momentos mais parados do jogo. Primeiro, uma tontura. Depois, a perda de visão do olho direito. “Apanhei um susto”, confessa Manuel Dias, hoje com 49 anos. Quando se aperceberam que ele não estava bem, os amigos acudiram. Deitaram-no, deram-lhe água com açúcar. Pensaram todos, inclusive o próprio, “deve ter sido uma quebra de tensão”. Acalmou-se. A visão voltou. E de novo as explicações: “foi um momento de fraqueza”, “era cansaço acumulado”. Mas na terça seguinte voltou a acontecer. E dessa vez, estava sentado, na secretária, a trabalhar em frente ao computador, depois de um dia que recorda ter sido stressante. Os sintomas foram os mesmos. Uma tontura seguida de perda de visão do olho direito. Não tentou arranjar justificações, foi diretamente ao hospital.

Maria de Fátima, hoje com 67 anos, já estava habituada à extensa lista de problemas de saúde. “Todos na minha família têm alguma coisa: problemas cardíacos, diabetes, hipertensão. Doenças não nos faltam”, brinca. Desde 2010 tinha episódios em que andava mais casada, “coisa estranha” para alguém “com tanta genica”. “Tinha momentos em que ouvia as pessoas falarem, mas era como se eu estivesse distante delas.” Umas vezes esses episódios duravam mais. Outras vezes, passavam rapidamente. E descobriu-se que se deviam a episódios em que as tensões desciam de mais. “Quem estivesse comigo e se apercebesse, tratava de me deitar, de me pôr as pernas ao alto e aquilo lá me passava. E eu sou sincera, nem ligava muito.” No entanto, já na altura a filha, médica de Medicina Geral e Familiar, insistiu para que a mãe fizesse um estudo geral e descobriu-se que tinha um ligeiro entupimento da artéria carótida, não relacionado com os sintomas. Nada grave. Era possível controlar. “E assim andei, sem me esquecer de tomar a medicação certinha.” Manteve um acompanhamento médico regular até que em fevereiro deste ano, antes mesmo de se deitar, foi tentar ligar o alarme de casa e o braço direito falhou-lhe. “Ficou como morto, sem força, gelado, não me respondia.” Chamou o marido, que depois de cumprir a tarefa a levou para o quarto e repetiu os cuidados de sempre. As pernas ao alto, as tensões baixíssimas. “Vou ligar à nossa filha.” Não, pediu Maria de Fátima. “Vou ligar ao nosso filho”, também médico. A súplica repetiu-se. “Não vale a pena preocupá-los agora.” Contudo, na manhã seguinte e, apesar de acordar com a sensação de que nada se tinha passado na noite anterior, acabou por contar o episódio à filha, que sabia bem o perigo que a mãe corria. “Vais ao hospital. Agora!”

O mesmo problema, origens diferentes.

Manuel Dias e Maria de Fátima tiveram um Acidente Isquémico Transitório (AIT). Enquanto num Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquémico há um entupimento completo de uma artéria que leva sangue para o cérebro, e a pessoa fica com uma deficiência súbita de que não recupera, a não ser que seja tratado logo nas primeiras horas num hospital, chama-se AIT às situações em que há a sorte de o trombo que tapou a artéria se desfazer sozinho, geralmente em minutos, e a pessoa, de repente, ficar normal outra vez, espontaneamente.

Porém, estas duas situações tiveram origens diferentes. No caso de Manuel, o problema foi identificado ao fim de umas horas no hospital e depois de um exame de eco-Doppler. Tinha um estrangulamento na carótida, decorrente de uma radioterapia feita a tumor num gânglio do pescoço, que o tinha assombrado 11 anos antes. “Na altura, o tumor implicou que eu tivesse de fazer cirurgia para o remover e de seguida radioterapia.” Terá sido a radioterapia a responsável pelo dano na artéria carótida, a nível do pescoço, uma das principais artérias que leva sangue para o cérebro. Descobriu que a sua carótida já estava 85% obstruída. Logo após o exame, foi acionada orientação multidisciplinar, mas a cicatriz da cirurgia antiga impedia nova cirurgia no local. Manuel Dias foi tratado com colocação de um stent (tubo expansível) na carótida, por cateterismo intra-arterial, e hoje está ótimo, não repetiu episódios. “Impecável”, garante.

Maria de Fátima, também ficou a saber que 80% da sua artéria carótida estava entupida, mas com uma placa de gordura, sangue coagulado e outras substâncias (aterosclerótica). A cirurgia foi aqui a melhor opção. “É uma operação que fazem com o paciente acordado, assim os médicos percebem logo se algo acontecer ao paciente.” A intervenção correu bem. “Só me impressionou o naco horrível de gordura que me retiraram da artéria.” Hoje, sente-se novamente a Maria de Fátima de outros tempos. “E nunca mais voltei a ter aqueles episódios.”

Os AVC são bastante conhecidos por serem a principal causa de morte e incapacidade permanente em Portugal. Os AIT, não tão conhecidos e, como aqui vimos, muitas vezes desvalorizados, podem ser o primeiro sinal de um AVC com consequências devastadoras. Ora, apesar de a pessoa sentir uma deficiência súbita – deixar de ver de um olho, deixar de conseguir falar, ficar com a cara paralisada de um lado (boca ao lado), perder a força num braço, numa perna, ou mesmo em toda uma metade do corpo -, como no caso do AIT recupera sem qualquer tratamento, tem tendência a achar que não aconteceu nada de importante, que foi obra do acaso, e não se preocupa. “Erradamente!”, exclama Elsa Azevedo, diretora do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar Universitário de São João e colaboradora do Hospital CUF Porto. “O que é certo é que o problema que originou o trombo que tapou a artéria, que no caso do AIT até se desfez sem tratamento, pode, da vez seguinte, provocar um entupimento que não reabra sozinho, e a pessoa ficar deficiente para sempre. Há que estudar o que se passa na circulação, no trajeto do coração ao cérebro, e corrigir o problema de base”, aconselha a médica. “Nos casos descritos, o sangue ao passar ia arrancando pequenos fragmentos da placa que obstruía a carótida, e que iam tapar um ramo mais acima, a nível cerebral; felizmente nestes casos esses fragmentos desfizeram-se e os doentes recuperaram espontaneamente, permitindo que se tratasse a carótida para prevenir eventos mais graves no futuro.” Elsa Azevedo é clara: “Se deixou de ver por momentos, se de repente deixou de falar, se perdeu a força, mesmo que recupere em pouco tempo, deve procurar rapidamente ajuda médica”.

A neurologista avisa ainda que é preciso estar atento para não chegar a ter nenhum destes episódios. “Para tratar bem da nossa circulação sanguínea (nenhum órgão do nosso corpo funciona bem sem que lá chegue sangue suficiente!), e evitar a formação de placas ateroscleróticas, as pessoas devem controlar as suas tensões, que devem estar abaixo dos 140-90, devem deixar de fumar, devem fazer análises de rotina para detetar e tratar colesterol alto ou diabetes, devem ter uma alimentação saudável, não comer exageradamente, e incluir sempre legumes e frutas em quantidade adequadas, evitando gorduras, açúcares, e excesso de sal”, defende. A isto, deve juntar-se exercício físico adequado a cada um. Quem já tiver algum destes problemas – hipertensão arterial, tabagismo, colesterol alto, diabetes – deve redobrar a atenção e pode ser necessário estudar as artérias. Por fim, remata Elsa Azevedo, mesmo quem não tem as patologias acima referidas, deve procurar ajuda caso perceba algo de anormal. “Não devemos adiar; mesmo neste contexto de pandemia, as pessoas não devem ter receio da ida ao hospital no caso de sentirem algum sinal de alarme como os referidos, mesmo que transitório, pois, nestes casos, adiar pode trazer consequências graves para a saúde.”