Século Monstro
A obra de Agostinho Santos sempre produziu grito mas é agora, em Matosinhos, que mais se enfrenta o gigantismo do seu gesto.
A exposição de Agostinho Santos na Galeria Municipal de Matosinhos (essa brilhante de Alcino Soutinho) é mais do que uma mostra de obras intensas acerca do que nos pedra e de como somos predadores também. É uma perturbação no espaço, conflituando com a própria arquitectura, como interferindo nos volumes e mostrando as telas influindo na geometria e na quietude das paredes. A obra de Agostinho sempre produziu grito mas é agora, em Matosinhos, que mais se enfrenta o gigantismo do seu gesto, esse cariz há muito viral que avassala tudo, denuncia tudo. Isso que faz dele o criador de uma das obras mais inquietas da contemporaneidade.
A indisciplina é talvez fundamental para o entendimento do seu trabalho. Não se permite limites e não se intimida com materiais. Para Agostinho a arte é a totalidade dos caminhos e a figura representa exactamente a falta de ortodoxias. O corpo é indisciplinado, quero dizer, em Agostinho ele é súmula e cúmulo, é bicho absoluto, com sua incompletude, mutante, tão exuberante quanto monstruoso, tão assombroso e assombrado quanto fascinante e em permanente aprendizagem, em permanente processo de esperança.
O Século Monstro entrega ao tempo a culpa da pessoa, a culpa do indivíduo. Isso, a meu ver, assinala exactamente a esperança. O torpe é visto como falha no tempo, vocacionado à melhor educação, vocacionado a passar. Tudo quanto é considerado a partir do ponto de vista do tempo é considerado como a passar. Passageiro. Por mais longo, demorado, mudará para outro estádio, maturará.
A pandemia obrigou-nos a todos a uma clausura que não poderia deixar de produzir uma meditação, desde logo forçada, em torno dos sentidos fundamentais do que somos, do que fazemos, do que queremos fazer. Muito se especulou sobre o pasmo infértil dos criadores. Como levaria demasiado até que grande arte se mostrasse reflectindo com brio o impacto deste susto. Pois o que Agostinho faz é já resultado da sua meditação e consequência do susto, da dor e do luto e vem à medida certa do assombro que ainda perdura. Sendo homenagem aos que padeceram, padecem e aos que não resistiram, é imediatamente um jeito de testemunhar. É um jeito de inscrever este estado de espírito nesse viajante eterno que é a arte.
O conjunto de telas relativas especificamente ao surto pandémico é particularmente inusitado, pela escala, pela ironia, mas também pela impressão de podermos ali arriscar o rosto do inimigo. Um rosto que não poderia deixar de se assemelhar ao nosso, como outro monstro nosso, mais uma dimensão da vulnerabilidade que nos caracteriza e da expectativa com que olhamos uma estratégia para chegar ao futuro.
Em Matosinhos, o Século Monstro de Agostinho haverá de ser a primeira grande exposição a registar este maldito vírus na história da arte em Portugal. Vale muito a pena tomar medidas de precaução contra contágios e não perder a visita.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)