Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
De súbito, sem aviso, um e-mail recebido no telemóvel. E o e-mail trazia o espírito urgente dos escândalos antigos, de edital público com sinos a repicar. Entornou-se como tinta permanente sobre a reputação da mulher. A nódoa na honra, a partir de agora, seria geral: o e-mail chegara propositadamente a familiares, a amigas, a conhecidos, pensou a mulher. Trinta anos de amizade entre duas mulheres e, de repente, isto. Há palavras de onde não se regressa.
— Fiquei ofendida, fiquei ofendida, repetia a mais nova, de cabelo escuro. E fiquei perturbada, acrescentou.— Mas a senhora também estava a sofrer uma separação…, disse a juíza.
— Sim. Mas são 30 anos de relação de respeito com ela para depois receber um mail destes. A forma como… Quando ela me disse que não gostava da maneira como eu tratava o meu filho… quando eu sei como ela tratava a filha dela… É um mail para ferir.
— Ela diz que não queria ofender, disse a advogada da queixosa.
— Mas então… ela até podia tê-lo feito antes. Podia tê-lo dito ao longo dos anos, se não gostava da maneira como eu tratava o meu marido, ou o meu filho. Mas nunca disse.
A mulher mais velha tinha cabelo branco e esticado como tecido de prata. Estava muito direita no banco dos arguidos. Escutava a mulher a quem enviou o e-mail, há vários meses. Quando uma ia a Angola, dormia na casa da mais nova. Quando a mais nova vinha a Lisboa, ficava em casa da mais velha.
Uma amiga de 30 anos agora a acusá-la de injúrias e de difamação. A diferença entre os dois crimes é fácil: a injúria pode ser individual, eu digo ou escrevo uma coisa directamente a alguém, essa pessoa fica ofendida e processa-me. A difamação é outra coisa, porque terceiros sabem o que foi dito para supostamente injuriar, ou caluniar.
A mulher mais velha dizia no e-mail que a mais nova manobrava o marido e o filho a bel-prazer, “como marionetas”, que era uma egoísta que só pensava em si, que não sabia educar o filho. Mas não só.
[Os romances policiais ensinam-nos a seguir a pista “da mulher”, a História do Mundo diz-nos que há outra pista sempre na esquina: sigamos o rasto do dinheiro]. Dinheiro que pode ter sumido no ar.
— Para começar, era mentira. E depois… nós éramos amigas, disse a queixosa, a voz soprada pela desilusão.
Mais tarde no julgamento, uma professora próxima da ofendida, e que também recebera o e-mail, explicou que toda a gente pensava que as duas eram amigas, “mas com isto viemos a saber que não era assim”. Sobre as palavras que leu no seu computador, disse-as de cor:
— Chamava-lhe ladra, gatuna, saqueadora de bens, que tinha roubado 250 mil dólares do cofre da casa do Restelo, coisas assim… Textualmente.
— Lembra-se desta expressão: “Levantaste 100 por cento das contas tuas e do C.”?
— Sim, ela achava que ela tinha roubado o dinheiro. O e-mail era claro. Era o que lá estava totalmente escrito.
A advogada da mulher mais velha, da acusada, perguntou se a testemunha sabia qual era o contexto da vida da mulher mais nova.
— Sei que estava num contexto de divórcio, mas isso era entre ela e o senhor C.
Vieram duas filhas do sr. C. testemunhar a favor da acusada: esta só mandara o e-mail por motivos nobres, tentar resolver uma situação muito dura, chamar a atenção para um divórcio muito feio e poupar a saúde do sr. C., então muito doente. E as duas acrescentaram que, embora não o pudessem provar, de facto desapareceu muito dinheiro.
O pai delas dissera-lhes que a mulher de quem se divorciava (duas décadas de casamento) lhe tinha esvaziado as contas. Mas quando é que ele lhes disse isso? Nem se lembravam.
E agora chegou a altura de esclarecer os leitores. Que mulheres amigas de 30 anos e inimigas de um só ano são estas? A mais velha foi companheira do sr. C., de quem teve um filho. C. teve mais duas filhas de outra mulher e depois casou e teve ainda um filho da mulher ofendida. Trinta anos depois…
Talvez fosse uma amizade fundada em desamores antigos, mas que sabemos nós?
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)