Sobreviver a um Natal com restrições alimentares

O controlo dos excessos, mas também das restrições, é fundamental para ter um equilíbrio saudável entre a tradição natalícia e a alimentação

Alergias, intolerâncias, doença celíaca. São cada vez mais as pessoas que, na hora de se sentar à mesa, se debatem com limitações severas. Mas a quadra não tem de ser menos feliz por isso.

Sofia Pinto Luz ainda tem bem presente aquela véspera de Natal de há cinco anos quando, ao chegar a casa de familiares, viu João, um dos cinco filhos, ficar aflito, com pieira, a ansiar escapulir-se dali. A explicação não tardou a evidenciar-se. Além do bacalhau, das couves, das batatas, o “menu” da ceia de Natal incluía ovos, muitos ovos.

Para João, ainda bebé quando lhe foi diagnosticado o nível máximo de alergia às quatro proteínas do ovo, a simples inalação dos vapores resultantes da cozedura desembocou naquela reação. Sofia, imunoalergologista de profissão e há largos anos habituada a lidar com a alergia alimentar do filho (hoje com 11 anos), reagiu de pronto. Cortisona e anti-histamínico, a caneta de adrenalina pronta para o que desse e viesse.

Felizmente, nada veio. Passado um pedaço, João acalmou. E, ao fim de umas horas, depois de as janelas da casa terem sido escancaradas e o ar completamente renovado, de a cozinha ter sido desinfetada de uma ponta à outra, puderam, por fim, voltar para festejar o Natal sem contratempos. Mas a história é um exemplo nítido dos cuidados que a quadra impõe a quem está obrigado a viver diariamente com restrições alimentares. Sejam elas motivadas por alergias ou intolerâncias. Ou mesmo por doença celíaca.

Importa, antes de mais, vincar a diferença entre as duas primeiras. Porque, se nas alergias está em causa uma reação exagerada do sistema imunitário às proteínas dos alimentos, no caso das intolerâncias – à lactose e ao glúten são as mais comuns -, regista-se antes uma má digestão de um dado alimento. Também as consequências são distintas.

Enquanto provocam dores abdominais, gases, obstipação, diarreia e vómitos, as alergias alimentares traduzem-se, além dos problemas gastrointestinais, em sintomas que vão desde a urticária e o inchaço da pele a um eventual quadro de anafilaxia, com dificuldade respiratória, baixa da pressão arterial, aumento da frequência cardíaca ou mesmo perda de consciência. No limite, podem conduzir à morte.

Aumento sem causas esclarecidas

E têm vindo a aumentar. Sofia Pinto Luz, que de há dois anos para cá gere o “Senhora Alergia”, blogue sem fins lucrativos que pretende ser amparo para outros pais que se debatem com os meandros deste problema, aponta um estudo americano que mostrou que entre 1997 e 2011 a alergia alimentar em crianças cresceu cerca de 50%. E lembra que, atualmente, já 8% das crianças e 5% dos adultos se deparam com este problema.

Razões? Apenas ideias. “A teoria da higiene é a mais aceite. O excesso de esterilização, de higienização, o próprio excesso de antibióticos, o facto de deixarmos de comer produtos biológicos.” Daí que saber como agir nestes casos seja cada vez mais relevante. A primeira regra passa, pois, por evitar qualquer tipo de contacto com o alergénio em causa. E o Natal não pode ser exceção.

No de João, filho de Sofia, há sempre duas mesas. Uma com doces que têm ovos, outra com doces sem eles. Quanto aos ovos que acompanham o bacalhau, são cozidos largas horas antes, para evitar problemas com a inalação dos vapores. Além disso, todos os elementos da família sabem que depois de ingerir algo com ovo têm obrigatoriamente de lavar as mãos e a boca antes de se aproximarem da criança.

Mas nem só os ovos são uma fonte de problemas. Há reações alérgicas graves ao leite, ao peixe, ao trigo, à soja, ao marisco, aos amendoins, mesmo aos frutos secos, tão típicos da época. “Tenho pais que quando chega esta altura me dizem logo: ‘Estamos a entrar na fase difícil. Vamos ter de estar com mil olhos na mesa para garantir que ele não toca em nada’. Claro que se pode sempre optar por não ter frutos secos em casa.”

A imunoalergologista destaca ainda a importância de se ser portador permanente de medicação SOS. “O anti-histamínico, a cortisona, a caneta de adrenalina. Insisto muito nisso porque é fundamental.” Como crucial é também passar a mensagem de que as alergias alimentares “não são o fim do Mundo”.

“É preciso dar asas às crianças, incutir-lhes responsabilidade para que possam ter vidas normais – nunca votá-las à exclusão social”, realça a especialista, lembrando as muitas alternativas que têm surgido. Desde um largo manancial de receitas a pastelarias que já vendem produtos para quem sofra de intolerâncias ou alergias alimentares.

Celíacos: da exclusão à integração

O mesmo tem acontecido no caso da doença celíaca, um problema crónico, autoimune, que se manifesta em indivíduos geneticamente suscetíveis, na sequência da ingestão de glúten e que se caracteriza pela atrofia das vilosidades do intestino delgado, responsáveis por aumentar a absorção dos nutrientes.

“Há 12 anos, quando comecei na profissão, era muito diferente. Pouca gente estava sensibilizada para esta questão da doença celíaca e do glúten e as alternativas que existiam tinham muita gordura e muito açúcar”, recorda Rita Jorge, nutricionista da Associação Portuguesa de Celíacos (APC). Hoje, até já há padarias e pastelarias certificadas pela APC, que vendem produtos 100% seguros.

Nem tudo são boas notícias, ainda assim. Porque se nas crianças há sintomas clássicos que ajudam na identificação do problema – diarreia ou prisão de ventre, não aumento de peso, barriga inchada, cólicas, vómitos, flatulência -, nos adultos, o cenário é distinto. “Anemia, osteoporose precoce, dermatite herpetiforme, aftas no esófago, alterações a nível da tiroide que podem motivar infertilidade ou abortos frequentes ou mesmo alterações neurológicas.

São sintomas atípicos que acabam por dificultar o diagnóstico. Por vezes, estes doentes passam anos em sofrimento.” No limite, a doença pode mesmo provocar um linfoma no intestino. Quanto ao tratamento, há apenas um. “Uma dieta isenta de glúten para toda a vida”, frisa Rita Jorge.

Teresa Amaral, lisboeta de 48 anos com dois filhos celíacos, percebe bem o significado destas palavras. Miguel, 14 anos, viu o problema ser-lhe diagnosticado logo aos dois, à custa das diarreias que não davam tréguas. “Num mês, chegou a perder três quilos.” No caso do irmão Francisco, de 11 anos, o diagnóstico tardou até aos oito, porque não tinha os sintomas clássicos. Depois, Teresa percebeu que o filho mais novo era também intolerante à lactose. Hoje, os cuidados impostos pelas restrições alimentares dos pequenos são já mera rotina.

“Na despensa têm um armário só para eles, para evitar a contaminação. Além da torradeira deles, de uma tábua do pão só para eles. Depois, claro, não compro nada sem verificar o rótulo. E mando sempre almoço para o colégio. Felizmente, hoje já é possível substituir quase tudo. Não imagina a alegria do meu filho quando encontrei pão de deus sem glúten. Parecia Natal.”

E por falar em Natal, como é? “Têm sempre uma mesa com as coisas deles. Fazemos fatias douradas com pão sem glúten, preparamos um pão de ló que não leva leite. E já encontrámos uma pastelaria que vende bolo-rei, tronco de Natal e sonhos sem glúten”, conta Teresa, que se dá até ao trabalho de comprar partículas sem glúten, para que os meninos possam comungar na Missa do Galo. A prova de que as restrições não têm de beliscar o espírito. “Não acho que eles tenham um Natal menos feliz por causa disso.”