Acidente ou atentado. Os motivos da queda do Cessna que resultou na morte de Sá Carneiro, primeiro-ministro e dirigente histórico do PSD, nunca foram esclarecidos cabalmente. A Justiça aponta num sentido, os inquéritos parlamentares noutro. A dúvida paira no ar 40 anos depois...
Quatro de dezembro de 1980. Quinta-feira da última semana de campanha eleitoral para as segundas eleições presidenciais do Portugal democrático do pós-25 de Abril. No restaurante Escondidinho, frente ao Coliseu do Porto, para onde está previsto para as 21 horas um comício da candidatura à Presidência da República do general Soares Carneiro, apoiado pela Aliança Democrática (PPD/PSD, CDS e PPM), há uma mesa reservada para cinco pessoas. Uma mesa especial, colada à lareira, a que é sempre escolhida por Francisco Sá Carneiro nas habituais deslocações àquele templo gastronómico da Invicta, na Rua de Passos Manuel, inaugurado em 1927 e cujas paredes são testemunhas de épicas conversas históricas de políticos, poetas, realizadores de cinema, até de membros da realeza europeia. À sua espera, os pratos a que raramente se furta. “Tornedó Rossini ou entrecôte”, como recorda Amarílio Barbosa, atual proprietário do Escondidinho, amparado pela memória viva do veterano cozinheiro da casa, António Pereira, conhecedor à légua dos gostos gastronómicos do fundador e líder do PPD (PSD, a partir de 1976). “Já sabia bem a carta, nem precisava de a consultar. Bastava pedir”, rebobina.
A reserva, apontada para as 20 horas, contempla ainda as presenças de Snu Abecassis, companheira de Sá Carneiro, de Adelino Amaro da Costa, ministro da Defesa e vice-presidente do CDS, da sua mulher, Maria Manuela Vaz Pires, e de António Patrício Gouveia, chefe de gabinete do então primeiro-ministro. “Seria um jantar rápido e apressado.” Seria mas não foi. Porque um fatal desastre de aviação matou quem iria ocupar a célebre mesa junto à lareira.
Portugal iniciava então um jogo de sombras com a verdade histórica que dura há 40 anos: o que fez morrer Sá Carneiro? Concluída em 1981, a investigação da Polícia Judiciária ao caso, entretanto prescrito na Justiça e por isso impossível de ser reaberto, redundou na tese de acidente por falta de provas em contrário. O Ministério Público, que fechou o dossiê em 1983, seguiu a mesma linha. No entanto, das dez comissões parlamentares sobre Camarate, realizadas entre 1982 e 2011, oito foram claras em apontar claramente que se tratou de um atentado.
“O despenhamento da aeronave foi causado por um engenho explosivo que visou a eliminação física de pessoas, tendo constituído, por isso, ação criminosa”, lê-se nas conclusões da VIII Comissão de Inquérito, terminada em 2004 e que teve como presidente o deputado do CDS-PP Nuno Melo.
“A investigação inicial foi muito deficiente e concluiu pelo acidente, o que condicionou tudo o que se seguiu ao longo dos anos, desde as diligências posteriores à conservação dos despojos do Cessna”, considera o agora eurodeputado. “É muito fácil e tentador avançar com teorias da conspiração, mas o certo é que há factos com razoabilidade que permitem especular sobre um atentado dirigido a Amaro da Costa devido à decisão do ministro de proibir a venda da armas a vários países, o que mexeu com interesses económicos de muita gente”, avança Nuno Melo.
“Adelino Amaro da Costa estava particularmente atento às operações de venda de armamento que envolviam o Estado português, tendo vetado várias operações (vendas à Indonésia, à Guatemala e à Argentina) e tendo pedido, a 2 de dezembro de 1980, esclarecimentos adicionais acerca da venda de armas ao Irão”, sublinha o referido relatório parlamentar.
Ricardo Sá Fernandes, advogado das vítimas da queda do Cessna, é perentório: “A verdade já veio a lume, o avião caiu devido a um ato de sabotagem dirigido ao ministro da Defesa”. Para o também escritor do livro “O crime de Camarate”, “as provas são tão impressionantes e esmagadoras nesse sentido que é impossível apontar o contrário”. Sá Carneiro terá sido apanhado involuntariamente num crime bombista que “tinha como alvo Amaro da Costa, que estava a investigar os destinos dos dinheiros do Fundo de Defesa do Ultramar”. A certeza absoluta, essa, será apenas conhecida no dia em que “os autores tiverem um rebate de consciência e admitirem tudo” ou quando “forem abertos os arquivos dos serviços secretos americanos”.
Já para Miguel Pinheiro, diretor executivo do “Observador” e autor de “Sá Carneiro”, biografia publicada em 2010 e agora reeditada, “com os dados que há hoje é difícil saber-se a verdade” do que realmente aconteceu a 4 de dezembro de 1980. Porém, lembra, “as coisas mudam durante o curso da História” e no futuro a eventualidade de serem encontradas pistas seguras não está excluída. “Há sempre documentos oficiais escondidos que poderão ser revelados. Papéis ou gravações perdidas em casa de alguém podem vir também a lume e ajudar a perceber o que se passou”, assinala. Certo é que, quatro décadas depois, “são mais as contradições do que as certezas”, o que “torna complicado” avançar com uma conclusão definitiva.
A noite fatídica
Afinal, como se desenrolou o filme que redundou na morte, entre outros, do primeiro-ministro e do ministro da Defesa? Pelas 19.15 horas, menos de uma hora antes da chegada prevista ao Porto, Francisco Sá Carneiro entrou no Aeroporto da Portela, em Lisboa, acompanhado de Snu Abecassis e do chefe de gabinete. O grupo dirigiu-se à sala VIP e lá esperou que uma viatura o transportasse ao setor da pista, na parte traseira do aeroporto, onde se encontrava estacionado o pequeno bimotor Cessna C 421 matrícula YV-314P, de 1969, propriedade de José Manuel Moreira, engenheiro e amigo próximo de Amaro da Costa, e um dos três Cessna utilizados pela campanha de Soares Carneiro – o candidato encontrava-se em Setúbal num comício. No interior do aparelho, que fora propriedade do presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez, estavam já os pilotos Jorge Albuquerque e Alfredo de Sousa. Faltavam Amaro da Costa e a mulher, que se haviam atrasado num compromisso anterior e só chegariam à Portela já perto das 20 horas.
Sá Carneiro, contam relatos da época confirmados pela secretária pessoal, Conceição Monteiro, em sede de comissão parlamentar de inquérito, terá decidido viajar com o ministro da Defesa apenas em cima da hora. Tinha reservado lugar num voo da TAP para o Porto previsto sensivelmente para o mesmo horário, que acabou por desmarcar porque desejava regressar a Lisboa logo após o comício no Coliseu do Porto, o que não seria possível através da companhia de bandeira. Pouco antes de chegar ao aeroporto, Sá Carneiro realizou aquela que foi a última aparição pública, uma conferência de imprensa em que contou com a companhia de Soares Carneiro e de Freitas do Amaral, número dois do Governo e líder do CDS. Objetivo: insistir nos ataques veementes contra Ramalho Eanes, presidente da República e recandidato ao cargo, últimos trunfos a jogar para o desafio eleitoral que se desenrolaria no domingo seguinte, 7 de dezembro. “Não pode ser qualificada de plenamente democrática qualquer candidatura objeto de apoio expresso oficial de forças políticas que abertamente desejam a instabilidade política”, ouviu o seu candidato proclamar, referindo-se à desistência de Carlos Brito, do PCP, a favor de Eanes.
A torre de controlo do Aeroporto da Portela deu autorização de descolagem às 20.14 horas. O Cessna C 421 levantou da pista mas pouco tempo se manteve no ar. Despenhou-se menos de um minuto depois, qual bola de fogo, no Bairro das Fontainhas, em Camarate, a 500 metros do local da partida. Todos os sete ocupantes tiveram morte imediata. Carbonizados.
“Caiu por virtude de sabotagem e, portanto, de um atentado, estando-se, assim, na presença de uma intervenção criminosa”, concluíram os deputados que fizeram parte da III Comissão de Inquérito, em 1987. “Encontraram-se nos destroços elementos químicos estranhos à aeronave em quantidades desabituais”, acrescentou a IV Comissão, em 1991. “Os factos (…) permitem estabelecer a presunção de que o despenhamento (…) foi causado por um engenho explosivo”, reforçou mais tarde a V Comissão, em 1994. “Considerada comprovada a presença de elementos químicos, potássio e chumbo, também detetados nos materiais que foram sujeitos a ensaios explosivos com granada incendiária de fósforo (…) e a existência de substâncias explosivas (nitroglicerina, dinitrotolueno e trinitrotolueno)”, rematou, por sua vez, a VIII Comissão de Inquérito, em 2004.
“A maior nódoa negra da democracia”
O madeirense Guilherme Silva, histórico militante do PSD e deputado durante oito legislaturas, não duvida das teses apontadas nas comissões parlamentares. “O que resultou dos inquéritos é que se tratou de um crime cujos responsáveis não foram responsabilizados criminalmente”, enfatiza. “A incerteza oficial do que realmente aconteceu é a maior nódoa negra da nossa democracia, uma falha imperdoável que teve uma raiz bondosa, a de apressar a tese de acidente como forma de evitar a perturbação pública”, especifica. Mas, para Guilherme Silva, o que os anos seguintes ditaram foram situações de “um amadorismo incrível” que deixaram cair no esquecimento o apuramento das razões que levaram à morte de Sá Carneiro. “A investigação nunca poderia ter tratado Camarate como um simples caso de rotina. Estava em causa a morte de altas figuras do Estado”, lamenta.
Manuel Loff, professor do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, entende que a morte de Sá Carneiro é um emaranhado de complexas situações que se cruzam entre si. “O único facto concreto é que um avião caiu e morreram dois titulares de cargos públicos. O resto é dúvida que ficará no tempo e na História. Uma dúvida legítima, aliás”, realça. “Se Camarate significou que Portugal se inscreveu na lista de países cujos regimes viram um ou mais membros do poder mortos por atentado, isso provavelmente nunca poderá ser afirmado com clareza. Permanecem dúvidas e contradições que os anos ajudaram a serenar mas nunca a esclarecer”, aponta.
“Seria um jantar rápido e apressado”, volta a lembrar Amarílio Barbosa, dono do restaurante Escondidinho, onde a mesa junto à lareira não mais teve ocupante ilustre. Uma metáfora que encaixa perfeita no puzzle que foi a vida e a morte de Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro (1934-1980).