Traição

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
O jovem L., de botas carneiras e blusão de caçador picoteado a losangos verdes e fofos, subiu à tribuna do seu metro e oitenta e picos. De lá, declarou:
– Gostava de começar por dizer que sou inocente, não fiz nada do que fui acusado. Não sei que mensagens são.
L. era amigo de M., rapariga de outra cidade (ele, Porto, ela, Lisboa) e de faculdades diferentes. Em comum, um curso de Comunicação e uma juventude partidária. Um dia, L. pediu a M. se lhe facultava o código de acesso à universidade dela, para ler uns apontamentos. Disse que sim, deu-lhe a password. Foi o início de uma bela inimizade. L., no tribunal, negou o crime de “acesso ilegítimo”, que não entrou nas redes sociais da amiga e as encheu de parvoíces, inconveniências, vasculhos íntimos e paranóia.
Mas a operação pirata foi feita de sua casa. Todas as semanas reunia um grupo de pândegos para, depois do jantar, irem a uma discoteca na Foz. A password de M. era o mesmo código da universidade, só com uma data acrescentada.
– Eu até comentei com os meus amigos e disse que tinha uns problemas com a Internet e perguntei: “Algum de vocês fez alguma asneira com a minha Internet?”. E todos se riram.
Entrou M. na sala, o cabelo escuro caía-lhe em cascata no blusão de marca. O ar perfumou-se, a voz era clara. Sem o olhar:
– Tivemos uma relação de amizade.
Um dia, no princípio de 2017, percebeu que lhe tinham entrado no Facebook, Twitter e Instagram. Reforçou a segurança e nada.
– Nas semanas seguintes, comecei a receber de algumas pessoas: “Olha, mandaste-me esta mensagem… Achei estranho”.
– Essas mensagens que recebeu, os conteúdos, o que é que lhe pareceram?, perguntou a juíza.
– Era… eram muito despropositados e muito fora da minha característica pessoal. Particularmente uma, para uma grande amiga dos meus pais, foi muito humilhante, despropositada, de teor sexual. E portanto, muito desconfortáveis.
A Judiciária investigou o endereço IP de saída do pirata.
– Pus no meu Facebook que tinha havido um acesso ilegítimo à minha conta.
Várias pessoas enviaram capturas de ecrã.
– E como é que descobriu quem é que tinha feito isto?
– Só depois, quando recebi a chamada de uma inspectora da Judiciária. Até lá não fazia ideia de quem tinha sido o autor. A inspectora pergunta se eu conhecia o L., e se estávamos muitas vezes juntos, eu disse-lhe que sim, que provavelmente até nesse dia eu estaria, e então ela disse-me que esse IP estava registado na casa dele.
– Foi uma surpresa ou já tinha alguma desconfiança?
– Não, foi um total choque. Nós éramos muito amigos. Eu conheci o L. a 17 de Maio de 2015, tínhamos uma relação muito próxima, dava-se muito bem comigo e com o meu namorado, também, e com alguns amigos que tínhamos em comum da juventude partidária que frequentávamos os dois…
M. está em tratamento psicológico. Perdeu o sono, não vai a encontros políticos para não se cruzar com L.. Tinha fotos e conversas políticas, diálogos íntimos com o namorado. Devassada.
– Quando soube que era o L. fiquei mesmo paranóica.
A juíza olhava os dois, separados por uma coluna branca e um desastre insanável de comunicação.
– Das duas uma: ou foi uma parvoíce, que é uma expressão adequada a uma coisa destas. Ou foi mesmo com a intenção de a prejudicar, de a atingir. Tem de haver uma explicação, as coisas não aparecem do nada. Não haveria ninguém no círculo de L. que pudesse querer-lhe mal?
– Não tenho conhecimento de ninguém.
– E também não deu a password a mais ninguém?
– A mais ninguém, de certeza absoluta, disse a rapariga.
A mensagem enviada à amiga dos pais dela era a pedir ajuda. L. (a falsa L.) dizia ser virgem e pedia conselhos sobre o que fazer com o namorado, se a ajudava a comprar lingerie vermelha.
A rapariga cravou os olhos negros na malinha de alta-costura.
– Havia ciúmes por parte do L.?… Alguma situação política?
– Éramos só amigos, creio que isso ficou muito claro. Até hoje… Não sei.
Este rapaz devia ir para a política. Espera, já lá anda. Que amizade.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)