No cinema português, mais nenhum autor esteve tão próximo de ser nomeado para um Oscar. Realizadora portuguesa, que acumula mais de 80 distinções nos mais exigentes circuitos mundiais, continua, como sempre, determinada a criar histórias curtas em grandes imagens.
No dia em que Regina Pessoa inventou o verde, correu a contar à irmã e as duas decidiram não contar a ninguém. Os olhos, não é difícil de adivinhar, entusiasmaram-se exatamente como agora se entusiasmam, de cada vez que a realizadora fala dos seus filmes, um desenho de cada vez – e em cada segundo de um filme de animação há 24 desenhos. Em Vila Nova de Outil, Cantanhede, como em muitas outras aldeias e cidades em Portugal no início nos anos 1970, o material para desenhar era escasso e nesse dia, aos “quatro ou cinco anos”, Regina tinha apenas duas cores para testar a imaginação nos cadernos diários que a irmã lhe emprestava. O azul e o amarelo, o amarelo e o azul, até que o amarelo passou por cima do azul e o verde foi inventado.
Foi um momento fundamental, o início de um percurso que a tornou na realizadora portuguesa que mais perto esteve de ser nomeada para um Oscar. E por duas vezes, com duas curtas de animação. Em 2006, a “História Trágica com Final Feliz” esteve na “shortlist” para ser uma nas nomeadas; em 2020, há poucas semanas, o mesmo aconteceu com “Tio Tomás – A Contabilidade dos Dias”. São duas das obras em que Regina foi aperfeiçoando a sua obsessão: desenhar pequenas histórias com grandes imagens em movimento.
Os títulos desiludiram-se com a notícia de que afinal a nomeação voltou a não acontecer, embora pareça injusto referir o “quase”, “o esteve para ser”, o “não chegou lá”, como se se tratasse de uma coisa fácil que não se conseguiu, um falhanço sem explicação ou remissão. Parece injusto porque é. “Tio Tomás” venceu o Prémio do Júri no Festival de Annecy (o mais reputado festival da animação mundial, que aliás já tinha conquistado com “História Trágica com Final Feliz”), foi o Melhor Filme nos Annie (os maiores prémios da animação de Hollywood) e esteve entre as dez curtas de animação de onde saíram as nomeadas para um Oscar. Quantos filmes falharam desta maneira? Nenhum. Não houve nenhuma obra cinematográfica portuguesa que tenha estado sequer perto desse alegado “falhanço”.
Regina não gosta de números, mas é justo que os números deem densidade a uma carreira ímpar.”Noite” (1999), “História Trágica Com Final Feliz” (2005), “Kali, O Pequeno Vampiro” (2012) e “Tio Tomás” somam mais de 80 distinções nos mais prestigiados circuitos do cinema. São números construídos a partir de um pequeno escritório em Vilar do Torno e Alentém, Lousada, onde a realizadora e o companheiro, o realizador e produtor Abi Feijó (também ele com obra notável), montaram um museu, a Casa de Vilar, e um estúdio de animação. É aqui que nascem as ideias de Pessoa e onde Pessoa vai usando a sua vida e as suas memórias para trilhar novos caminhos artísticos, sempre em busca da invenção de um verde.
Carvão e ar puro em casa do Tio Tomás
Não foi um percurso retilíneo, em linha direta com um sonho de sempre. Cedo se percebeu o seu talento para o desenho, mas foi com o seu tio Tomás (protagonista do filme) que se espantou com a liberdade da criação. Em casa de Tomás era permitido desenhar nas paredes com o carvão da lareira e esse ar puro era um escape a uma vida familiar complexa. A mãe de Regina era esquizofrénica e não tinha condições para tomar conta das duas meninas. “Não foi fácil crescer com ela, mas aprendi a ver a minha mãe como ela é e não como eu gostava que ela fosse”, reflete agora, décadas depois, sentada em frente ao computador onde desenha camada sobre camada de traços e texturas por cada uma das imagens que produz. “Tio Tomás” tem 13 minutos, 780 segundos, 18 720 imagens.
“A animação não tem nada de glamour”, sublinha, enquanto vai mostrando no ecrã o impressionante processo visual necessário para fazer uma – uma só! – imagem de “Tio Tomás”. Primeiro umas linhas, simples, de um braço e de uma mão, depois mais uma camada para vincar as formas, depois mais uma de textura, em seguida o cenário, depois a cor amarela e laranja de uma lareira, em cima a luz que reflete, por baixo a sombra que nasce, depois mais um pormenor e ainda outro. Regina, “control freak” assumida, tudo domina e tudo decide. A última camada, que ocupa todo o ecrã, tem instruções precisas para os animadores que com ela trabalham.
Aos 17 anos, em 1987, foi para o Porto, trabalhar em casa de uma senhora que recebia crianças, onde já trabalhava a irmã, e estudar na escola artística Soares dos Reis. Um ano depois, entrou em Belas Artes, na Universidade do Porto. “Paguei todos os meus estudos”, recorda, “e o curso de Pintura é caro!”. Nesses dias, o cinema não era sequer uma opção. Acontece porém que o destino a encontrou em busca de um trabalho temporário e alguém lhe falou que Abi Feijó precisava de desenhadores. “Mostrei os meus desenhos ao Abi e ele disse para eu começar logo no dia seguinte.” Arriscou, embora não muito convicta. “Não sabia nada. A ideia que eu tinha da animação era a quela que normalmente toda a gente tem: os cartoons, os bonecos para rir. Isso não me interessava propriamente. Mas, quando conheci o estúdio do Abi, vi que havia outro lado que me seduziu, porque usava as técnicas que aprendi na escola, em Belas Artes, de textura, de riqueza plástica, mas em movimento e com cruzamento de outras disciplinas.” Essa mistura de linguagens – a do cinema, da música e da literatura – somada ao desenho e ao engenho visual, fê-la repensar. “Foi fascinante descobrir a riqueza da curta-metragem de autor de animação.”
O segundo início começou aí, com a animação de uma das personagens de “Os salteadores”, de Abi Feijó, estreado em 1993. “Não sabia nada, mas fui-me desenrascando bem.” O talento foi prevalecendo, até que realizou o primeiro filme, “A noite”, obra em que criou a sua forma de contar histórias, marcadamente autobiográfica, e exibiu o gosto pelas pequenas minudências do quotidiano. Não foi fácil imaginar o seu filme e tecer-lhe um fio seguro, que seguisse as regras vigentes da construção de uma narrativa para o grande ecrã. “Introdução, desenvolvimento, conflito…” Mas o mentor Abi acabou por desbloquear o processo criativo. Não valia a pena seguir regras se as regras a estavam a limitar. Melhor seria se pensasse em alguma história que lhe dissesse alguma coisa, que fosse forte pessoalmente. “Isso fez clique na minha cabeça. Eu não tenho experiência de argumento, não estudei cinema, mas quero fazer um filme! Pensei numa coisa simples, forte para mim: ‘Quando eu era pequena tinha medo do escuro’. Deve ser dos temas mais banais que existem. No entanto, a minha visão desse tema era só minha, fui eu que a vivi.” Ganhou oito prémios. “Comecei, por isso, a fazer filmes sobre essas pequenas coisas, porque sabia que não ia soar a falso.”
Teste à determinação e novo projeto
O primeiro filme lançou-a para os dias de glória que a fizeram subir ao mais alto patamar do nicho de prestígio das curtas de animação, uma escalada de intensa determinação, testada em cada projeto. Foram precisos cinco anos para terminar “Tio Tomás”, uma coprodução da Ciclope Filmes, de Abi Feijó, com duas produtoras francesas e canadianas (dois anos para desenhar e animar). A obstinação é grande, mesmo que por vezes o trabalho lhe pareça grande de mais. “O artista é um bicho com a autoconfiança frágil. E os bons resultados ajudam a dar confiança para que no projeto novo se arrisque um pouco mais. Claro que depois o processo recomeça: ‘Não sou capaz’, ‘Dei um passo maior do que a perna’.” Mas Regina sabe que é preciso continuar, mesmo que o risco traga hesitações e o processo seja doloroso e exigente. “Fazer os milhares de desenhos todos iguais (mas diferentes!) é uma seca. Mas eu gosto de experimentar, de falhar… de falhar não gosto muito, mas faz parte. Quando se descobre um verde!…” Os olhos abrem-se de novo, felizes. “Em todos os filmes tive essa etapa de frustração, é um drama,…mas continuamos a insistir até que há um dia em que… … às vezes é só um cantinho da imagem, mas seguimos aquela pista e depois quando se encontra a linguagem, o caminho é muito bom.”
O caminho continua agora pelas memórias sobre a sua mãe, que na fase final da vida tinha dificuldades de locomoção. Regina pegou num iPad e desafiou-a a desenhar. Para sua surpresa, emergiu um talento que estava escondido, libertado através de rostos “muito simples, muito naïfs, mas com muita expressão, com muitos detalhes”, que agora a realizadora vai aproveitar para o seu novo filme. Já conseguiu um apoio para a pré-produção e “Caras da Mãe” está em andamento. Regina recomeçou o processo, já pisa de novo o risco, um desenho de cada vez, para nos oferecer um pouco mais dos seus dias.