Rui Cardoso Martins

Se eu fosse médico

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Um homem grande, não um grande homem, saiu dos bilhares, viu o carro bloqueado e disse às duas fiscais da Emel* para libertarem o veículo. Acrescentou que já pagara a multa decretada no envelope vermelho do seu pára-brisas, mas elas disseram que não podia ser porque não estava o dinheiro no sistema informático. O homem grande avisou-as de que uma vez obrigara um colega delas a desbloquear o carro. Que era médico e elas uma “estúpidas e otárias do caralho” que não sabiam com quem se estavam a meter, e que ia dar-lhes cabo da vida. Tirou a chave da ignição da carrinha dos bloqueadores e perguntou-lhes se também gostavam de não poder sair dali. As fiscais chamaram a Polícia e uma brigada de colegas e o homem grande atirou a chave para dentro da carrinha.

– Queria só dizer que fiz uma coisa que não devia ter feito, que foi tirar as chaves, admitiu o homem grande, no tribunal.

– Mas fez só isso ou fez também o resto?

– Não, só tirei as chaves, o resto não é verdade.

– Não disse estes insultos e não disse estas ameaças?

– Não, não. Se eu tivesse que tratar da minha avó naquele instante? Eu só disse: e se eu fosse médico e tivesse de sair de emergência?

Na verdade, era funcionário administrativo desempregado. Mas podia ter perguntado: e se eu fosse cientista molecular e tivesse de ir ao laboratório e com os nervos da discussão do bloqueio do carro a humanidade perdesse a cura de todos os cancros? E se tivesse de ir à Serra da Estrela fazer ski se lá nevasse, salvando uma criança que os pais esqueceram no gelo quando os lobos voltavam ao maciço central? Problemas inadiáveis que se podiam levantar nesse instante, mas a nada as indefectíveis fiscais responderam com bom senso. Já agora, e se o homem grande tivesse ido divertir-se num torneio de bilhar e se tivesse esquecido de renovar o ticket do estacionamento (espera, foi isto que aconteceu)…

[No instante em que vos escrevo descubro que, ou vou lá abaixo agora, ou perco um dia a resgatar o meu carro rebocado para lá de cascos de rolha, à chuva, e pagando à iníqua empresa do estacionamento na rua (mudaram a zona de amarelo para vermelho na calada da noite, sem aviso) uma multa gigante, escrevendo-vos agora, por assim dizer, caros leitores, com prejuízo, tendo filhos para alimentar. Uma das crónicas hilariantes de Vinícius de Moraes era sobre adiar a entrega de um texto, procrastinando ao limite, mandando embora o estafeta do jornal que lhe batia à porta (tempos pré-internet), acabando Vinícius por ir entregar o texto em mão, no último segundo da hora de fecho, gastando no táxi o que ganhava com a própria crónica.]

Mas estamos a dar uma grande volta a uma viagem bloqueada. A primeira fiscal da Emel disse que o homem grande gesticulava com tal energia, frente ao nariz de cada uma, que tinham de se desviar, que disse “eu sou médico” e elas umas “estúpidas do caralho, otárias do caralho”. A mais velha das fiscais tinha noção de dever e amor à profissão:

– Eu gosto daquilo que faço. Gosto de conversar com as pessoas, levar as coisas a bom porto.

– Isto já lhe tinha acontecido?, perguntou a juíza.

– Tive mais uma ou duas ocasiões em 20 anos. Houve uma vez que levei com um balde de água por trás, mas nada que se compare a isto.

– Sentiu medo?

– Sim.

– Humilhada?

– Sim.

Mas a grande questão do homem grande e zangado foi repetida pelo chefe da brigada dos bloqueadores. Fora chamado de emergência pelas colegas fiscais. Sem ter assistido aos insultos, de uma frase não se esquece:

– Ele perguntou-me se eu acreditava mais na palavra de uma mulher do que na palavra de um homem.

Um homem grande, não um grande homem.

* Empresa de senhoras e cavalheiros que bloqueiam carros em Lisboa, arruinando economias familiares.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)