Regresso ao lar da Misericórdia de Ovar, entre o luto e a esperança

A ciência continua a estudar o vírus, a revirá-lo do avesso, a tentar conhecê-lo melhor por dentro e por fora (Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Bengala numa mão, máscara na cara, boa-disposição. Manuel Valente é otimista por natureza e “porreiro” é uma espécie de ponto final das suas frases. “Ando porreiraço, não me falta nada, esta é a minha casa, estou porreiro.” Não gosta de estar parado e anda ansioso, como se tivesse formigueiro no corpo, para voltar a tocar bandolim nas festas do lar da Santa Casa da Misericórdia de Ovar e no coro das missas das 10 horas, aos domingos, na capela colada à instituição. “Sou muito alegre, faço festas no salão, porreiro.” O vírus não lhe roubou a alegria, não lhe guarda rancor, as três semanas de infeção pelo novo coronavírus não lhe ocupam muito espaço na memória. O primeiro impacto doeu-lhe, apesar de tudo. “Fiquei muito triste, estava no meu quarto, era perto da meia-noite, disseram-me para pôr a máscara e que ia para outro sítio. Tinha de ser, temos de cumprir as leis que nos dão”, recorda.

Manuel Valente, 86 anos, uma vida de trabalho nos tratamentos térmicos numa empresa de aço e ferramentas manuais, estava infetado, tinha de ir para uma das três salas do centro de dia readaptado para receber os doentes positivos para covid-19. “Nunca tive febre, tinha pouca tosse, deixei de comer durante três dias, nunca estive internado.” E ri-se. “Dei cabo dele em pouco tempo, ele não quer nada comigo.” A filha sempre a ligar para o lar, a querer saber de si, quatro testes feitos, tudo direitinho. “Tinha de cumprir as leis, queria sair, mas não podia, não podia ser. Agora estou feliz e porreiro.” Testes negativos e voltou ao seu quarto. “Graças a Deus, a coisa está a correr bem. Estou porreiro”, confessa. “Mas sabe de quem é a culpa disto tudo? São os homens e essas porcarias que põem pelo ar e que dão cabo de tudo.”

“Dei cabo dele em pouco tempo, ele não quer nada comigo.” Manuel Valente tem 86 anos e conseguiu derrotar a covid-19
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Manuel Valente entra no lar e Maria Lúcia Oliveira, 87 anos, sai para o jardim, também não precisa de ajuda para se movimentar. Tem o cabelo apanhado num pequeno carrapito tapado por uma bolsinha de croché. “Não implico com nada, põem um bocado de laca, penteiam, e fica assim.” Fala-se do vírus, da covid-19, e a conversa engata na sua vida de trabalho, de servir em casa dos patrões, cozinhar, lavar, passar a ferro, encerar. Criou as filhas do senhor doutor como se fossem suas, teve duas meninas, uma está agora em França, agradece à patroa a casinha que lhe deu para viver, com papel passado e tudo.

A doença que abalou o lar, um dos mais fustigados pela covid-19 no país, não lhe capta a atenção, não esteve infetada, notou algumas mudanças nos quartos, nada de mais, continuou e continua a rezar por todos. “Peço à Mãe do Céu que tome conta de todos. A maldade não faz nada bem às pessoas.” E nem uma palavra da sua boca sobre esse vírus que alterou os dias da sua casa desde há três anos.

O mundo de cabeça para baixo

O lar tem uma nova residente, a Patas, uma pequena cadela labrador, toda preta, chegou no início deste mês, ainda anda a conhecer os cantos à casa. Não pára quieta, acha piada aos atacadores das sapatilhas, não os larga, brinca com eles, fareja o que lhe aparece à frente. A Patas faz parte de um novo projeto de terapia assistida por animais para ser amiga das crianças, dos idosos, dos funcionários da instituição. A ideia surgiu antes da pandemia. Vanessa Martins, terapeuta ocupacional, passeia a Patas pelo jardim do lar que agora também é sala de visitas a céu aberto com bancos de madeira, uma mesa improvisada de fardos de palha, uma cesta de flores. As visitas estiveram suspensas, foram retomadas há pouco, o circuito mudou. Além do espaço no jardim, há um outro compartimento para visitas no interior, com acesso pelo exterior, improvisado numa das salas de estar.

A Patas anda contente da vida, entretanto vê-se um pato que também passeia no jardim vindo não se sabe de onde e que provoca a curiosidade da cadelita e dos elementos da direção que prometem investigar como o animal ali terá ido parar. Aproxima-se a hora de almoço e, lá dentro, há azáfama na cozinha, muito trabalho, muitos pratos para compor.

O jardim do lar agora também é sala de visitas a céu aberto. E por lá encontra-se a Patas, uma cadela labrador
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Gracinda Fernandes é cozinheira, está de serviço, e durante o confinamento fez doces para a equipa técnica e trabalhadores que, alternadamente, viveram 15 dias no lar. Bolos de mousse, tabuleiros de chocolate, muito açúcar para adoçar aqueles dias e noites dos profissionais que deixaram casas e famílias para evitar rotações e riscos de contágio. Miminhos que lhe saíam do coração para uma equipa assoberbada. “É um trabalho muito desgastante”, assume. Fez anos nessa altura, recebeu flores do jardim colhidas pelas funcionárias, estrelícias num ramo com laço vermelho. Foi uma surpresa num aniversário diferente do habitual.

“Parece que o Mundo virou de cabeça para baixo”, atira Gracinda, prestes a terminar os almoços de máscara na cara, touca, mangas pretas de plástico para proteger os braços da fritura das pataniscas. Pataniscas com arroz de feijão e bacalhau cozido com batatas e couves para o lar e para as 44 marmitas do apoio domiciliário, bacalhau à Brás para os mais pequenos, da valência da infância. Sai tudo da mesma cozinha, mas os procedimentos são outros. “O nosso trajeto foi todo alterado, entramos pela porta das traseiras, vestimo-nos na despensa, temos uma área restrita”, conta. Os turnos também foram diferentes, 12 horas, dia sim, dia não. Volta e meia, falava com o seu médico de família, punha-o ao corrente do que se ia passando, e ele pedia-lhe máxima atenção às normas de higiene e segurança. Lavar bem as mãos, não as levar à boca, máscara na cara. Neste momento, respira-se melhor. “Temos muito cuidado e tem resultado. É um alívio, mas não estamos livres.”

O ar está mais leve

A ciência continua a estudar o vírus, a revirá-lo do avesso, a tentar conhecê-lo melhor por dentro e por fora. Catarina Pinto é uma das enfermeiras do lar e reconhece que não é fácil. A doença é complexa e difícil de entender, o regresso da normalidade é imprevisível, pontos de interrogação atrás de pontos de interrogação. Cada morte doeu. E foram 12 em três semanas. “Ovar é uma cidade pequena, já nos conhecemos muito bem, e aqui fazemos questão de os conhecer a fundo, são como uma família, não são apenas mais um residente”, diz, sentada frente a um computador durante mais uma manhã de trabalho. Foram 12 óbitos, todos declarados no hospital, nenhum no lar. Cada má notícia era um golpe terrível. “Entrámos num processo de luto para conseguirmos ultrapassar estas mortes repentinas.”

Eduardo Pereira, administrador da Santa Casa de Ovar; Vanessa Martins, terapeuta ocupacional; e Vera Castro, diretora técnica do lar
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

O lar tem oito enfermeiros em permanência, 24 horas por dia, sete dias por semana. O pessoal médico foi absorvendo informação sobre esse novo vírus, muitas dúvidas, tantas incertezas. “Não é, de todo, uma doença muito normal. Deparámo-nos com um conjunto de situações muito variadas e muito diferentes de utente para utente, que provocou vários sintomas. Não foi fácil”, enfatiza a enfermeira. Os dias prosseguem, o ar está mais leve, mas o amanhã é tão incerto. “É imprevisível, uma incógnita.” E os idosos, já se sabe, são uma população de risco, imunodeprimidos, com patologias crónicas.

Os dias duros estão a uma distância de poucos meses, estranhamente parece que estão tão longe. Vanessa Martins, a terapeuta ocupacional, relembra esses momentos. “Unimo-nos muito como equipa, trabalhámos com os nossos idosos para evitar o isolamento – ler livros, ver televisão, exercícios cognitivos -, o que conseguíamos fazer dadas as circunstâncias.” As prioridades estavam bem definidas, explicar o que estava a acontecer não foi simples. “Os idosos são o mais importante, fizemos ações de sensibilização, muitos não acreditavam no que estava a acontecer, tentámos dar-lhes alguma tranquilidade.”

Ao mesmo tempo, tudo mudava no interior do lar, um edifício com 110 anos. Três salas do centro de dia, encerrado como todos os outros do país, foram transformadas em quartos para os infetados pelo vírus. Os quartos duplos ficaram individuais, o refeitório fechou, as refeições eram servidas nos quartos. As visitas foram suspensas, os telefonemas eram atendidos por duas assistentes sociais. Os quartos do rés do chão ficaram quartos de isolamento e ainda assim estão. O trajeto dos funcionários alterou-se para evitar cruzamentos. A capela da Misericórdia, aberta à comunidade, fechou e ainda não reabriu, nem como local de oração dos idosos, nem como lugar de celebração litúrgica. Permanece em silêncio.

A capela da Misericórdia, aberta à comunidade, fechou com a pandemia e ainda não reabriu
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Incertezas, insegurança, medos, perguntas sem resposta, uma casa para gerir que tinha de funcionar. Vera Castro, diretora técnica do lar, viveu 15 dias na instituição, sem estar com a filha de dois anos. Na reunião em que a possibilidade foi colocada em cima da mesa, para que a equipa fosse dividida a meio e os técnicos ficassem duas semanas confinados no local de trabalho de forma a evitar entradas e saídas, turnos, riscos de contágio, a responsável disse que ficava. Nenhuma outra hipótese lhe passou pela cabeça. “Foi uma adaptação constante, seguir situações diárias com as quais não estávamos acostumados, foi gerir o dia a dia.” Descomplica, simplifica, garante que o espírito de equipa esteve sempre em alta, e que a motivação não desmoronou. “Todos fazíamos tudo.” O sentimento de pertença e de cuidar do outro estava implícito, não foi preciso puxar por ele.

Ida a Belém e mensagem de Marcelo

O primeiro óbito aconteceu a 26 de março. Um homem com mais de 90 anos, várias patologias, morria no hospital com covid-19 positivo. Ninguém estava à espera, a primeira equipa que se tinha voluntariado para ficar a viver 15 dias no lar estava confinada há uma semana. Foi uma surpresa, um murro no estômago. O concelho de Ovar já estava em cerca sanitária depois de detetado o elevado risco de contaminação comunitária. A última morte aconteceu a 18 de abril, uma mulher, com mais de 80 anos. Depois disso, e até ao final de abril, 54 idosos estavam infetados. E a 3 de junho estavam todos recuperados. Uma surpresa pela positiva, desta vez.

Álvaro Silva, provedor da Misericórdia de Ovar, ficou surpreendido com a capacidade de recuperação dos 54 idosos, seja pela resistência dos mais velhos, seja por um ataque mais fraquinho do vírus, seja pela capacidade de resposta dos técnicos, seja pela qualidade dos serviços à disposição. Seja o que tiver sido, e depois de 12 mortes que abalaram a casa, todos os infetados, praticamente metade utentes, tinham testes negativos. “Uma coisa absolutamente fantástica”, sublinha. “A equipa de enfermagem foi fundamental na contenção dos danos.” A disponibilidade dessa equipa para viver 15 dias na instituição também terá sido decisiva. “O vírus não nasce cá dentro, vem de algum lado, a equipa aceitou o desafio, diminuíam-se as entradas e saídas e o risco de contágio. Na altura, sabia-se pouco do vírus”, salienta.

Maria Lúcia Oliveira, 87 anos, não esteve infetada e apenas notou algumas mudanças: continua a rezar por todos
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Os sintomas eram monitorizados 20 vezes ao dia para cada utente, houve funcionários que fizeram sete testes, chegaram a usar quatro pares de luvas. Pediram-se testes aos serviços de saúde pública que foram recusados. “Foram momentos muito complicados.” A vários níveis. “Não foi só não terem visitas. Com os infetados mesmo separados, todos os idosos ficaram confinados aos seus quartos durante um mês. Não tiveram visitas dos familiares, não podiam sair dos quartos, foi muito violento.” Por tudo isso, está a ser feito um levantamento do impacto do que aconteceu na saúde mental de quem viveu tamanha tormenta. A preocupação de que, se alguma coisa corresse mal, nunca mais iriam ver a família, era permanente, não passava. “Lidar com o invisível e o desconhecido é muito complexo, são pessoas de idade que já passaram por muita coisa, até por guerras, e, de repente, dizem-lhes que está um vírus aqui.”

O concelho de Ovar estava no olho do furacão, a 17 de março era decretado pelo Governo como zona de calamidade pública, no dia seguinte estava em cerca sanitária, isolado do resto do país, fechado à saída e entrada de pessoas para conter a contaminação. Os funcionários da instituição tinham autorizações para entrar e sair do município, e muito material de proteção doado, viseiras e máscaras, teve de ser levantado na “fronteira”. Ovar estava cercado por um cordão sanitário e tinha polícia nos limites dos concelhos vizinhos. O que podia chegar à porta do lar, a instituição tinha de ir buscar. Eduardo Pereira, administrador da Santa Casa ovarense, recorda mais essa tarefa. “Numa altura em que escasseavam os equipamentos, os poucos que havia eram caros, tínhamos de ir buscar alguns desses equipamentos à fronteira.” Os fornecedores e doadores do lado de lá de Ovar, polícia no meio, quem ia buscar com o pé dentro da cerca. O administrador relembra o esforço permanente para atualizar tudo o que era necessário, material, equipamentos, espaços, técnicos. Diminuir fluxos, produtos em quarentena e menos manipulação de frescos, mais material descartável, a manutenção do elevador, higienização constante.

A 6 de maio, Álvaro Silva esteve em Belém com o presidente da República para reportar a situação. A reunião aconteceu na sala do Conselho de Estado e foi daí, desse sítio simbólico, que Marcelo Rebelo de Sousa gravou um vídeo com uma mensagem de agradecimento à instituição. Enalteceu a dedicação em tempos tão conturbados, a excecionalidade de uma equipa que “não parou um segundo ao serviço de uma causa que é de todos nós”. Palavras de apoio, de confiança e de esperança, recebidas como bálsamo para a alma.

Nada será como dantes

As rotinas voltam lentamente, as visitas foram retomadas no mesmo horário, das 10 às 17.30 horas, mas agora por marcação e uma visita por idoso e por semana. O refeitório reabriu com menos mesas, metade da capacidade, dois turnos a funcionar As novas entradas implicam 14 dias de quarentena obrigatória nos quartos do rés do chão com papéis colados nas portas com nomes e datas.

Nada será como dantes na Misericórdia ovarense que presta apoio a mais de mil utentes por dia, nas suas diversas valências. Não poderá ser, seja por estas ou por outras circunstâncias passadas ou que hão de vir. “Há coisas que não vão voltar a ser como eram. Mesmo internamente, há procedimentos que vão ficar para o futuro”, resume Álvaro Silva. Eduardo Pereira acrescenta outros fatores. A inovação em curso antes da pandemia, da nanotecnologia ao serviço de higienização das batas de trabalho, e as mais exigentes e diversificadas respostas aos adultos de hoje, velhos de amanhã. “A forma de cuidar dos idosos tem de mudar”, defende o administrador. “É uma nova realidade e temos de nos habituar a ela”, adiciona o provedor. Os dias seguem, um atrás do outro, no lar que esteve no epicentro de um vírus que não dá descanso. As dúvidas persistem. “Desconhecíamos a capacidade de resistência dos idosos, os óbitos fizeram mossa, a motivação foi fundamental”, realça Álvaro Silva. “Isto começou. E terminará como?” Ninguém sabe.