O segundo diagnóstico é o mundo a desabar, uma descida ao inferno. Mas está longe de ser o fim da linha. Manter uma vigilância tranquila é meio caminho andado para um final feliz.
A primeira vez apanhou-a de rompante, ela sem antever nada daquilo, só o desnorte inerente ao que chega de surpresa. Não a derrubou, ainda assim. “Não estava a contar, claro. Mas foi tudo relativamente leve, não tive de fazer tratamentos, fiquei só a fazer medicação, não me mexeu muito com o sistema”, recorda Maria José Azevedo, 67 anos, ex-vereadora das câmaras do Porto e Valongo e antiga jornalista da RTP. Foi em 2009. Através de uma mamografia de rastreio detetaram-lhe um pequeno sinal compatível com um carcinoma e o prognóstico não tardou a confirmar-se. “Disseram-me que tinha cancro, uma coisa pequena, e que poderia fazer a extração do nódulo seguida de radioterapia ou uma mastectomia total. Fui para a segunda opção. Fiz mastectomia com reconstrução.” Maria José pensava assim ter resolvido o assunto. De vez. Mas o cancro haveria de voltar a dar sinais de vida.
“Em 2012 fui à consulta de rotina e a minha médica percebeu que tinha um ‘nodulozinho’ na mesma mama.” Daí até perceber que estava perante uma recidiva do mesmo cancro que a havia atacado três anos antes foi um doloroso instante. “Estas células são microscópicas. Apesar da mastectomia, lá terá ficado alguma célula nos tecidos e proliferou.” Se na primeira vez foi tudo relativamente leve, na segunda sentiu-se desmoronar. “Quando me deram o segundo diagnóstico, ainda por cima num espaço tão curto de tempo, foi como se me tivesse caído o mundo em cima. Comecei a chorar no consultório.”
Era como entrar num loop, agora com contornos mais sufocantes. “As células cancerígenas já tinham atingido o sistema linfático.” E então, além de nova cirurgia (e de nova reconstrução – desta vez com parte do músculo das costas porque já não lhe restava tecido suficiente) teve de sujeitar-se a vários ciclos de quimioterapia e radioterapia. Mas nunca se coibiu de fazer quase tudo o que sempre fez. “Na altura era vereadora e fui sempre às reuniões de câmara. E nunca quis usar peruca nem lenços nem nada.” Nem nunca virou a cara à luta. A resiliência haveria de lhe valer boas notícias. “Há um ano a minha oncologista deu-me a indicação de que o cancro estava em remissão total. Mas isto nunca é uma certeza absoluta, há que viver um dia de cada vez.” Certo é que nem a dureza de um duplo diagnóstico lhe levou o otimismo dos dias. “Foi uma lição da vida. Tive de reavaliar prioridades. Passei a valorizar mais as pequenas coisas e outras simplesmente deixaram de ter importância.”
A história de Maria José Azevedo está longe de ser uma narrativa solitária. Em Portugal, estima-se que seja diagnosticado cancro da mama a 11 mulheres por dia. E a possibilidade de um destes tumores malignos previamente tratado voltar a aparecer não é tão diminuta quanto se possa pensar. “Ocorre em 30% dos casos”, alerta Noémia Afonso, médica oncologista no Centro Hospitalar do Porto. Cinco anos depois, dez, quinze, quem sabe. Dependerá sempre do subtipo e da extensão do tumor. Certo é que esta possibilidade é acautelada desde os primórdios da doença. “Informamos logo as doentes que se trata de um diagnóstico com o qual vão ter de lidar durante toda a vida. Embora, felizmente, a maioria das doentes fique de facto curada, ainda não nos é possível identificar com rigor quais são, por isso pedimos a todas que mantenham a vigilância. Em vez de lhes dizermos que estão curadas, dizemos que a doença está controlada, ausente ou que não se encontra qualquer indício de cancro. Esta perspetiva pode ser angustiante, mas alerta-nos para a eventualidade de a doença regressar.”
Longe de ser veredito fatal
A abordagem cautelosa evita que as doentes sejam totalmente apanhadas de surpresa, mas não as poupa a um forte abalo. Habituada a lidar com o cancro da mama há mais de 20 anos, Deolinda Pereira, diretora do Serviço de Oncologia Médica do IPO do Porto, sabe bem das agruras que vêm com um segundo diagnóstico. “Quando o cancro reaparece, há um choque muito grande. Por um lado, porque a doente tem sempre a esperança de ter ficado curada. Por outro, porque vai novamente passar por todas as vivências por que passou aquando do primeiro diagnóstico e dos primeiros tratamentos. É uma fase mais problemática, particularmente complexa, que requer todo o apoio possível.”
Mas um segundo diagnóstico está longe de ser um veredito fatal. Noémia Afonso explica que a doença pode reaparecer sob várias formas, cujas características vão condicionar de sobremaneira o prognóstico. “Pode ressurgir apenas na forma de ‘recorrência loco-regional’, no local onde a doente foi operada (na mama restante ou na parede torácica) ou nos gânglios próximos. Também pode surgir um cancro na outra mama ou até um cancro diferente na mesma mama.”
Deolinda Pereira, do IPO, diz que, apesar da inevitável dureza da notícia, estes são cenários mais favoráveis. “Muitas vezes são cancros biologicamente diferentes. Costumo dizer às minhas doentes que, dentro do mau, era o melhor que lhes podia ter acontecido.” Mais preocupante é quando o cancro aparece metastizado. Mas também aqui há boas notícias. “Hoje em dia já temos uma panóplia de tratamentos para a doença metastizada que nos permitem torná-la quase numa doença crónica. Muitas vezes conseguimos até deixar a quimioterapia, que é uma forma de tratamento mais agressiva, para fases posteriores. Já temos doentes que vivem 10, 20 anos com cancros metastizados e com qualidade de vida. Depende de muitas situações.”
Também Noémia Afonso, do Centro Hospitalar do Porto, faz questão de deixar uma nota de esperança. “Reconheço que é difícil, mas não vale a pena estar a pensar nisto todos os dias. Terminados os tratamentos, é importante retomar a vida normal e confiar no plano de vigilância estabelecido pelo médico. Se acontecer [o cancro regressar sob a forma metastática], vamos estar prontos para essa fase. Apesar de não se perspetivar a cura, há hoje mais condições para um controlo eficaz da doença. Uma parte importante das mulheres que têm cancro da mama metastático responde aos tratamentos com excelente tolerância e eficácia.”
Mas afinal, há em relação ao cancro da mama uma maior probabilidade de recidivas do que a que se verifica noutros tipos de cancro? Não, garante Deolinda Pereira. “Fala-se muito de cancro da mama, é muito frequente. Toda a gente está hoje muito mais atenta. Mas não reaparece mais do que outros tipos de cancro. Sabemos que em qualquer cancro há o risco de ele reaparecer, de metastizar. Depende de vários fatores: do estádio, do facto de os gânglios já terem sido invadidos ou não, das características biológicas de cada tumor”, elucida a diretora do Serviço de Oncologia Médica do IPO.
Desilusão, desânimo e desespero
Se há coisa que Ivete Oliveira, 66 anos, aprendeu com os anos que tem andado às voltas com o cancro da mama é que ele é traiçoeiro. O primeiro golpe apanhou-a a meio de umas férias no Algarve. Por ter vivido o cancro da mãe, habitou-se a fazer a palpação ao peito e foi assim que descobriu um “carocinho muito pequenino na mama esquerda”. Lembra-se de ter dormido inquieta e de ainda fazer um esforço para aproveitar o sol e o mar, mas não foi capaz. Regressou mais cedo e hoje pode agradecer por o ter feito. “Em oito dias fiz exames, recebi diagnóstico e fui operada.” Tinha 48 anos. Não se livrou de algumas complicações pós-cirúrgicas, ainda assim. Nem dos tratamentos. Perdeu o cabelo, 15 quilos e isolou-se. Mas haveria de recuperar a tranquilidade e o otimismo. “Achei que estava curada, o cancro tinha-me dado uma segunda oportunidade.”
Só que a história não tinha terminado. E é aqui que entra o lado traiçoeiro do bicho. “As suas células podem hibernar no nosso organismo e de repente voltarem a atacar”, aponta. Com ela aconteceu quatro anos mais tarde. Outro nódulo na mama detetado durante a palpação, outra vez uma mastectomia, outra vez os tratamentos. Com uma carga incomensuravelmente mais gravosa em relação à primeira experiência. “A desilusão, o desânimo e o desespero tomaram conta de mim. Ainda tinha presente o sofrimento do primeiro cancro e sabia que as recidivas necessitavam de tratamentos muito mais agressivos. A possibilidade do risco de vida transtornou-me. O sofrimento foi muito maior desta segunda vez.” Ivete jura que, durante dez meses, se sentiu a descer ao inferno. Mas com resiliência e vontade férrea veio à tona. Agora, há anos que o cancro está em remissão. E há anos que é voluntária na Liga Portuguesa contra o Cancro. Para transmitir alegria e força a outras que vivam a mesma luta. Para sensibilizar também. “No mês da prevenção do cancro da mama [outubro], a mensagem que quero transmitir é simples: o diagnóstico precoce salva vidas. Comigo foi assim.”
Também Deolinda Pereira, do IPO Porto, enfatiza a importância vital do rastreio, admitindo estar muito preocupada com as limitações impostas pela covid. “Os rastreios estiveram interrompidos e o atraso vai refletir-se em diagnósticos mais avançados e na sobrevivência das próprias doentes. Às mulheres, peço que adiram aos programas de rastreio e que não faltem”, apela a especialista, lembrando que os homens não estão imunes ao problema – em 100 casos diagnosticados, 10 ocorrem no sexo masculino, quase sempre “numa fase mais avançada”. Mas razões para manter o otimismo não faltam, assegura Noémia Afonso, do Centro Hospitalar do Porto. “O cancro da mama, mesmo em fase metastática, passou de um tumor agressivo para uma doença que já controlamos, o que se deve também às terapêuticas, que são hoje muitíssimos eficazes. Tem havido uma evolução muito positiva.”