Quando o barulho nos tira do sério

A misofonia tem sido estudada desde a década de 1990 (Foto: Freepik)

Irritação. Fúria. Ansiedade. Mãos suadas. Vontade de fugir. Taquicardia. Há uma síndrome que mexe com a qualidade de vida das pessoas: misofonia. E o gatilho é quase sempre subtil.

Ao longe, há um alarme que toca. Ao perto, uma pessoa que tosse ou funga o nariz. No trânsito, alguém buzina, ou bate insistentemente com o polegar no volante, ou roça uma unha na outra. No escritório, o ar condicionado ronca baixinho. Um colega espirra. Clica, insistentemente, na mola da caneta. Por mais subtis que certos sons do quotidiano sejam, há quem simplesmente não os suporte. Não, não é apenas implicância. É misofonia. E pode afetar muito a forma como se encara o dia a dia.

Também designada por Síndrome de Sensibilidade Seletiva do Som (SSSS ou S4), o termo significa ódio (miso) ao som (fonia). Ou seja, quem sofre desta perturbação, por aversão, tende a reagir de forma desadequada e exagerada a barulhos específicos a que a maioria dos mortais nem sequer presta atenção, como ouvir alguém escrever no teclado do computador ou mastigar uma chiclete.

Convém também clarificar que esta condição não deve ser confundida com a hiperacusia, em que sons são percebidos de modo anormal, como se estivessem muito altos. Nestes casos, chega a haver dor física. Na misofonia, o problema está no padrão e na repetição em que os ruídos são ouvidos. E para se tornarem motivo de raiva o volume não precisa de ser elevado.

A misofonia tem sido estudada desde a década de 1990, mas pouca ou nenhuma literatura há sobre o assunto. Por consequência, não existe propriamente uma consulta direcionada para esta síndrome. Lia Fernandes, psiquiatra do Hospital de São João e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, recorda o caso de um jovem que um dia lhe bateu à porta do consultório, um tanto desesperado. “Era aluno de Medicina e passava longos períodos em casa, fechado, em silêncio, a estudar. Quando regressava à instituição de ensino, por exemplo, para fazer os exames, tinha essa hipersensibilidade aos sons que o rodeavam.” O que o impedia de se concentrar.

A lista dos barulhos que podem ser incómodos é grande. Os sintomas variam de pessoa para pessoa: alguns são ativados por ruídos corporais, outros até por estímulos visuais (como luzes fortes ou que piscam). Contudo, geralmente começam com sons que passam despercebidos aos demais: bater na mesa com a mão, bocejar, roncar, assobiar pelo nariz, sibilos, limpar a garganta, pigarrear, soluços, saltos altos no piso, calçado que se arrasta no chão, estalar de dedos, roer as unhas – além daqueles que foram referidos no início deste texto.

“Quando a pessoa fica condicionada, age de forma reflexiva. Têm pouco ou nenhum controlo sobre as suas reações”, explica Lia Fernandes. A irritabilidade, a inquietação, a raiva, o pânico e até mesmo a violência são reações comuns. Apesar dos parcos estudos, sabe-se que a misofonia tem diferentes graus. Em casos mais agudos, a pessoa pode sentir taquicardia, calores, suores, necessidade de fugir ou uma fúria incontrolável.

É fácil assim perceber que o diagnóstico deve ser feito o quanto antes. Sendo que a misofonia tanto afeta adultos como crianças. Em todo o caso, se não houver intervenção e acompanhamento, a síndrome pode levar a sérios problemas, conduzindo inclusivamente ao isolamento e a estados depressivos. Por isso, os misofónicos tanto são catalogados histéricos como cabisbaixos. Certo é que estão em sofrimento. E que a síndrome, que não figura do manual de doenças mentais, tem uma interferência profunda na sua qualidade de vida.

“Sabe-se que há um distúrbio neurológico e que os estímulos auditivos e visuais são confundidos, o que leva a pessoa a hiper reagir”, destaca Lia Fernandes. A falta de casuística faz com que se encaixem esses sintomas e comportamentos noutras perturbações, uma vez que tanto tem traços de stresse pós-traumático como de perturbações obsessivo-compulsivas. “Por ter um misto de várias perturbações, ainda não adquiriu uma identidade própria e não se pode isolar. Mas sem dúvida que começa a ganhar uma certa dimensão.”

O problema é neurológico

Opinião contrária tem Victor Correia da Silva, coordenador de otorrinolaringologia do Hospital CUF Porto. A pertinência do seu testemunho prende-se com o facto de a sua especialidade ser uma das primeiras que as pessoas procuram quando notam que algo estranho lhes está a acontecer quando escutam certos barulhos. “A pessoa vem tentar saber se ouve bem e quer saber o que se está a passar.” No entanto, assegura, é uma situação rara: “Aparece-nos um doente com esta patologia de longe a longe”. Depois do médico ouvir as queixas são feitos os exames. “Muitas vezes não encontramos nada, daí que isto seja uma doença partilhada. O doente vem ao otorrino em primeira mão, mas depois é encaminhado para neurologia ou psiquiatria.”

Maria Chai, psiquiatra no Hospital CUF Tejo, em Lisboa, dá seguimento. “A maioria das pessoas que me procura com esta síndrome tem outras patologias psiquiátricas associadas, como ansiedade.” Mais uma vez, o diagnóstico precoce é aconselhado. “Chega ao ponto de a pessoa já ficar tensa e ansiosa só de imaginar os ditos sons que lhe causam incómodo.”

A resolução do problema, de acordo com a especialista, “passa sempre pelo tratamento da condição de base, ansiedade e outros sintomas que possam surgir”. Depois, a intolerância aos sons passa pelo enfrentamento progressivo, de forma a vencer essa aversão. “É o único meio de tratamento e melhoria”, defende Maria Chai.

Já Lia Fernandes, acrescenta outras opções. “A psicoterapia pode ser uma forma interessante de intervir nestes casos, que estão sem dúvida ligados ao stresse. Há também técnicas de relaxamento e terapias cognitivas comportamentais, a que se juntam as correntes de mindfulness. Há muitas formas de treino e de adaptação. E eventualmente há o recurso aos fármacos.” O importante, conclui, é uma abordagem multidisciplinar. Um tratamento adequado pode fazer milagres para quem quer ter qualidade de vida.