
É um fenómeno que atinge 15% dos adultos e crianças pelo menos uma vez na vida. Uma experiência indesejável que tira, literalmente, o sono a muitos pais. De saídas inesperadas a meio da noite até deambular pela casa, a lista de episódios pode ser extensa.
Basta fechar os olhos por alguns segundos para que Luísa Folhadela, 39 anos, recue no tempo e reviva a noite em que se apercebeu de que era sonâmbula. “Só me lembro de a minha mãe me ter acordado e de eu estar, em camisa de noite, no meio de um parque de estacionamento enorme que dava acesso ao aldeamento onde passávamos férias todos os anos no Algarve. Tive uma sensação horrível, só pensava que alguém me podia ter raptado. Acho que desde esse dia me tornei muito medrosa.”
Luísa Folhadela teria uns oito ou nove anos quando este episódio de sonambulismo, que não foi o primeiro nem o único na sua vida, aconteceu. “O que me contaram foi que eu saí da cama por volta da uma da manhã, e fui tocar à porta dos meus tios que estavam numa casa ao lado. O meu tio terá ido abrir a porta mas já não viu ninguém e, pouco depois, a minha mãe apercebeu-se que eu não estava na cama. Foram à minha procura pelo aldeamento inteiro”, descreve. Quando a acordaram sentiu-se “completamente aterrorizada” com a situação.
É este medo que, na maioria das vezes, leva pais a procurarem ajuda junto de Teresa Temudo, neuropediatra no Centro Materno Infantil do Norte, no Porto. Teresa explica que “o sonambulismo faz parte de um grupo de patologias do sono que se chamam parassonias e que ocorrem nas primeiras horas do sono, geralmente durante o primeiro terço do período em que dormimos”. O nosso sono “vai alternando entre o que chamamos de sono REM, com movimentos rápidos dos olhos, e o sono NREM, sem esses movimentos rápidos”. O sonambulismo ocorre na fase menos profunda. “A pessoa só é capaz de se levantar da cama e deambular porque não há relaxamento muscular total.”
Apesar de a ciência ainda não ser capaz de explicar a origem do sonambulismo, e das parassonias em geral, a neuropediatra diz que estes distúrbios do sono são mais prevalentes em crianças e no sexo masculino. “Sabemos hoje que há uma hereditariedade genética nestas patologias. Em gémeos monozigóticos, por exemplo, sabemos que quando um tem sonambulismo, o outro também terá. No meu consultório tenho também muitos casos de pais e filhos com sonambulismo”, esclarece Teresa Temudo.
Sonambulismo de pais para filhos
Como acontece em grande parte dos casos, assim que chegou à adolescência Luísa Folhadela deixou de ter surtos de sonambulismo. “Foi estranhíssimo porque tinha episódios quase todas as semanas desde os seis anos e, de repente, lá para os 16, deixei de ter de um dia para o outro, até hoje.”
O assunto parecia estar adormecido até que a filha mais velha, Marta, de nove anos, teve o seu primeiro episódio de sonambulismo. “Ouvi-a mexer-se muito na cama e percebi que se tinha levantado. Quando a fui ver, já estava no hall a fazer chichi. Assim que terminou, deambulou mais um pouco e voltou para a cama. No dia a seguir não se lembrava de nada. Desde aí passou a ter episódios praticamente todas as semanas durante quase dois anos.”
Ao contrário do que aconteceu quando era criança, Luísa nunca acorda a filha durante os episódios de sonambulismo porque não quer que Marta “se sinta tão desprotegida e desamparada” como se sentiu a mãe na altura. “Houve uma vez que ela abriu a cómoda do quarto dela e fez chichi em cima da roupa toda. Eu apenas a limpei, retirei a roupa suja e coloquei-a de novo na cama.”
Apesar de “não haver perigo nenhum em acordar um sonâmbulo”, Teresa Temudo aconselha os pais destas crianças a “simplesmente acompanhá-las para a cama de novo”, até porque para acordar um sonâmbulo é preciso um esforço enorme. “Normalmente eles não acordam e na manhã seguinte não terão memória de nada.” Na sua opinião, as questões de segurança são as mais prementes nestes casos.
Portas fechadas à chave
Mais importante do que a duração e frequência dos surtos de sonambulismo que, de acordo com Teresa Temudo, tendem a ser altamente variáveis de pessoa para pessoa, é “os cuidadores acautelarem todas as condições de segurança e avisarem sempre do sonambulismo quando os filhos vão dormir fora de casa”.
Teresa refere que a própria filha é sonâmbula e que a chegou a encontrar “de pé no beliche onde dormia, com risco de cair”. Aos pais destas crianças, apela para “terem as portas sempre fechadas à chave e objetos perigosos da cozinha muito bem guardados”.
Uma preocupação que Luísa Folhadela tem desde que sabe que Marta é sonâmbula. “Sempre que a minha filha dorme fora de casa aviso para fecharem bem as portas e partilho esta questão com quem fica com ela. Até hoje, por acaso, nunca teve nenhum episódio nessa situação.”
Bruxismo, soníloquo
Inserido na categoria das parassonias, o sonambulismo não é, no entanto, o único distúrbio do sono que pode perturbar as boas noites familiares. “Dentro do grupo das parassonias assistimos com muita recorrência a casos de bruxismo, ranger os dentes, de soníloquo, que se define por falar muito enquanto se dorme e, nos mais pequenos, aos terrores noturnos”, enumera a neuropediatra Teresa Temudo.
Mariana Simões de Almeida, psicóloga e especialista em sono infantil, diz que na sua prática clínica já perdeu a conta aos casos de crianças com terrores noturnos. “É algo muito recorrente. Trata-se de perturbações do sono que acontecem, assim como o sonambulismo, nas primeiras duas a três horas do sono. Tipicamente a criança tem um comportamento de agitação: chora muito, move os membros, parece irritada e até pode ter os olhos abertos mas mantém-se na cama.”
Apesar de assustarem os pais, os terrores noturnos são, de acordo com a psicóloga, “uma perturbação benigna do sono” da qual a criança não terá qualquer memória, pelo que o mais importante para a psicóloga é “os pais resistirem à tentação de acordar a criança para que esta não fique assustada”. Aos pais compete “ficarem perto da criança durante o episódio que, regra geral, dura entre quatro a cinco minutos”. Não se devem ligar luzes nem conversar com a criança – afinal, ela está a dormir. “Quanto mais os pais falarem e mexerem na criança mais o episódio se prolongará em tempo e em intensidade.”
Embora possam manifestar-se em crianças mais velhas, os terrores noturnos são mais frequentes na primeira infância, entre os 18 meses e os cinco anos, não estando descrita nenhuma diferença de género. A origem desta parassonia pode ser genética, de acordo com Mariana Simões de Almeida, “sendo que há muitos casos de pais, que tiveram terrores noturnos, com filhos que repetem o padrão”. Mas também há muitos casos que surgem por fatores emocionais, “como uma mudança de casa ou um divórcio”. Em qualquer um dos casos, os terrores noturnos tendem a ser transitórios. “Da mesma forma que aparecem e podem acontecer semanalmente, desaparecem de um dia para o outro.”
A hora da melatonina
O ditado é bastante conhecido: “Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer”. E se esta dinâmica parece ser verdadeira para uma boa higiene do sono da população em geral, é ainda mais eficiente para quem sofra de alguma parassonia.
Teresa Temudo frisa que “períodos de febre, stresse e alterações do ritmo de sono são fatores que desencadeiam as crises” e é por isso que, na opinião da neuropediatra, é fundamental promover rotinas de sono adequadas em crianças com parassonias.
Mariana Simões de Almeida partilha desta opinião e explica que, quimicamente, o cérebro começa a regular-se para dormir pelas 19 horas. “É a partir dessa hora que começamos a produzir melatonina. As crianças devem ir para a cama pelas 20.30 horas para que não entrem num ciclo de cansaço extremo que potencia os distúrbios do sono.”
“O grande problema do adormecer tardio é a confusão hormonal gerada. De um lado temos a melatonina que diz ao nosso corpo ‘relaxa’. Do outro, se a determinada altura a criança estiver tão cansada que é obrigada a produzir cortisol para se manter acordada, o corpo vai receber a mensagem ‘desperta’. Este choque hormonal é muito pouco interessante e daí a importância de deitar em crianças, em particular as que têm parassonias, à hora certa”, defende Mariana Simões de Almeida. A especialista adverte ainda para a não utilização de ecrãs depois da hora de jantar, uma vez que “são altamente estimulantes” e também podem confundir o cérebro na hora de dormir.