Terrível homicídio parecido e não igual

Que análise faz à própria cabeça um estudante de Psicologia que planeia uma cilada para matar uma jovem que conhece bem? A seguir, que interpretação faz de si mesmo? Rúben, 25 anos, atirou há dias ao Tejo o corpo da colega Beatriz, 23 anos, mutilada na cabeça e braços (tentou defender-se) com um bastão-chicote, depois de passar horas ao lado do cadáver, a limpar o sangue. Foi desfazer-se dela no rio e acompanhou os pais da rapariga numa busca (Rúben fingia não saber e voltou ao local do crime, o apartamento de Beatriz). Interrogado pela polícia (a última chamada que ela recebeu foi dele) desfez a máscara, confessou a morte, que a convencera a ir visitá-la e, na prisão, tentou matar-se, cortando os pulsos. Só cinco dias depois do homicídio, Beatriz foi tirada da água no cais perto de Santa Apolónia. O bastão estava ali perto, submerso. Eu devia ter escrito alegadamente a meio, mas vão-me desculpar. Este caso acorda em mim memórias e, por assim dizer, campainhas emocionais. Em 2005, uma rapariga que eu conhecia, a Ana, 21 anos, estudante de Direito, foi morta pelo ex-namorado André, 24 anos, estudante de Psicologia, numa cilada em Telheiras. Depois de a convencer a ir a sua casa, André matou-a à pancada e por asfixia, usando mãos, pés, um cinto. Foi à rua buscar um caixote do lixo de plástico, meteu lá o corpo (estava nua no peito, mas as calças de ganga vestidas), regou-a de álcool e deitou-lhe fogo. A autópsia indicou que a Ana ainda não estava morta. Ardeu parcialmente. Depois, ele sentou-se a pensar. [Beatriz era de Elvas, Ana de Estremoz, o seu assassino André, de Vila Viçosa. Eu, de Portalegre, ó Alentejo em Lisboa.]
Há 15 anos, familiares de André chamaram a polícia. Foi a família de Rúben a abrir a casa à Judiciária, e o pai aconselhou o filho a admitir o crime. O caso ainda agora começou. Jornais e TVs cheios de interrogações e de certezas. O que o levou a? Ciúmes, obsessão, etc. Mas realmente porquê? Leio que Rúben finge empatia com os meninos sem-abrigo que viu em Moçambique, no vídeo do seu voluntariado ergue o lábio superior tapando o nariz (“o septo nasal com o lábio superior”) e, se fala em tristeza, a cara traduz desprezo e aversão. É o tempo dos leitores de corpos e de mentes (não dementes…). Serão ditas coisas erradas e outras certas. Também li, por estes dias, o que o jovem escreveu em Novembro no suplemento digital de um jornal (P3), na qualidade de “a acabar o mestrado em Psicologia Social e das Organizações”. Cheio de empolgamentos autocentrados, de poética inchada sobre um concerto – “com todos os olhares virados para ti, eu olhava para os outros e via a chama a arder na poesia que cada um escrevia com os seus lábios”; “não consigo esquecer a ponte que cruzo sempre que vejo algum artista que sangra da mesma maneira que tu em palco”; “e por dentro existe uma ânsia que quer sangrar tanto como tu e nunca chegar a morrer por aquilo que nos vai matando nestes momentos”; “e a ressonância do melhor que há em ti, continua a fazer tremer o monstro que há em mim”. Isto sobre a banda Ornatos Violeta e o músico Manel Cruz, aos quais manifesto a minha longa admiração artística e social, é bom que se diga que não têm culpa nenhuma nesta história. Com bom senso, o “Público” coloca a abrir a informação: “O autor foi detido pelo alegado homicídio de uma colega”. Se Rúben não fosse um caso a compreender depressa, o que escreveu há meses poderá elucidar psicólogos, psiquiatras e criminologistas – sangra, sangrar, morrer, matando. Para mim, é prosa palavrosa, degeneração do pior ultra-romantismo que alguns confundem com “literatura”.
Daqui a meses, teremos o julgamento. Não vai ser fácil. Para as duas famílias, a de Beatriz e a de Rúben, porque também os familiares do assassino vão viver com um espinho cravado na garganta. Escrevo há 30 anos sobre julgamentos. Nunca esqueci o de André, que tinha matado a Ana, cuja família eu conhecia. Um ano depois, no Tribunal da Boa Hora, à frente dos pais da Ana, André disse que foi apenas uma sessão de sexo sadomasoquista que correu mal, ela é que gostava e que depois de perceber o que fizera, drogara-se. Mas o único arrependimento, pensei e escrevi, era ter sido apanhado. Não explicou como se atira a cabeça duma jovem à parede tantas vezes que lá fica um rasto de sangue e cabelos. Pena de 22 anos por homicídio qualificado e profanação de cadáver. Também um dia a sentença de Rúben vai chegar aos jornais e aos arquivos da Justiça, terrores nas prateleiras. Se pensam que o vão entender, eu não acredito. Talvez isto: homens que julgam ser donos das mulheres. Também é psicologia.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)