Soprar velas atrás de um ecrã

“Para o ano, o Vasco já tem um ano e a tal viagem até um destino paradisíaco seria mais concretizável. Se a família alinhasse, seria perfeito”, reconhece Susana Barra Oliveira, 40 anos (Foto: DR)

Os aniversários em tempo de covid-19, como tinham sido idealizados, foram cancelados. Apela-se à contenção e à criatividade. As famílias reinventam formas de festejar, sem toque nem beijos mas igualmente felizes.

A reunião estava marcada à distância de um link. Nem todos estavam já familiarizados com a plataforma Zoom, a aplicação que tem estado na moda em tempo de isolamento social. Às 21 horas, João Regino, 29 anos, e Filipa Soares, 30, pais de Vicente, comemoravam o terceiro aniversário do único filho. Nunca o fizeram desta forma e jamais pensariam que fosse possível soprar as velas fisicamente longe dos familiares e amigos.

Depois de ser dada permissão para os convidados entrarem na reunião, a boa disposição contrariava o período que se tinha começado a viver em meados de março. Divididos por diversas casas, foram 24 as pessoas que participaram. Em pleno estado de emergência, Filipa preparou um bolo de cenoura com cobertura de chocolate para que os avós, tios, primos e amigos celebrassem o dia do Vicente. “Pela primeira vez, o bolo foi feito por mim com decoração de bonecos que tinham sido guardados do aniversário anterior. O Vicente adorou de qualquer forma porque é fã incondicional do Mickey”, realça Filipa. As velas foram adquiridas na última ida às compras antes do dia de aniversário.

O menino sorria e batia palmas com o mesmo entusiasmo como se estivesse fisicamente com aqueles que lhe são próximos. Habitualmente, os pais não fogem das celebrações tradicionais. No ainda curto período de vida, Vicente tem tido direito a duas festas de aniversário em contextos distintos. Uma para a família e amigos próximos, um lanche ajantarado em casa; e outra no colégio para festejar com os colegas de sala. “Dadas as restrições sociais do momento, os amigos não deixaram de dar os parabéns via WhatsApp no grupo de pais da sala dele”, explica o pai.

Na opinião de Pedro Vaz Santos, psicólogo clínico e terapeuta familiar e de casal da clínica PIN, em Paço de Arcos, Lisboa, o impacto desta comemoração à distância será muito baixo nas crianças “se não estiverem privadas de estar com o pai, a mãe e idealmente os irmãos”. No entanto, “algumas situações podem ser potencialmente de maior stresse, como o caso das famílias reconstruídas, nas quais o contacto com os dois pais pode não ser possível, ou as famílias de profissionais de saúde, hoje na primeira linha, em que os pais podem desejar manter um afastamento social maior dos seus filhos”.

“Dadas as restrições sociais, os amigos não deixaram de dar os parabéns via WhatsApp no grupo de pais da sala dele”, conta João Regino, pai de Vicente, que tem três anos
(Foto: DR)

Ao contrário de Vicente, que é pequeno demais para perceber o que se passa no Mundo, Susana Barra Oliveira tinha idealizado uma festa muito diferente para celebrar o 40.º aniversário, no final de março. Para a enfermeira e mãe de três filhos, as expectativas não eram demasiadas, uma vez que o terceiro filho nasceu em novembro do ano passado. “Em tempos, quando falava da chegada dos 40 anos, comentava que gostaria de fazer uma viagem com a família mais chegada a um destino de praia. Mas, visto que o Vasco nasceu e é muito pequeno, a ideia seria ir até Coimbra [cidade natal de Susana] e passar uns dias com a família mais chegada (pais, irmão, cunhada e sobrinhos).”

A viagem foi irremediavelmente cancelada e o passo seguinte foi adaptar a situação às novas circunstâncias. A aniversariante fez um bolo, evitando saídas demoradas até ao supermercado em tempo de pandemia.

Para os filhos mais velhos, Sara, de 11 anos, e Simão, de oito, a opção foi mais estranha. “São crianças muito afetuosas que, em tempos de covid-19, estão privadas do contacto com os primos que adoram.” Apesar disso, todos participaram na videochamada via WhatsApp com a família. Ao jantar, Susana optou por pedir comida fora num restaurante com entregas ao domicílio. “Fazer 40 anos é um marco, mas que nos deixa a pensar que estamos a meio da jornada na vida. Mas o fundamental é ir comemorando com saúde e junto de quem mais gostamos.” O terapeuta de casal Pedro Vaz Santos corrobora a ideia e reforça que “as famílias são iminentemente criativas. O importante é celebrar a vida e sermos capazes de conseguir expressar de forma clara o quanto estamos felizes e orgulhosos por quem faz anos”.

O plano da viagem para um local exótico não ficou esquecido. “Para o ano, o Vasco já tem um ano e o tal destino paradisíaco seria mais concretizável. Se a família alinhasse, seria perfeito”, afirma. Mas como ainda falta muito tempo, Susana prefere não fazer planos, não vá a covid alterar-nos as voltas novamente. “O Mundo está a mudar tanto que não sei se será viável ou não. Se não for possível, já será excelente se conseguirmos estar todos juntos fisicamente, sem ter de evitar abraços e beijos.”

Um teste às emoções

A expressão “novo normal” tornou-se comum. Nestes dias que vivemos, as novas tecnologias assumem um papel ainda mais relevante. “A internet, as redes sociais, as aplicações de mensagens instantâneas e as videochamadas vieram contribuir decisivamente para a aproximação de famílias dispersas geograficamente”, considera Tito de Morais, fundador do Projeto MiudosSegurosNa.Net, destacando as plataformas de videoconferência de grupo como a mais recente ferramenta a ser descoberta pelos utilizadores para facilitar tal aproximação.

Esta realidade não é distante da vida de Tito de Morais, que vive geograficamente disperso de familiares que estão em vários países e continentes. Em tempos, os meios de contacto utilizados eram outros e bem mais dispendiosos. “Recordo-me de falar com uma das minhas irmãs mais velhas, poucas vezes por ano, normalmente pelos aniversários, através de chamadas internacionais feitas com recurso a telefonistas da Marconi, chamadas essas que custavam uma fortuna e cuja qualidade sonora deixava muito a desejar, fosse pelo ruído, pelo eco ou pelas interferências.”

Para Joaquim Cabeleira, de 81 anos, e a esposa Maria da Conceição Oliveira, de 74, o mês de abril começa com três festas logo nos primeiros dias. A 5 fazem anos de casados e, na mesma data, Maria da Conceição celebra o aniversário. Dia 9 de abril é a vez de Joaquim comemorar mais um ano. A viver em Linda-a-Velha, o casal tem três filhos e sete netos. Com uma família muito unida e que se reúne com regularidade, não escondem as saudades. “Damo-nos bem, conciliamos as tarefas domésticas e assim vamos andando até isto passar”, diz Joaquim.

Apesar de também recorrerem às novas tecnologias para verem os filhos e os netos, foram ambos surpreendidos nos dias de aniversário. “Estávamos aqui em casa até que as netas telefonaram e disseram para descermos. Quando abrimos a porta do prédio, fomos surpreendidos por elas, que vieram cantar-nos os parabéns com a devida distância de segurança”, assinala o avô. Traziam balões, papéis com mensagens e um bolo confecionado pela neta mais velha. Este ano teve de ser assim, reclama Joaquim, demonstrando o desejo de que este “inimigo invisível” que os afastou dos seus “se vá embora depressa”.

Quatro dias depois, nova surpresa. “Também não desconfiámos, os netos fizeram tudo à socapa. Não esperávamos e emocionámo-nos muito. Fizeram-me rir e chorar ao mesmo tempo”, conta, sem rodeios. “Este afastamento custa muito”, confessa Maria da Conceição, que diz respeitar totalmente as recomendações de confinamento e isolamento social. “O Joaquim sai mais vezes. Nunca se importou tanto de ir às compras”, ironiza, entre risos, na entrevista telefónica realizada para este artigo.

“Quando abrimos a porta do prédio fomos surpreendidos pelas nossas netas, que vieram cantar-nos os parabéns com a devida distância”, diz Joaquim Cabeleira, 81 anos
(Foto: DR)

Pedro Vaz Santos considera que a quarentena “reforça o sentimento de solidão tão presente em muito dos mais velhos, sobretudo para os que estão isolados em respostas residenciais ou os que estando em casa, por motivos de segurança, não poderão receber visitas”. Não é o caso de Joaquim e da esposa, que se sentem muito acompanhados, ainda que à distância. “Os nossos filhos e netos são maravilhosos, estão sempre preocupados com a nossa medicação e se precisamos de alguma coisa.”

Originalidade precisa-se

Não existem receitas a prescrever no que toca a lidar com as emoções destes dias. O psicólogo da clínica PIN defende que devemos respeitar quem não quer festejar o seu aniversário neste período. “A saudade e a frustração, quando muito intensas, podem diminuir o processo criativo e a vontade de celebrar, pois o contexto é muito diferente do possivelmente imaginado.”

No caso das crianças, pode ser particularmente exigente compreender sentimentos contraditórios, como por exemplo, “a alegria do aniversário com a tristeza da situação. É importante que os adultos tentem explicar as contradições emocionais, de forma clara, às crianças”. É precisamente isto que Filipa e João têm tentado fazer. “A distância acaba por ser encarada como uma obrigação, mas, dadas as condições atuais, é necessária. Não deixando de existir saudade, tentamos não passar a ansiedade e frustração, inerentes ao confinamento, ao nosso filho”, resume a mãe.

Criatividade é a palavra de ordem e as famílias “podem idealizar e realizar um conjunto infinito de surpresas em casa”, aponta Pedro Vaz Santos. Em estado de calamidade, espera-se uma maior folga mas é imperativo respeitar as novas regras de convívio social. Por enquanto, os aniversários podem comemorar-se a partir da varanda, através de um ecrã de computador ou de smartphone. E apesar dos encontros presenciais serem sempre melhores, enquanto tal não for possível, “familiarize-se com as funcionalidades de segurança e privacidade das aplicações, mantendo-as sempre atualizadas”, recomenda Tito de Morais.