Quando uma viagem de elevador dura uma eternidade

Ilustração: João Vasco Correia

A cena é clássica. Entra no elevador e tem por companhia uma cara conhecida que está longe de ser alguém próximo ou com quem se habituou a privar. Seja a vizinha da frente, com quem teve meia dúzia de conversas ao longo de anos, o colega que trabalha no quinto andar ou o “big boss” da empresa.

Encosta-se à cabine, esboça um sorriso tímido, invoca o tempo ou outro assunto trivial para quebrar o gelo. Ou então não. Olha para o relógio, pega no telemóvel e começa a dedilhar, ora abrindo a mais recente notificação (que, a bem da verdade, podia esperar), ora acedendo a aplicações ao calhas com o ar compenetrado de quem verifica um email importantíssimo. Mesmo que nem sequer tenha Internet. Tudo o que ajude a evitar um contacto visual prolongado. Casos há em que o desconforto se traduz em sintomas físicos. As mãos a suar, as bochechas a corar. Quando a “viagem” termina quase respira de alívio. O embaraço tem um nome: constrangimento social.

E várias causas possíveis. Para a psicóloga alemã Babette Rennerberg a explicação, no caso do elevador, reside no facto de não termos espaço suficiente dentro dele. Habitualmente, em relações com os interlocutores, mantemo-nos a pelo menos um braço de distância. Num elevador muitas vezes não é possível. Pedro Morgado, psiquiatra, concorda com a colega germânica.

“O constrangimento é determinado por fatores individuais (o nível de constrangimento de cada pessoa) e contextuais (sociais, culturais e físicos). O encontro de elevador é frequentemente constrangedor pelo espaço físico reduzido, mas também por ser um ponto de encontro entre pessoas cujos níveis de convivência prévia são normalmente baixos.”

Paulo Dias, psicólogo e docente na Universidade Católica, em Braga, chama a atenção para outra nuance. “Se falamos de alguém que pertence a um círculo mais próximo, que nos dá confiança, vamos ficar à vontade. Aquelas pessoas que não nos dizem absolutamente nada em princípio também não nos vão deixar desconfortáveis porque não sentimos necessidade de estabelecer interação. A situação de dúvida, que é a que cria mais ansiedade, é aquela em que temos relação anterior. É perfeitamente normal que se gere algum desconforto.”

Desconforto esse que não se esgota no elevador. É a mesma sensação – ou algo semelhante – que se apodera de nós quando, nos transportes públicos, temos de fazer a viagem junto a um conhecido com quem não temos assunto. Ou quando encontramos alguém que queremos apresentar a uma terceira pessoa mas não nos recordamos do nome. Ou perguntamos por alguém que já faleceu. Ou até quando entramos num restaurante e damos de caras com o marido da nossa amiga… a ter um jantar romântico com outra. A lista pode prolongar-se indefinidamente. Todos os cenários representam, para a maioria das pessoas, circunstâncias embaraçosas.

O medo do julgamento

Mas o que é isto do constrangimento social? A literatura sobre o assunto define-o como “o resultado da preocupação que as pessoas manifestam acerca do seu comportamento observado e o desejo de agir segundo as expectativas e os interesses dos demais”. Pedro Morgado, da Universidade do Minho, aponta para “um conceito altamente complexo que se relaciona com a vergonha e a timidez e que se refere à perceção de cada pessoa em relação ao julgamento (real ou imaginário) que os outros fazem acerca de nós”. Aqui incluem-se o aspeto físico, o comportamento e juízos de natureza moral.

A sociologia também ajuda a explicar o assunto. Tanto que já o francês Émile Durkheim chamava a atenção para o facto de o nosso comportamento ser sempre constrangido pelos valores, crenças e normas que a família e a sociedade em geral tentam impor. Paula Guerra, professora universitária e investigadora na área da Sociologia, especifica. “Este constrangimento tem a ver com o facto de vivermos em sociedade. A sociedade ‘manda’ que estejamos sempre aptos para falar, para dar uma palavra. As pessoas ficam bem vistas se assim o fizerem. Isso faz com que tenhamos muitas vezes uma atitude de simpatia e empatia social forçadas.” É daí que nasce o tal desconforto. Quando sentimos que não estamos a corresponder às expectativas sociais que envolvem uma dada situação.

Por isso olhamos para o relógio. Pegamos no telemóvel. Tudo para evitar uma certa sensação de inaptidão social. “Acabamos por arranjar esse tipo de subterfúgios para não estar ali a fazer conversa”, justifica a socióloga. De resto, os níveis de constrangimento sentidos dependerão sempre dos traços de personalidade.

“Há pessoas que são mais otimistas e se abrem à experiência com mais facilidade”, lembra Paulo Dias. Para essas, fazer conversa, mesmo quando há poucos assuntos em comum, nunca será um bicho-de-sete-cabeças. Há ainda estudos que fazem depender o constrangimento sentido da questão da autoimagem. Ou seja, pessoas com uma identidade idealizada estável e forte serão, à partida, mais resistentes à avaliação dos outros. Consequentemente, menos permeáveis a situações em que se deixam tomar pelo constrangimento social.

Mas a primazia das redes sociais e a predileção das novas gerações pelas comunicações online também pode estar a contribuir para o aumento deste tipo de embaraço. Paula Guerra defende-o, mesmo ressalvando o perigo das generalizações. “Essa aposta num mundo virtual pode de facto fazer com que haja um menor desenvolvimento das capacidades sociais no mundo real. Sabemos que para muitos jovens é mais simples comunicar através das redes sociais. Sendo estas o canal privilegiado, acabam por não estar tão habituados e habilitados para estabelecer uma conversação olhos nos olhos.”

“Percebendo que vai ser uma situação desconfortável, vamos à memória buscar estratégias previamente adquiridas que ajudem a minimizar o impacto.”
Ricardo Taipa
Neurologista e neuropatologista

O constrangimento visto do cérebro

Importa ainda mencionar os mecanismos que ocorrem no nosso cérebro e que ajudam a justificar a sensação de constrangimento. Ricardo Taipa, neurologista, neuropatologista e docente no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), ajuda a descodificar a parte científica do processo. “Nós temos estruturas neuroanatómicas que suportam grande parte das funções superiores, que vão desde a linguagem às emoções e às questões de relacionamento social, como a empatia e a vergonha. As situações geradoras de constrangimento podem variar consoante as sociedades, mas a estrutura é sempre a mesma.”

Em causa, neste caso, estarão os lobos frontais e temporais do cérebro, responsáveis, respetivamente, pelo processamento de informação e pela gestão das memórias. Mas também (e muito importante) o sistema límbico, responsável pelas emoções e comportamentos sociais. Voltando então à cena do elevador, será possível explicar os mecanismos que em frações de segundos ocorrem no cérebro?

“Nesse caso, ocorrerão várias atividades neuronais simultâneas”, explica Ricardo Taipa, também coordenador do Banco Português de Cérebros. “O cérebro tem de processar que conheço aquela pessoa e de ir buscar a memória emocional do que a pessoa me quer dizer. Percebendo que vai ser uma situação desconfortável, acabamos por ir à memória buscar estratégias previamente adquiridas, que ajudem a minimizar o impacto.”

E se quando dá por si envergonhado, corado, a transbordar inaptidão social, dava tudo para se livrar do embaraço, a realidade é que a ausência desta sensação deve ser sinal de alerta. “Podemos estar perante o princípio de uma doença degenerativa.” Há estudos que comprovam que, nos casos de demência, em que a noção de constrangimento social se desvanece, se verifica a diminuição de uma área específica do cérebro, o córtex cingulado anterior, ligada às emoções e aos comportamentos.

Também há boas notícias, salienta o psiquiatra Pedro Morgado. A noção de constrangimento “tem um valor social elevado, pois ajuda a moderar as nossas atitudes e comportamentos”. E não tem que ser necessariamente visto como um problema. “Na maior parte das vezes não é. Quando não está associado a sofrimento nem a uma disfuncionalidade significativa [como a fobia social, que encerra níveis patológicos de constrangimento social], é uma característica psicológica como outra qualquer. E a diversidade de comportamentos e de formas de ser é uma das grandes riquezas da Humanidade.” Sempre pode tentar focar-se nesta ideia da próxima vez que se sentir desconfortável num elevador.

Definição das circunstâncias que geram constrangimento

Theodore Singelis, docente de Psicologia na Universidade da Califórnia, dividiu as circunstâncias sociais que provocam constrangimento em oito categorias.

Deficiência pública normativa
Condutas intrapessoais que provocam constrangimento na pessoa por agir em público de modo inesperado ou desastroso (por exemplo, tropeçar e cair num lugar público).

Falha em regular a intimidade do outro
Condutas com envolvimento interpessoal, cujo constrangimento se produz por invadir o espaço íntimo do outro (abrir a porta de uma casa de banho pública e descobrir que já está ocupada).

Falha em regular a sua própria intimidade
Condutas com envolvimento interpessoal, cujo constrangimento se produz por sentir que o seu espaço íntimo tem sido invadido por outra pessoa (estar a usar a casa de banho e uma pessoa do outro sexo abrir a porta e entrar).

Situação de protagonista
Condutas tipicamente sociais que requerem da pessoa assumir um papel de protagonista num grupo ou situação específica (ter de discursar diante de um grupo de companheiros de trabalho).

Perda de papel
Condutas que revelam interações desastrosas ou sem graça, neste caso com envolvimento direto da pessoa (contar uma piada a desconhecidos, sem que ninguém se ria no final).

Sentir-se culpado
Condutas que revelam interações desastrosas ou sem graça que, não estando sob o controle da pessoa, podem produzir constrangimento (sair para jantar com alguém especial e o/a ex sentar-se na mesa ao lado).

Constrangimento dentro de um grupo
Provocado pela conduta reprovável ou socialmente não esperada de um membro do grupo de pertença (ir a um funeral com um grupo de amigos, e um membro do grupo dizer em voz alta e em tom de brincadeira, “quem é que morreu afinal?”).

Constrangimento empático
Refere-se à conduta de espectador. O sentimento correspondente é provocado pela conduta desastrosa de um protagonista que não cumpre as expectativas ou normas sociais (ver que o favorito de uma corrida importante de atletismo cai nos últimos metros). Uma espécie de vergonha alheia, portanto.