Rui Cardoso Martins

Remorso bêbedo

Ilustração: João Vasco Correia

O que é a autoconsciência? Talvez uma pessoa aperceber-se daquilo que é, do que vale e também do que (já) não vale. Precisa da circunstância e de um lugar, estes mudarão, claro, mas a base da pessoa, a lousa em que esta melhor se escreve a giz branco, está presente quando pensa. Sim, sim. Não, não.

Para o tribunal, o senhor Armando, que é um homem grande, comprou botas de camurça, calças de ganga e um blusão creme, tudo novo como se fosse passear à beira-rio com a família num fim de tarde de domingo. Mas o quadro complica-se: quando fala dos filhos, o senhor Armando inventa definições. Acha que levam
– uma vida pouco valorável, compreende?
e o seu grande corpo vira frágil como se o metessem num barquinho no nada, só mar para se afogar e céu para morrer de sede. Armando tem consciência de que é um bêbedo e que as possibilidades da vida se estão a esgotar. Disse-lhe o juiz:

– Deseja prestar declarações?

– Sim, sim.

– Tem a palavra, então.

– Pronto, o que se passou foi o seguinte. Eu na altura era ajudante de padeiro, e havia lá um colega que fazia anos, e levou uma garrafa de vinho do Porto. No fim do serviço, convidou todos para beberem um copo de vinho do Porto. Eu hesitei, não posso, ainda vou conduzir daqui até casa, ainda são quilómetro e meio/dois quilómetros. “Eh pá não faças essa desfeita, não faças essa desfeita!”, e pronto, lá me deixei ir. E bebi e tive ali um embate na Rua de Sapadores, um indivíduo que não respeitou o sinal vermelho.

– O senhor não teve culpa do acidente?

– Não, não, senhor.

– O exame deu 2,44, depois com margem de erro foi reduzido para 2,13 gramas de álcool por litro de sangue. Em suma, isto corresponde à verdade?

– Sim, sim.

– Era de noite?

– Eram quatro e pouquinho, saí lá do trabalho…

– Vou fazer umas perguntas relativas a outros aspectos. Nós temos então aqui esta situação na Unidade de Alcoologia, o senhor está a fazer algum tratamento?

– Sim, sim. Eu comecei… eu já lá ia a reuniões ao centro de Alcoologia e depois, pronto, comecei a ir lá fazer essa medicação e pedi à minha médica de família para ir lá para a Psiquiatria, que em 2017 tinha grandes conflitos com os meus miúdos, não é, que eles andavam aí metidos numa vida assim… nada valorável, não é, e arrependo-me disso.

– Também foi referenciado pela médica de família para o Serviço de Psiquiatria.

– Sim, sim.

– Tem consultas também regulares de psiquiatria?

– Sim, sim. Andava lá na Psiquiatria, que era a mesma coisa.

O carro do desastre foi para abate. O cadastro do senhor Armando está cheio de histórias parecidas, foram-se acumulando como as antigas páginas amarelas numa despensa. Já esteve detido em casa com pulseira electrónica para não ir beber mais. Toma uma lista de medicamentos com nomes que acabam em ina e lina.

– Melhorei. E já há dois anos que não toco no álcool.

– E com os seus filhos… melhoraram também as relações?

– Com os meus filhos, pronto, eles andavam em mau caminho, pronto não querem é agarrar-se a trabalho nenhum.…

– Vive com quem?

– Vivo com a minha mãe que agora está internada, partiu as duas pernas, andava cheia de tonturas, andava ali de autocarro na Avenida da Igreja, caiu aos tombos e agora está internada no Hospital Curry Cabral. Vivo também com os meus filhos. Um tem 19, o outro tem 22.

– E são assim um bocado rebeldes?

– Aquilo é um bairro camarário, infelizmente. Juntam-se com os outros, não é?

– Nenhum deles está a trabalhar neste momento?

– Não, não. O mais velho esteve a trabalhar aí numa pizzaria com forno, em Sapadores. Mas depois lá decidiu que com ordenado que era pouco, e pronto…

Arrependido? Sim, sim, disse Armando, e não, não volta a beber.

Pois, pois, talvez, talvez.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)