Teresa Salgueiro
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
E tão lá de cima do último balcão eu seguia espreitando aquele clarão das luzes no palco e tinha vergonha de começar a chorar sem perceber que já começara a chorar havia muito.
Terá sido em 1991 que os Madredeus se apresentaram no Coliseu do Porto acrescidos por uma verdadeira aparição do mestre Carlos Paredes. Pelo esganado do dinheiro, miúdo universitário, demorei a comprar o meu bilhete e fui parar aos lugares mais distantes, tão acima do palco que nos davam a impressão de espreitar de um prédio ao lado para o quintal do vizinho. Chegava ali o som em jeito de imitação do som de verdade, como se chegasse pela radiofonia de outros tempos. Contudo, entrei no Coliseu em apneia, suspenso em maravilha, grato pela admissão igual a quem sabia ter direito ao acontecimento do milagre que é a voz de Teresa Salgueiro.
Foi com o “Por este rio acima” do Fausto que eu me eduquei para amar a música de tradição portuguesa. Com ele se abriu o fascínio para ir atrás buscar o absoluto José Afonso e essa deusa que pode ser Amália, com ele passei a amar o Vitorino e o Sérgio Godinho, o José Mário Branco e tantos outros que chegavam, como aquela estreia fulgurante de Anamar, a vulnerabilidade sincera de Mafalda Veiga, a Amélia Muge de quem tenho sempre saudade, ou a perfeição dos primeiros discos dos Madredeus. Subitamente, a Teresa Salgueiro era diamante, e o ínfimo arranque da sua voz podia comover-me como pouca coisa até então.
Abriram o concerto com aquele chamado entre Teresa e o Francisco Ribeiro (que filho da mãe de mundo que nos roubou o Francisco Ribeiro tão cedo, tão belíssimo músico que se abreviou). Sentia que se chamavam os animais dos montes e que tremiam os animais dos mares, como se pudessem aquietar-se os ventos para o som das vozes passar. E era verdadeiramente divino, um gesto que Deus permitisse àquelas pessoas por se haver também rendido à beleza de que eram capazes. E tão lá de cima do último balcão eu seguia espreitando aquele clarão das luzes no palco e tinha vergonha de começar a chorar sem perceber que já começara a chorar havia muito.
A Teresa de jeito naturalmente solene, sem peso. Erguida no palco digna e profundamente cordial. Estava rigorosa por ser perfeita. Lembro-me da “Cantiga do Campo”, como adquiria um trinado mais folclórico ao vivo, uma vertigem levantando, acelerando, e era uma batida no peito, uma pressa no coração, que chegava a fazer-me suar por tanto me exigir do corpo a pura intensidade de ouvir. E havia alguém em toda a parte a pedir silêncio. Porque eu não estava sozinho naquela paixão. Incontidas, tantas pessoas gritavam declarações de amor, suspiravam, batiam palmas fora do sítio, levantavam-se. Gostar tanto traz certa confusão. Eu, fascinado, estava numa felicíssima confusão.
Anda a vida toda perigada por radicalizações, sentimentos feios, gente que persegue por fúrias e ódios, vontade de punir, de fazer sofrer. Hoje, sem mais, pensei no que representava para mim um instante de luz, um símbolo de límpida cidadania, e entre tantas memórias me ficou o rosto de Teresa Salgueiro e o timbre da sua voz. Eis o país em que quero acreditar: o da beleza pela qual até Deus se tomou. O de Teresa Salgueiro.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)