Sara Ferreira tem 26 anos, aos 12 disseram-lhe que tinha diabetes tipo 1. Esteve internada várias vezes, demorou a aceitar a doença, fez batota e alterou valores, até que aprendeu a viver com ela. De uma forma natural. O Dia Mundial da Diabetes assinala-se este sábado, 14 de novembro.
Sara Ferreira tem 26 anos, é administrativa numa imobiliária, dá aulas de saxofone e de formação musical na Banda da Sociedade Filarmónica Lousanense e há cerca de um mês criou um blogue, uma página de Facebook e Instagram com o nome “Diabét1ca Imparável” para partilhar coisas da sua doença. Para desmitificar ideias feitas, derrubar preconceitos, mostrar que os diabéticos não são uns coitadinhos, que têm uma vida normal.
Tinha 11 anos e meio quando se inscreveu na banda filarmónica da Lousã, onde mora, para tocar saxofone. Começou a sentir dores de ouvidos, talvez fosse por tocar um instrumento maior do que o seu corpo, talvez fosse por causa desse esforço. As dores foram desvalorizadas. No 5.º ano, os professores repararam na sua palidez e magreza. “Aparentemente, andava bem. Não tinha sintomas de diabetes, ir à casa de banho com frequência ou sede”, recorda. Pouco depois, o diagnóstico de diabetes tipo 1 e um percurso difícil. De rejeição, de raiva, de ódio.
A médica de família estranhou a palidez e a magreza para a sua idade e tamanho. Análises ao sangue, valores de glicemia altos, consulta para endocrinologia, mais exames de despiste, e aquela frase dita à mãe que não esquece. “A sua filha não é diabética, mas dou-lhe três meses para o ser.” E esse dia acabaria por chegar. Tinha teste de Geografia, a mãe picou-lhe o dedo e não lhe disse o valor, apenas para ir tranquila para a escola. Na cantina, a sobremesa era maçã assada e arroz doce. “Não gostava de maçã assada e não comi o arroz doce por receio”, recorda. A mãe foi buscá-la à escola, levou-a ao centro de saúde, daí seguiram para o hospital pediátrico de Coimbra. Sara já não saiu daí, ficou internada uma semana. Tinha 12 anos e aquela picada no dedo tinha acusado um valor demasiado alto de glicemia.
A diabetes tipo 1 implica tomar insulina toda a vida, uma vez que o pâncreas deixa de a fabricar
“Aprendi a reviver, a contar hidratos de carbono, a picar os dedos, a dar insulina.” Aos 12 anos, sentiu um terramoto, o chão a fugir-lhe dos pés, uma vida que deixava de ter. Insulina ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. “Não eram assim tantas picas. Mas não gosto de rotinas e a diabetes é uma doença que precisa de rotinas.” Entrou numa fase de negação. Não contava que era diabética, deixou de ver os valores da glicemia, chegou a picar o dedo do irmão sete anos mais novo, sabotava os horários do aparelho, deixou de se picar e de tomar insulina, escondia comida na mochila. “Estive três meses sem ver a glicemia e dava insulina ao calhas, fazia um cálculo para o que ia comer.” Tudo às escondidas.
Correu mal. Três crises de cetoacidose diabética, com níveis de açúcar no sangue muito altos, vários internamentos hospitalares. Aos 16 anos, chegou a estar em coma. É difícil explicar esta fase de ódio pela doença, este processo de negação que parecia não ter fim. Perguntas atrás de perguntas. “Porquê a mim? A mim que não como doces, que não sou gorda, que não abuso dos açúcares. Porquê a mim? O porquê e o porquê e o porquê e nunca tinha respostas”, confessa. Foram momentos complicados. “Tanta revolta e tantas mentiras.”
“Porquê a mim? A mim que não como doces, que não sou gorda, que não abuso dos açúcares. Porquê a mim? O porquê e o porquê e o porquê e nunca tinha respostas”
No início de 2018, percebeu que tinha de ter juízo. “Vinha das consultas com uma vontade e uma força incríveis para fazer as coisas bem, mas isso não durava uma semana”, admite. Em maio desse ano, a médica falou-lhe de alguns grupos de diabéticos no Facebook, espreitou, leu comentários, percebeu que era possível desabafar sem ninguém a apontar o dedo. Em junho, inscreveu-se num campo de férias com mais jovens de diabetes tipo 1, de diferentes idades, com diferentes terapêuticas. Ninguém escondia o que tinha de fazer pela sua saúde. Foi aí que tudo mudou.
Nesse campo de férias, Sara entendeu tudo e mudou tudo. Na consulta de setembro, os valores de glicemia já tinham baixado consideravelmente. Em outubro, colocou um dispositivo que mede constantemente os valores e uma bomba de insulina, como um cateter espetado na pele. Mecanismos que evitam muitas picadas e que lhe permitem andar sempre em cima do que se passa com o organismo. “Foram 11 anos de revolta, de rejeição, de esconderijo.” Sara, a diabética imparável, voltou a ter uma vida normal. “Convém ter alguns cuidados, evitar gorduras, comer poucos hidratos, evitar os fritos, os doces, o pão branco. É preciso comer várias vezes em poucas quantidades.” “Costumo dizer que tenho uma história de amor-ódio com a diabetes. O ódio já passou e agora veio o amor.”
Mais de um milhão de portugueses tem diabetes, cerca de 13% da população. Todos os dias, são diagnosticados 150 novos casos
O Dia Mundial da Diabetes é assinalado a 14 de novembro e a Associação Protetora dos Diabéticos (APDP) dedica as comemorações aos 100 anos da invenção da insulina que se registam no próximo ano. Um marco histórico porque a insulina veio “salvar” os diabéticos, como um tratamento eficaz. Há muito tempo que já se adapta o tipo de insulina a cada doente.
Mais de um milhão de portugueses tem diabetes, cerca de 13% da população. Todos os dias, são diagnosticados 150 novos casos e cerca de 700 mil pessoas estão, atualmente, em tratamento. Muitas outras estarão por diagnosticar. Portugal é um dos países da Europa com maior prevalência da diabetes tipo 2.
A diabetes tipo 2 é a mais comum, é causada por um desequilíbrio no metabolismo da insulina. A obesidade, o sedentarismo e a predisposição genética são os principais fatores de risco. Neste tipo de diabetes existe um défice de insulina e resistência à insulina, o que significa que é necessária uma maior quantidade de insulina para a mesma quantidade de glicose no sangue. À medida que o tempo passa, o organismo vai tendo maior dificuldade em compensar este desequilíbrio e os níveis de glicose sobem. Uma doença, como lembra Sara Ferreira, precisa de rotinas.