Rui Veloso: “Fiz muita asneira, era um bocado maluco”

O músico português Rui Veloso na sua casa (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Quarenta anos de “Chico Fininho” foram o pretexto para falar de canções que sabemos de cor. Do palco, onde ainda se sente feliz e eterno. Da parceria perfeita com Carlos Tê. Da fuga ao abismo. De paixão. Do essencial e do que não presta. De ver em si o pai que perdeu há um ano. Rui Veloso tem três filhos e muitas saudades de andar com eles ao colo. Continua o gajo porreiro que todos tratam por tu.

Rui Veloso vive rodeado de árvores, de pássaros, de cães e de guitarras. Instrumentos de cordas são mais de 130, resultado de anos de garimpo. Durante a entrevista chegou mais uma obra de artesão, em branco-mate, rara. Experimentou-a mal terminámos. Vinte minutos de privilégio, na sala de ensaios onde toca todos os dias e guarda cinco teclados que fazem parte da história da música dos últimos 70 anos. Rui Veloso chegou a Sintra há quase três décadas. Sem acessos, Vale de Lobos parecia “um fim do mundo”. Porem, lembrava-lhe o Minho. Ficou. “Muito devagarinho, com muita paciência”, foi construindo a casa. Plantando o terreno. Montando o estúdio profissional. Foi no estúdio que conversámos. “Agora é tempo de desfrutar”, começou por dizer.

Como tem passado estes meses em confinamento?
Cá tenho estado, com os meus cães e as minhas guitarras. Vejo os filhos de vez em quando, fiz recentemente um almoço, uma cabidela para seis, já visitei um amigo no Alentejo e pouco mais. Mas não me posso queixar, andei anos e anos a construir isto, agora desfruto. Tenho muito espaço e gosto de estar aqui. Estes confinamentos foram até umas férias, umas férias forçadas que no fundo estava a querer. Tempos socialmente calmos sem almoços de horas e horas. Passei a comer melhor, a beber chá, limonada, e muito menos álcool, perdi praticamente a barriga.

O confinamento deprime um pouco, ou não?
Na verdade, um bocadinho. A certa altura, senti alguma dificuldade em adormecer. Foi o que deu querer arranjar à força uma rotina, ler, cozinhar, etc. Esquece. Não gosto de rotinas. Desisti e fiquei logo melhor. Faço as coisas quando me apetece.

Cozinha? A sério?
Desde que começou a pandemia, sim. Muitos grelhados, um arrozinho de vez em quando. Comecei a cozinhar mais, a ler mais, a tocar regularmente. Por vezes levo o dia inteiro a tocar e a trocar de guitarra. Para mim, foi uma coisa boa.

A compor, também?
Pouco. Já compus muito. Agora, tenho outras coisas para fazer na vida.

Continua a ouvir muita música?
Já não ouço assim tanta. Ouço sobretudo no carro. É quando mais gosto de ouvir música. Em CD.

O que tem ouvido?
Miles Davis, Mississippi John Hurt, The Thorns. Por aí.

O confinamento pôs muita gente a dançar sozinha, em casa. Também?
Dançar sozinho, falar sozinho, é melhor não [risos]. Não vão as paredes começar a falar com um gajo.

Dança bem?
Música africana não danço mal, pelo menos sei onde está o tempo. Mas músico não é para dançar, é para tocar.

A possibilidade de ser infetado assusta-o? Até que ponto?
O alarmismo foi enorme e com um enfisema pertenço ao grupo de risco. Portanto, a certa altura tive mesmo um bocado de medo. Até que comecei a perceber que estou muito protegido. Vejo muito poucas pessoas, portanto estou seguro.

Estes tempos são severos para os artistas. Perdeu muitos concertos?
Vários. O de São João, no Porto, por exemplo. A minha preocupação nem sou eu, mas a malta que trabalha comigo. É certo que isto é igual para todos mas há casos piores, casos em que não entra nada, só sai. Uma situação horrível. E com tantos à rasca não se sabe se há apoios. É o que dá não estarmos organizados como classe. Eu farto-me de mandar vir. Pelo menos, isso faço.

O Ministério da Cultura promoveu um concerto online, entretanto cancelado.
Ouvi falar, mas não cheguei a perceber do que se tratava. Mas eu estou desligado desde 8 de março. Vejo a Netflix, a Amazon Prime e a HBO, mais nada. Não vejo notícias, não vejo um único programa.

Esta faz sentido também porque “Chico Fininho”, letra e música do Carlos Tê, faz 40 anos. Lembra-se da primeira vez que a ouviu?
Na cave dos meus pais, com o grupo habitual. O Tê pega na guitarra, toca aquilo e a malta riu muito. Mas riu mesmo muito. Tínhamos fumado umas coisas, mas aquilo não era para levar a sério. Era a gozar com cantar em português,

Acabou por lhe render o título de pai do rock português. Assenta-lhe?
É uma coisa redutora, até porque nunca fui músico de rock, mas quero lá saber.

Na altura tinha 22 anos. Acreditava que a música ia ser a sua vida?
Naquela época, a música não era uma perspetiva de vida para ninguém. A coisa foi acontecendo. Na verdade, andei sempre atrás do prejuízo [risos]. Fui escolhido pela música, tive de a acompanhar.

A música trouxe-o a Lisboa.
Sozinho, sem conhecer ninguém. Andava por aí desenraizado. Pouco depois tive uma filha, não contava, era muito miúdo e não foi fácil. Mas fui ficando. Custou, a adaptação.

Quantas vezes pensou, “vou-me embora”?
Muitas vezes. Sempre que podia, metia-me no comboio e ia para o Porto. Cheguei a fazer viagens de pé, com as carruagens cheias da malta da tropa. Nessa altura ainda podia, não era conhecido.

A miopia livrou-o da tropa, a música impediu a universidade. Que curso teria escolhido?
A escolher um só poderia ser Arquitetura. Mas nem esse seria possível porque não optei por matemáticas.

Nunca estudou música. Porquê?
Ainda andei a aprender piano, mas chateei-me com aquilo. O que eu queria era tocar blues.

Considera-se mais cantor ou mais instrumentista?
A voz facilita o contacto, mas sem a guitarra não era nada.

Em qual das funções é mais competente?
Faço as duas mais ou menos. Cantar, só profissionalmente.

“Ar de Rock” foi o primeiro álbum Tê/Veloso. Fale-me dessa ligação criativa.
Calhou bem. Tínhamos gostos parecidos e queríamos imenso ver as coisas a aparecer. O nosso drive era esse: construir canções do nada, fazer arranjos, regravá-las e cantá-las ao vivo. Havia nos dois uma sede brutal de fazer coisas. Fazer, fazer, fazer.

As parcerias obrigam à consciência do lugar do outro. Tinham esse cuidado?
Não pensávamos nisso, queríamos era fazer coisas. De qualquer forma sempre dei relevância ao trabalho do Tê, que foi muito importante. Tantas vezes lhe dizia “as letras são tuas, fala tu delas”. Os jornalistas faziam-me perguntas a que não sabia responder. Sabia lá eu quando surgiam e em que circunstâncias, se ele estava aqui ou acolá. Quando vinha ter comigo, já as trazia. Mas não adiantava nada. Ele recusava as entrevistas.

Elton John e Bernie Taupin, Ivan Lins e o Vítor Martins são dois de vários casos de parceiras que se rompem. É quase um clássico. Porquê?
Não sei, mas que acontece muitas vezes, acontece.

Custou-lhe muito?
[Silêncio] É complicado [pausa]. Ele puxava o melhor de mim.

E vice-versa?
E eu dele, acho que sim. As coisas acontecem [pausa]. Coisas de egos. Normalmente são os egos. Há muitos casos, é verdade, mas também há exceções. Olha o Vinícius [de Moraes] e o [Tom] Jobim.

No vosso caso, há conserto?
Por mim, há. Pelo Tê, não me parece. Quando dá entrevistas evita falar de mim e ao fazê-lo está a desvalorizar o trabalho que fez comigo. Eu não faço isso. Canto as letras dele, não posso desvalorizar o seu trabalho [pausa]. É o caminho que ele quer seguir. Creio que é um período encerrado da vida dele e pronto. [longa pausa]. É assim.

O músico português Rui Veloso entrevistado por Alexandra Tavares Teles para a NM
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Quando combinámos a entrevista disse-me que está farto de fama. De ser famoso. Porquê?
Porque significa a perda da liberdade, que é a coisa mais preciosa. A fama acaba com a liberdade. Em contrapartida, acho graça às pessoas que depois de fazerem tudo para serem famosas se queixam muito da fama e querem ser deixadas em paz. Acho graça a isso.

Nunca quis ser famoso?
Tinhas ambições musicais, sim isso tinha. Mas não é a mesma coisa. A minha onda era fazer como os de lá de fora. A malta de quem eu gostava.

Quem queria ser?
Não tinha uma referência única. Tanto gostava do Freddie King como do Eric Clapton. Mas também do Tom Waits e do Bruce Springsteen. Dos Genesis. E do Paco de Lucía, do Zeca Afonso, do Zé Mário Branco. Um espectro largo.

O que é que o sucesso mudou em si?
Em mim não mudou grande coisa. Mas mudou a minha qualidade de vida. É suposto trazer maior responsabilidade. Falo da pressão, por exemplo. Essa pressão não funcionava comigo e com o Tê. Fazíamos o que nos apetecia. Basta ver que depois de um álbum com tanto sucesso quanto o “Mingos & Os Samurais” veio o “Auto da Pimenta”, que é o contrário. E que nem sequer foi chancelado pela editora, porque era contra a realização do disco. Nunca fomos pressionáveis.

“Sex & drugs & rock & roll”. Fale-me dessa vida.
“Whisky, women and money” [gargalhada]. Estou a pagá-las. Se pudesse mudava esse lado.

Mudava?
Claro. Aquilo era fuga para a frente. Fiz muita asneira, era um bocado maluco. Sempre gostei de erva, sempre falei abertamente sobre a legalização, mas nunca me habituei e também nunca fui de drogas duras. O uísque era a droga dura. Corria muito álcool. Foram anos e anos de noite, a deitar de manhã e levantar às seis da tarde. Ainda que sempre muito consciente de que aquilo não era vida, na fase da minha separação a coisa esteve muito complicada.

Teve a essa noção?
Tive. Tive a noção de que já estava a ser de mais. Muito excesso e uma entourage que me puxava todos os dias para quela vida. Se tivesse ficado em Lisboa não sei se estava vivo. Vir para aqui [Sintra] ajudou-me.

Ajudou ou resolveu de vez?
Bom, vida calma, calma, só com a covid. Faziam-se aqui almoços que começavam às duas da tarde e acabavam às três da manhã. Mas é o que eu digo: outros fizeram pior e ainda estão vivos. Olha o Keith Richards. Tantos barris de Jack Daniel’s e vai enterrar-nos a todos.

Que tipo de imagem acha que as pessoas têm de si?
A que sempre tiveram: um tipo da família, um primo ou um sobrinho, um gajo porreiro. Todos me tratam por tu. E nunca me escreveram cartas.

Nunca?
Muito pouco. O pessoal que gosta de mim nunca foi de escrever cartas, bastava-lhe a música e eu fico todo contente com isso.

Nem um fã mais intrusivo?
Uma vez, uma coisita. Nada que não se tivesse resolvido rapidamente. Mas pode ser complicado. O Lennon foi assim.

Pediu uma sessão fotográfica breve. Não gosta da sua imagem?
Não me interessa.

Então?
Não gostava especialmente, mas que fazer? Também não há muito para mudar. Cortar melhor o cabelo e pouco mais.

É uma pessoa vaidosa?
Acho que não. Andei com as mesmas botas durante anos e anos.

É preciso uma certa dose de vaidade para entrar no palco, ou não?
No palco estou a trabalhar e, por isso, o que é preciso é ter sentido de responsabilidade. Mas também digo que os grandes momentos de felicidade são em cima do palco. A felicidade e a imortalidade estão ali presentes. Mal acaba o concerto, essa nuvem desfaz-se e volta-se à vida normal, igual à dos outros [pega numa guitarra]. Felicidade é também ter uma guitarra destas embora ainda nem a tenha experimentado.

E ter dinheiro para a comprar.
Claro. Esse vem do sucesso. Se não houvesse sucesso, não tinha este estúdio. Não fui cravar dinheiro a ninguém, não fui aos milhões da Europa. Foi feito com o dinheiro que ganhei. E, aqui entre nós, nunca mais vou pagar isto.

Como é a sua relação com o dinheiro?
Nem quero vê-lo. Não vou a um banco há muito tempo. Tenho uns pequenos investimentos e um gestor de conta que trata disso. Nunca pergunto nada. Não mexo em contas, não sei fazer transferências, não sei quanto pago de água nem telefone.

Não tem medo de ser enganado?
Muito de vez em quando vou ver o que se passa. Desde que não me roubem tudo.

Quer dizer que tem muito dinheiro?
Não tenho muito dinheiro, mas tenho o suficiente.

O que pode estragar a felicidade do palco?
O mau som.

O que precisa de ter no camarim?
Duas garrafas de vinho tinto, água e umas coisitas para comer. Nada de especial. Nunca fui esquisito nisso. Só peço que o vinho seja bom.

Muitos concertos pelo país profundo, sem autoestradas.
Chegámos a receber o cachê em notas de 20 e 50 escudos, dentro de um saco de plástico, todas amarrotadas. Há muitas histórias desse tempo de que já nem me recordo. Bem me dizia o meu amigo Nelson Mota: “Rui, minha memória fumei-a toda”. A sério, estou um bocadinho assim.

Fora do palco, não há felicidade?
Não posso queixar-me. Algumas coisas correram mal, mas que posso fazer? Também acontece aos outros.

O que correu assim tão mal?
Os meus filhos saírem de casa, na sequência da separação. Isso sim, é a vida correr mal a sério. Sempre fui ligado aos miúdos. Aos filhos, mas também aos sobrinhos e aos filhos de amigos. O tio Rui. As crianças gostam de mim. Nunca percebi porquê.

Porque lhes cantava?
Por caso as crianças gostam muito do “Não há estrelas do céu”. Mas não. Tony Bennett dizia que cantava só por dinheiro e eu, não indo tão longe, só gosto de cantar profissionalmente. Mas não adianta nada. Há sempre os que me pedem para cantar “qualquer coisa” e me passam para a mão guitarras horrorosas, de má qualidade, em que não consigo tocar. Se me apetece cantar ou tocar naquela porcaria não interessa nada. As pessoas querem o artista, o palhaço. São 40 anos disto. “Vá lá, canta”, e eu lá canto. Depois, arrependo-me sempre porque aquilo não me sai bem.

Foi pai muito cedo.
Numa altura muito complicada. A Joana, a mais velha, teve pouca atenção e disso já não a posso compensar. O quanto adorava que os meus filhos fossem pequeninos outra vez. Sonho com eles pequeninos. Tenho muita nostalgia. De repente, dei-me conta de que deixei de ter bebés ao colo. Os meus filhos [24, 26, 38 anos] cresceram, os filhos dos meus amigos também cresceram. Ficaram como nós.

Virão netos.
Não há meio. Não consigo ser avô.

Gostaria de ser pai de novo?
Adorava ter tido dez filhos, isso sim. Agora que estou com um chamamento para o retiro, para ir para longe, não. Aos 62 anos um gajo tem de ser sábio.

Como lida com a passagem do tempo?
É uma grande chatice. Envelhecer e ver envelhecer. Perdi o meu pai há um ano. Foi-se apagando. Ficando cada vez mais triste. Tinha medo de cegar. Não queria morrer sem luz. Já vejo o meu pai na minha pele e nas minhas mãos. Já vejo o meu pai em mim. Essa passagem do tempo traz-me a necessidade enorme de fazer coisas que não fiz. De mudar. Viajar mais, ler mais. Tenho ali uma estante enorme de livros que gostava de ler.

Esteve perto da morte.
Mais do que uma vez. Uma delas com um princípio de septicemia. Não foi fácil.

Saiu do processo como entrou: ateu.
É verdade. Não tenho fé em Deus. E também não tenho lá muita no ser humano.

Então?
Desilusões todos temos na vida. Vai-nos acontecendo. Vamos ficando a conhecer os caminhos, a deitar fora o joio. Lidei com muita gente que não me fez bem nenhum. A certa altura temos noção de que perdemos muito tempo com coisas insignificantes. Fica o mais importante. Ficar em casa a ler um livrinho, por exemplo.

Na relação com a crítica, o que de mais cruel se escreveu sobre si?
Lembro-me de um tipo que escreveu sobre a maneira como eu dizia as palavras. Irritou-me solenemente. O homem gostava era do Fausto e, vai daí, desanca em nós. Apetecia-me ir-lhe à tromba.

Muito mau feitio?
Um bocadinho. Mando vir. Sou um gajo que reage mal à injustiça. Quando um gajo é injusto tenho de ser acintoso.

É capaz de atingir a agressividade física?
Aqui e acolá. Mas não vou contar nada [risos].

Admite então o lado torcido?
Reconheço esse lado. Sou muito crítico, muito observador do género humano e com um humor bastante ácido. Devo ser difícil de aturar. Por vezes eu próprio sinto essa dificuldade. Mas sou sincero.

O músico português Rui Veloso
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Apaixonado vai até onde?
Nesse estado, fico parvo. Ficamos todos parvos. Não tem interesse nenhum. Senta, deita, levanta, e a gente cumpre. Mais vale não estar.

Nunca mais, portanto.
Duvido. Uma pessoa nunca diz que não, mas é pouco provável.

É mesmo importante ouvir a mesma canção?
No meu caso, e resumidamente, faltou ouvir a mesma canção. Isso e o facto de ser uma pessoa eventualmente muito centrada em mim, muito individualista. O individualismo é uma tendência grande dos músicos.

Como lida com as ruturas?
São traição da minha expectativa. E há feridas que nunca cicatrizam.

O que é que de mais importante pode ensinar aos seus filhos?
A importância de ser honesto, de não mentir. De ser bem-educado. Mais ou menos bem-educado [gargalhada]. Sei que não sou muito bem-educado. Digo muito palavrão. Também não vim para Lisboa para deixar de os dizer ou perder a pronúncia. Era o que faltava. Faço questão de a manter.

Um portuense em Sintra.
Parece que estamos no Minho. Adoro o Minho. Devo ter uma costela minhota e outra alentejana.

O que é um homem do Norte?
É o que gosta do sítio onde cresceu. Que se orgulha da pronúncia e dos símbolos. Depois há os que vêm para cá e se adaptam. Os que perdem as raízes. A política está cheia deles.

A guerra entre o Porto e Lisboa faz sentido?
Basta ver como Lisboa trata o resto do país para perceber que faz sentido. O pessoal das outras regiões também manda vir. Não se faz ouvir tanto, mas também manda vir.

Quando vai ao Porto, o que visita?
Vou à Cufra. Ao Afonso das francesinhas, a dois ou três restaurantes de Matosinhos de que gosto muito. Mas a liberdade é pouca. Gostava de poder andar pelo Porto como ando lá fora. Em Moçambique, por exemplo.

Porquê Moçambique?
Pelo espaço e liberdade. E porque também devo ter uma costela africana. Sempre gostei de blues, do canto negro. Desde miúdo. O meu pai tinha um disco que me chamou logo à atenção. Senti cedo um chamamento enorme por aqueles ritmos.

É filho de um ex-presidente da Câmara do Porto. O que pensa de Rui Moreira?
Que é um ótimo presidente da Câmara e que seria um ótimo presidente da República. Mas duvido que queira e é capaz de ter razão.

Talvez prefira ser presidente do F. C. Porto. Gosta de futebol?
Não ligo. De coração, sou boavisteiro. Em pequeno ia ver os jogos ao Bessa, mas nunca me prendi. A cena da música preenchia-me a cabeça.

A música é herança de quem?
Na família toda a gente tem bom ouvido. Toda a gente cantava. A minha irmã e o meu irmão cantam muito bem. Adoram música. O meu pai tocava viola, os meus avós tocavam. Os meus filhos são sábios, nunca quiseram nada com a música, mas cantam bem. O Manuel tem um ouvidaço, sai ao pai no ouvido. Topa tudo.

O chamado ouvido absoluto?
Acho que tanto não. Mas tenho um ouvido terrível, isso é verdade. Uma coisa que me assusta é perder o ouvido. Tenho muito cuidado porque o ouvido é a coisa mais importante que um músico tem. E, ao mesmo tempo, uma maldição. A desafinação incomoda-me muito. Não suporto ouvir vozes desafinadas. Faz-me mal.

Há muitas na música portuguesa?
Há umas que são afinadas de mais graças aos computadores que afinam a voz até de quem desafina. Em estúdio e em concerto. Não são poucos.

E boa voz?
Boa voz tem o Ricardo Ribeiro, o Camané, o Carlos do Carmo, o Tiago Novo [Expensive Soul]. A Manuela Azevedo [Clã] canta muito bem. Na minha zona há muita gente a cantar bem, o que é bom mesmo sabendo que cantar bem não é tudo. Há depois uma franja da área do pimba em que é tudo muito afinado. As músicas são feitas, afinadas, produzidas e cortadas da mesma maneira em todo o lado. Uma música sem alma, feita numa máquina e destinada a vender. O que não deixa de ser legítimo.

Tanta gente nova, sobretudo no fado.
Levantas uma pedra e sai um fadista. E de seguida um chef.

Como sente as suas músicas tantos anos depois?
A reinterpretação dos meus temas dá-me gozo. Baixei os tons e ganharam outro peso. Há uns anos, cantava muito alto, puxava muito. Agora, para não esganiçar, baixei os tons e os acordes não são bem os mesmos.

Gosta de as ouvir cantadas por outros?
Depende. Quase ninguém sabe cantar as minhas músicas. Não é fácil. É que não é fácil, mesmo. Parece, mas não é. Só tomei consciência disso quando vi tanta gente com dificuldade em cantar as minhas canções.

Um disco de originais é uma possibilidade?
Provavelmente já fiz o melhor que tinha a fazer. Provavelmente não iria fazer melhor e não ter letras, letras que me digam alguma coisa, também não ajuda à vontade de compor. É muito difícil encontrar quem escreva com a cumplicidade e inteligência do Tê. Não faço ideia se ele ainda escreve.

Gostava de voltar a fazer um disco com ele?
Não temos contacto, nenhum contacto, e por isso a questão não se coloca.

Nunca pensou em escrever as letras?
Já pensei nisso, mas sou intrinsecamente músico. Cada macaco no seu galho. Querer fazer tudo quando só se tem jeito para fazer uma coisa bem não é bom. Eu gosto de compor, de arranjar, de interpretar, de dar vida e alma às palavras.

Gosta de escrever música para outras vozes?
Desde que o trabalho me agrade minimamente. Se não, não há hipótese. Claro que já entreguei trabalhos que não achava grande coisa, mas depois os gajos ouviram e disseram, “muito bom”. Ok, deixa andar. Alguns transformaram-se em sucessos.

O que distingue os grandes músicos?
O som, a criatividade, a capacidade de improviso, a imprevisibilidade. Detesto repetições. No meu trabalho, evito-as. Nunca canto a mesma música da mesma maneira. Nem ao vivo nem em gravação. Nem na composição. Não aprecio repetições.

Sente-se mais intérprete ou mais compositor?
Talvez mais compositor, mas a voz faz parte da composição. Componho com a voz. A voz é parte fundamental da composição. Não componho a fazer as notas no piano. É a cantar.

Que marca tem deixado na música portuguesa?
Gostava de ter sido como o Tom Jobim, ou outro daqueles gajos que adoro. Comparando, estou ali num caminhozinho. O que me interessa é ler e viajar, esconder-me no meio do Alentejo com uns amigos, comer uns petiscos, beber uns tintos e uns brancos e tocar as minhas guitarrinhas. Vou fazer 63 anos. Sei que não terei muito mais do que isso para andar a viajar. Se tiver mais dez anos de vida porreira quero viajar. Quero aproveitar agora. A música não tem de estar na minha vida sempre em primeiro plano. Eu toco todos os dias, mas não tenho de estar a pensar profissionalmente na música. E o que penso é por causa da malta que trabalha comigo. Sobretudo por ela mantenho a vontade de tocar ao vivo. Mas já sem sessões de autógrafos de hora e meia. Não se imagina o quanto é cansativo. Cheguei a estar três horas naquilo. Não atendêssemos a todos e éramos uns monstrinhos. Tenho direito a ir deixando cair algumas coisas. Vejo os da música a morrer aos 69, aos 70, aos 73. E penso, “deixa cá ver”. A minha fuga de Lisboa para aqui, há 28 anos, era já o prenúncio. Era eu a fugir da tentação. Não foi fácil. Isto não era assim, bonito. Foi preciso muita dedicação, muito ganha-gasta. A minha marca? Todos os países têm aos seus artistas. Famosíssimos, mas locais. Eu sou um artista local. A minha marca vai do Minho ao Algarve.