Suspenderam a rotina e saíram da zona de conforto

Álvaro Leite, chefe de cabine da TAP, 47 anos, corre por gosto e nunca desiste. É atleta, corre longas distâncias, em condições extremas, altas altitudes, temperaturas elevadas e negativas, em zonas inóspitas do Planeta (Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Vasco Calixto suspendeu a matrícula em Medicina e partiu para fazer voluntariado. Álvaro Leite trabalha a voar e corre em zonas inóspitas do Planeta. Telma Pedroso deixou a banca e faz bolos. Testar limites, pisar o risco, agarrar o desconhecido. Porquê?

Cinco t-shirts, cinco boxers, cinco pares de meias, um casaco, chinelos, uma manta, o básico para a higiene, carregador de telemóvel. No início de 2019, Vasco Calixto, então com 18 anos, de Oliveira de Azeméis, partiu com tudo isso numa mochila às costas (literalmente). Suspendeu a matrícula em Medicina, percorreu vários países e continentes, fez voluntariado em contextos vulneráveis. Ensinou inglês a crianças, deu banho e mudou fraldas a adultos, passeou cães abandonados. Saiu da sua zona de conforto, voltou seis meses depois com outra bagagem emocional.

“Queria ir à descoberta, de mochilas às costas, sem muita tralha, de forma aleatória, e que envolvesse experiências de voluntariado”, conta. Queria saber do que era capaz para estar na vida adulta com outra perspetiva, uma visão mais robusta. “Nasci numa família da classe média, sinto-me na obrigação de retribuir de alguma forma, de ajudar e de continuar a ajudar.” Saiu da sua bolha de privilegiado e fez-se ao caminho. “Ganhei mais andamento a falar com as pessoas e a meter-me em projetos. Não quero morrer ignorante.”

Vasco Calixto tinha 18 anos quando suspendeu a matrícula em Medicina, percorreu vários países e continentes e fez voluntariado em contextos vulneráveis. (Foto: Tony Dias/Global Imagens)

A 13 de janeiro partiu para a ilha cabo-verdiana de São Vicente, onde ficou um mês como voluntário numa associação de proteção de animais abandonados nas ruas. Estabeleceu parcerias com associações de estudantes de Medicina em Portugal. Voou para Telavive, passou mês e meio entre Israel e a Palestina.

Fez couchsurfing, viajou por várias cidades, andou à boleia, quis conhecer vários territórios. Índia foi o destino seguinte. Três semanas em Nova Deli numa escola, sustentada por uma organização não governamental local, a ensinar palavras de inglês, alguns exercícios de matemática, a recolher donativos à distância, em Portugal. Foi a Agra ver o Taj Mahal, deu um salto ao Rajastão para conhecer cidades do deserto indiano, esteve um dia em Mumbai, seguiu para Goa de autocarro, esteve nas Fontainhas, um bairro com casas típicas portuguesas. Prosseguiu para Myanmar e mais um mês intenso. Aterrou na capital, partiu à descoberta de aldeias.

“Fiz muitas caminhadas pelos trilhos, pelas selvas, fiquei em casa de locais, convivi com eles.” Chegou a Yangon, antiga capital, para trabalhar num centro que acolhe gente rejeitada da sociedade, de todas as idades, que procura cuidados e conforto, de doentes terminais a crianças com deficiência. Era mais um voluntário a mudar fraldas, dar banho, passear crianças, o que fosse necessário. “Foi uma experiência muito marcante por todo o contexto.” Seguiu para o Quénia, para uma favela na periferia de Nairobi, onde esteve três semanas como voluntário numa organização da comunidade local focada sobretudo na educação escolar e sexual das crianças.

Com o pé em Portugal, está a trabalhar num site dessa organização e espera avançar com um programa de apadrinhamento em 2021. A ideia é ajudar as crianças a terem comida à mesa e condições para estudar, através de pequenas contribuições de padrinhos e madrinhas. Chegou a Portugal a 22 de julho, tem agora 19 anos, mudou de curso, estuda Economia no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Partir novamente faz parte dos seus planos. Mesmo que isso signifique tomar banho de balde de água fria e deixar a cama confortável.

Objetivos na cabeça, ir mais além

Álvaro Leite, chefe de cabine da TAP, 47 anos, natural do Porto, corre por gosto e nunca desiste. É atleta de triatlo e ultramaratonista, corre longas distâncias, em condições extremas, altas altitudes, temperaturas elevadas e negativas, em zonas inóspitas do Planeta. “Desistir não é opção”, diz. E nunca o fez.

Correu na maratona da Coreia do Norte, o país com o regime mais fechado do Mundo, em 2017, e ficou em 31.º lugar entre 1 200 atletas. Correu no Polo Norte, na muralha da China, em Machu Picchu, no deserto de Atacama, nos Himalaias. Tem dois Ironman no percurso, em triatlo de longas distâncias, na Austrália e na Alemanha. No ano passado, esteve na cadeia de Alcatraz, em São Francisco, Estados Unidos, para a prova “Ultimate escape from Alcatraz”. Saiu a nado da prisão, 45 minutos na água a dez graus, correu 13 quilómetros. Em fevereiro de 2020, estará no Egito para uma prova que tem as pirâmides de Gizé em pano de fundo. Para alcançar o objetivo de correr nos sete continentes, falta-lhe a Antártida, que será em 2021, com expedição de barco com cientistas, exploradores, historiadores.

Interessa-lhe esse contacto com gente de várias áreas, partilha de experiências, conhecer mais, saber mais. Há a parte física, correr no gelo, que apesar de não ser a primeira vez, é sempre um desafio. “Já não consigo estar numa zona confortável. Gosto de ir um bocado mais além, seja na parte desportiva, seja profissionalmente. Gosto de criar objetivos na minha cabeça”, adianta. É assim que gosta de estar na vida, um sair constante da zona de conforto, conciliando duas paixões, o desporto e as viagens. Já esteve em 110 países, recentemente completou toda a Europa. Pelo meio, dá aulas de desporto no centro pastoral de Valbom, Gondomar, como voluntário. Ensina corrida, ginástica, basquetebol e futebol a pessoas com deficiência mental de várias idades. E é assim, com os pés em vários sítios e em contextos diversos, que gosta de estar.

Aos 38 anos, Telma Pedroso deixou o seu emprego de 18 anos. Era bancária e já não era feliz. Três anos depois, aos 41, tem um negócio de cake design em Santa Maria da Feira e não se arrepende da transição. Pelo contrário. A mudança teve medos e incertezas e, no dia da rescisão, aquela dúvida. “E se não der certo? Mas logo pensei: tem de dar.” Mudou radicalmente de área profissional, da banca para os bolos, apesar do risco, do salário mais curto.

O nascimento dos dois filhos ajudou, queria mais tempo para a família. “Tinha de sair daquela pressão financeira, dos números. Tinha de dar a volta de qualquer maneira e comecei a fazer cursos de pastelaria, de cake design, de doçaria conventual”, recorda. E quando disse que ia abrir uma casa de chá e de doces conventuais ninguém a levou a sério. Avançou, abriu, até que os pedidos eram tantos que já não conseguia ter porta aberta. Decidiu trabalhar por encomendas. “Estou tão feliz, trabalho todos os dias, sábados e domingos se for preciso, e chego a casa contente”, garante.

Sempre soube que queria mais qualquer coisa na vida e decidiu procurar o que isso era. Pisou terreno desconhecido, testou competências, voltou a estudar, reaprendeu a organizar as matérias. E percebeu que a alegria dos outros também pode estar numa fatia de bolo.

Os conscienciosos e os adeptos das experiências

Cada caso é um caso com os seus motivos, as suas especificidades, as suas vontades. Há, no entanto, fatores que sobressaem nesse pisar o risco, passar para o lado do desconhecido, como o temperamento, os traços de personalidade, a educação, as regras da sociedade, a etapa da vida, as expectativas, o trabalho, e até mesmo a própria perceção do que é a zona de conforto.

Aos 38 anos, Telma Pedroso deixou o emprego de 18 anos. Era bancária e já não era feliz. Três anos depois, aos 41, tem um negócio de cake design, em Santa Maria da Feira, e não se arrepende da transição (Foto: Tony Dias/Global Imagens)

Os contextos têm peso e condicionam escolhas. “A motivação para a mudança e a disponibilidade para sair da zona de conforto podem ser um traço de personalidade”, refere Alice Ramos, socióloga, doutorada em Ciências Sociais, coordenadora nacional do European Social Survey, estudo que mede padrões de comportamento, atitudes e crenças de populações em mais de 30 países. “Há uma predisposição individual, que pode ser um traço de personalidade, e há condições sociais que permitem que uma pessoa faça ou não faça determinada coisa”, sublinha.

O universalismo, por exemplo, o bem-estar do outro, explica o risco, o querer sair da zona de conforto. “Há quem se realize pessoalmente a seguir o valor do universalismo. Sair da pequena bolha para um mundo desconhecido onde se sente bem a trabalhar para o bem dos outros.” A estimulação é outro valor. “Fazer coisas novas, fazer coisas que desafiem.” Nem todos são iguais. “Há pessoas para quem a realização pessoal é manter-se na sua zona de conforto”, realça Alice Ramos. Sair do rumo implica escolhas que, por sua vez, surgem num contexto que pode ser ou não ser facilitador, seja profissional ou financeiro. Depende da personalidade.

“É necessário enquadrar os casos mediante o próprio temperamento das pessoas”, adianta João Vedor, psicólogo analítico. “Temos os conscienciosos e os adeptos da experiência. Os conscienciosos são conservadores, recatados na forma de agir, ponderados nas decisões, calculistas, que ascendem a altos estatutos da sociedade. As pessoas abertas à experiência precisam sempre de um desafio que os acometa a ir mais além na sua vida.” Por várias razões.

Os desafios compensam energias, ambientes de trabalho hostis, relações pessoais que deixaram de ser sólidas e se tornaram líquidas, vontades que batem dentro do peito. “Vivemos muito num limite da própria ditadura da felicidade, tudo tem de estar bem, vive-se sobre determinados padrões, exigem-se altos índices de sucesso laboral. E, por vezes, cria-se um escape de fuga da realidade em que se está inserido.” “Por vezes, é a perceção do mundo que arrasta para o desafio”, acrescenta o psicólogo. Assume-se o risco, tenta-se ir mais além do que aquilo que se conhece.

A fase da vida tem também o seu papel e poderá ou não condicionar o pisar o risco, sair da bolha, entrar num mundo que não se conhece. O jovem que entra no mercado laboral, que obedece às regras da sociedade para alcançar o seu lugar ao sol. O adulto que pára para pensar, que reequaciona quais são os valores que lhe importam, que quer romper com a ordem instituída e arriscar. Seja de que forma for: sair do emprego, experimentar o que sempre receou, questionar relações, ponderar sair do sofá e mudar de vida.

Segundo João Vedor, um dos fatores que leva as pessoas a abandonarem a zona de conforto é quando essa zona já não é confortável. “A ordem instituída começa a ficar justa e tem de ser substituída e remendada pelo desafio de estar no desconhecido”, diz. O desconhecido deixa de ser desconhecido e começa a ser uma nova forma de estar na vida. Com tudo o que isso implica.