Quando a paixão por cães e gatos está acima de tudo

Ana Paula não queria abdicar da casa, nem do conforto dos cães (Foto: Maria João Gala /Global Imagens)

São histórias de convicções, opções, formas de estar. São conversas de paixões que quebraram corações. Para a vida. Eis o outro lado de ligações que ninguém consegue desfazer. Venha quem vier.

Pedro Ribeiro Castro tem um número na ponta da língua. “Todos os anos, 70 mil milhões de animais são mortos para consumo humano.” Tem também uma imagem que a memória não apaga. Um leitão cru embrulhado em plástico numa banca de um hipermercado. Tornou-se vegan nesse dia, há oito anos. “Foi aí e foi tudo.” Mudou sozinho, na altura não conhecia vegetarianos, nem seguidores do veganismo. “Mas a semente estava cá dentro.” Nunca comeu pato, nem coelho. “Havia coisas que me horrorizavam.” Tinha seis anos quando, num passeio em família, se insurgiu contra uma tourada, na antiga praça de touros de Espinho. No seu jeito de criança, revoltou-se com as investidas ao touro e a família foi obrigada a abandonar o local. Advogado, 53 anos, deputado municipal do PAN em Vila Nova de Gaia, membro da Comissão Política Nacional do partido, ativista da causa animal e ambiental. “Custa mudar, o homem é um animal de hábitos.” Durante dias a fio, assistiu a vídeos de sofrimento de animais, assume que foi um ato de “autoflagelação”. Nada podia ficar igual. E mudou.

Não come carne, não há produtos de origem animal no seu prato, nem na roupa e calçado que usa. Nada de peles, nada de lãs, uma ida às compras significa ler todas as entrelinhas das etiquetas. As opções tiveram consequências na sua vida. Os amigos de infância deixaram de o convidar para jantares. “No início, ficava sentido, se não me convidavam devia ser por alguma coisa.” Há quatro anos separou-se da então companheira, viviam juntos, gostavam de animais, mantêm a guarda partilhada da Lucky, Vitória e Elis, três gatas. Pedro Ribeiro Castro estava noutra sintonia, amigos vegans, entrada no PAN, ativista. “Começámos a ter rumos diferentes, outros objetivos, outros modos de estar, tinha tarefas que me absorviam bastante”, recorda. Não era por ter de cozinhar e de, por vezes, ter carne num prato que não era o seu na mesa de casa. Foi uma questão de filosofia de vida e cada um seguiu o seu caminho. “A bota não batia com a perdigota. E, todos os dias, causava mossa.”

Pedro tem uma nova companheira, vegan também, tem quatro gatos em casa, Zappa, Alice, Fidel e César, mais três gatas partilhadas com a ex-companheira, e outros seis que adotou, esterilizou, que andam à solta no espaço de alojamento local que gere no Porto. O Camões, gato preto, é, por enquanto, o único que se deixa apanhar e se dá aos mimos. Os outros andam por ali, têm camas tratadas pelo dono adotado, brincam no jardim, aninham-se nos bancos de madeira. Num dos apartamentos, o seu modo de estar manifesta-se de várias formas: ilustrações de animais nas paredes, desenhos de legumes que ganham forma com os nomes dos cortes de carne, livro de receitas vegetarianas, guia vegan, cartões de visita de sítios vegetarianos. Os amigos, por vezes, acusam-no de ter um discurso pessimista, ora sobre o consumo de carne, ora sobre atropelos ambientais. Pedro responde-lhes que é realista e não verga nas causas que defende.

Pedro Ribeiro Castro, advogado, perdeu o contacto com os amigos de infância e trocou de companheira por causa do veganismo
(Foto: Maria João Gala /Global Imagens)

Beatriz Coelho, 28 anos, administrativa numa empresa, percebeu, nos primeiros dias de vida em comum com a namorada, que a relação não ia resultar. “Não correu bem. Desde implicar com os pelos, os cães terem de estar confinados à cozinha e ao corredor, aos passeios que dava com eles. Tinha ciúmes dos animais, da atenção que lhes dava, de querer levá-los para todo o lado.” Em maio do ano passado, Beatriz mudou-se de Lisboa para Braga com o cão Darta, as cadelas Lola e Chanel, a gata Micas, para uma vida a duas. “Tudo o que era para dar errado, deu”, confessa.

No primeiro dia, depois de uma viagem de quatro horas, o cão chegou e fez xixi na varanda. Houve discussão. A convivência também não era fácil com os vizinhos. “Até com o pelo que ficava nas escadas do prédio implicavam e diziam para me ir embora.” Nada melhorou, tudo foi ficando pior. Em dezembro, a relação terminou com o desgaste de divergências impossíveis de ultrapassar. “A nossa relação acabou basicamente por causa dos animais.”

Beatriz mantém-se firme. “Acabei por abdicar de muita coisa e não me arrependo, voltaria a fazer a mesma coisa.” Os seus animais, acima de tudo, e venha quem vier. Relação terminada, mudou-se para um quarto em Braga, o seu contrato de trabalho durava mais dois meses, Darta e Lola foram para Lisboa, pediu a um amigo para cuidar dos cães até ao seu regresso. A separação doeu-lhe, houve lágrimas e choros. “O que mais me custou foi o sofrimento que os animais passaram pelas minhas escolhas.”

Os seus animais são a sua prioridade. “São para a vida toda, enquanto durarem.” Beatriz, que também é vegan, não se imagina com alguém que não goste ou não tolere bichos. E, recuando cinco ou seis anos, considera que a lei portuguesa deu um salto, já é crime ter animais acorrentados, olha-se de uma outra maneira para os direitos dos animais. “Estamos muito avançados, mas ainda existe muita intolerância em prédios se o cão ladrar. Se houver algum motivo fora do normal, os vizinhos não querem saber, não querem ouvir.” Reconhece que há mais lucidez quanto aos direitos e respeito pelos animais. “As pessoas estão mais educadas nesse sentido, têm acesso a mais informação.”

Beatriz Coelho não se imagina com alguém que não goste ou não tolere bichos
(Foto: Orlando Almeida / Global Imagens)

Habituou-se a ouvir da família, não da mãe nem da irmã, que percebem a sua forma de estar, que “o amor que se dá aos animais é uma falha psicológica que se tenta compensar com os animais”. Também lhe dizem que gosta mais de animais do que da própria família. Beatriz prefere falar de amor. “Não tenho filhos, não sei o que é o amor por um filho, mas imagino que seja este amor incondicional. Amor não deixa de ser amor, independentemente se é uma pessoa ou se é um animal”, diz. Entretanto, aumentou a família animal com Tofu, Caju e Feijão, três ratazanas domésticas.

A união que aumenta a hormona do amor

Aquele jantar, há mais de 12 anos, podia ser o início de uma relação mais séria. Não foi. Inês Monteiro sentia-se numa fase de pré-namoro, jantar em sua casa, conversa, e as convicções estalaram. Primeiro, o comentário de que a alergia que tinha nas costas poderia ser uma micose provocada pelas suas gatas. O jantar ainda prosseguiu, a conversa também, até desaguar no programa dele para o fim de semana e que incluía uma tourada com um grupo de amigos. Ele era aficionado por touradas, Inês é antitouradas. Não ia resultar. “Isto é visceral para mim, não consigo, não dava, ficou zangado, correu mal”, salienta. O que poderia ter começado acabou naquela noite.

Ao longo do tempo, Inês, 39 anos, de Lisboa, licenciada em Anatomia Patológica, que trabalha no departamento médico de uma empresa de biotecnologia, perdeu amigos por causa da conversa antitouradas. Discussões acesas que engatam noutros temas igualmente fraturantes, palavra puxa palavra, o diálogo não corre bem. “Chega a pontos de ruturas.” Hoje tenta evitar o tema.

Garante que não é fundamentalista. Não come carne, defende que a morte dos animais para consumo deveria merecer mais respeito dos homens, resgata animais com histórias tristes, tem o sonho de criar uma associação que os equilibre e estabilize antes de serem doados para adoção. “As pessoas têm de ser felizes e respeito muito as suas decisões, mas que, para mim, não podem passar por causar sofrimento e mal-estar a outros seres vivos.”

É feliz a resgatar animais, a dar os passos necessários para a concretização da associação que irá surgir. Tem três cadelas: a Malu, a Margot e a Maria Bolacha. E três gatos: a Sayuri, matriarca com quase 16 anos, o Lourenço e o Caio. E, numa situação excecional por causa do novo coronavírus, é família de acolhimento, dá guarida temporária a alguns cães que terão um novo lar. Tratar deles é o projeto da sua vida. “Os animais ensinaram-me a ter paciência, a respirar fundo, a respeitar o tempo de cada um, e o que é o amor incondicional, antes de ter sido mãe”, enfatiza. Mostram-lhe que tudo tem o seu tempo e que são capazes de dar tudo em qualquer altura. “Receber o amor desta forma incondicional permite darmo-nos mais.”

Inês Monteiro é antitouradas. E foi por isso que não teve uma relação com um aficionado dos touros
(Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens)

Um animal de estimação é, regra geral, sinal de amor. “Ter um animal tende a aumentar a ligação entre o casal que sente que tem um elo e que há um futuro”, assinala Joana Arantes, doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas, coordenadora do Grupo de Investigação em Psicologia Evolutiva da Unidade de Investigação em Cognição Humana da Universidade do Minho. Mas nem sempre é assim, há exceções à regra. A logística que um animal implica, a discordância na forma de educar, a maior ou menor intolerância para os seus comportamentos, a liberdade que se perde e vontades que se abafam, podem criar tensão num casal, sobretudo no início de um relacionamento. Há obstáculos que não se ultrapassam. “Se não se chega a um patamar minimamente equilibrado, há uma rutura. Muitas relações não sobrevivem, as relações com animais acabam por sobreviver”, sublinha.

A comunidade académica tem estudado essa relação e há resultados e conclusões. Joana Arantes lembra algumas investigações. O comportamentalista animal Takefumi Kikusi, da Universidade de Azabu, no Japão, verificou que a oxitocina, conhecida como a hormona do amor, aumentava 130% nos cães e 300% nos seus donos, homens e mulheres, quando passavam algum tempo a olharem-se olhos nos olhos. O estudo foi publicado na revista “Science”. “Como a oxitocina diminui a ansiedade e o conflito, isso ajuda nos relacionamentos.” Humanos e animais. E, em Portugal, mais de metade das famílias, 54% dos lares, têm pelo menos um animal de estimação e 12% do salário vai para os gastos com os bichos.

De casa em casa com o Óscar e o Joca

Nuno Markl e Ana Galvão separaram-se em 2016 e avançaram com a guarda partilhada dos seus animais domésticos. O humorista ficou com as cadelas Uva, que morreu há pouco tempo, e Flor. A radialista ficou com a gata Heidi. A família animal foi aumentando. Markl acaba de adotar a cadela Chiclete, Ana tem a cadela Viky e o gato preto Mirtilo. Pedro, o filho do casal, herdou este amor aos animais. Insistiu na adoção de Chiclete depois da morte de Uva, e, de vez em quando, leva-a para casa da mãe. O gato Mirtilo não o larga. Quando Ana vai de férias, Markl trata-lhe dos animais. E vice-versa.

Nas recordações, há sempre animais. A casa do avô de Markl na Rinchoa, Rio de Mouro, perto de Sintra, zona de veraneio de Lisboa nos idos anos 1960 e 1970, tinha sempre cães. Markl passava ali as férias e Ringo, um rafeiro preto, dava pulos de alegria quando chegava. A ligação era bastante forte. “Era um cão que estava sempre naquela casa, fazia uma festa incrível.”

O primeiro animal foi uma cadela que o seguiu da paragem 58, em Benfica, até à porta de casa. Entrou e ficou 20 anos a fintar as probabilidades da vida. Depois veio Sharik, um cão vadio que, inesperadamente, apareceu no parque de estacionamento da SIC e, de imediato, foi integrado de improviso num sketch de comédia que estava a ser gravado. Batizado na hora, estrela de televisão por uns minutos, no final das filmagens estava deitado junto ao carro de Markl, que viu ali um sinal e o levou para casa. “Nisso sou muito mole.” Sharik ladrava um pouco, Markl recebeu uma carta datilografada no correio, informando-o que aquele bairro não era um canil, que lhe matavam o bicho se não se calasse. Apresentou queixa na polícia, falou publicamente do assunto, não teve mais chatices.

Markl começou a gostar de gatos por causa de Ana. “Os gatos são muito fascinantes na sua maneira de ser, naquela distância e arrogância de que estão prestes a acabar com a humanidade. Os cães são amigalhaços, são, de facto, uma companhia tremenda. Dão-nos tanto e é tão compensador, apesar do trabalho que dão”, acrescenta. Vê-os gratos e reconhecidos por terem mimos e um teto. E anda desconfiado que o cão da mãe, o Quim, um dia vai mesmo começar a falar, porque percebe tudo o que está a acontecer à sua volta.

Nuno Markl e Ana Galvão separaram-se em 2016 e avançaram com a guarda partilhada dos animais. Pedro, o filho do casal, herdou o amor pelos bichos
(Foto: Orlando Almeida / Global Imagens)

A mãe de Ana é uma cuidadora de animais, de plantas, de tudo o que respira, e sempre teve um ou dois cães. Isso ajuda. A gata Heidi tem praticamente a idade de Pedro, Mirtilo foi adotado, Viky colocou a pata na perna de Ana que não resistiu, adotou-a, levou-a para casa. É a sua sombra. “Uma casa sem animais não é bem uma casa”, defende Ana Galvão. Os bichos fazem parte do conceito que tem de lar e de vida. É pragmática, a partida de um animal é sempre dolorosa, mas é como se uns dessem lugar a outros. O importante, realça, é “dar-lhes a melhor vida possível, enquanto animais, usufruindo ao máximo da sua companhia, sabendo que duram menos do que nós.” São uma companhia muito próxima. “Não os vejo como pessoas, mas não os vejo muito diferentes a isso.” Cada um com a sua maneira de estar, com a sua personalidade. Como uma família.

A Universidade de Queens, no Canadá, realizou três estudos. Um deles concluiu que a partilha de um animal de estimação num relacionamento amoroso tem uma influência positiva. Dos 116 participantes, 86,5% garantiram esse impacto na relação, 8% disseram que o efeito era neutro, apenas 4,5% referiram um efeito negativo, falaram em stresse e fricção. Noutra pesquisa sobre satisfação nas relações amorosas com 56 casais, 27 com pelo menos um animal de estimação e 31 sem nenhum, verificou-se que os participantes com bichos em casa avaliaram a relação como tendo mais qualidade, concordavam mais com o parceiro, apresentavam níveis de investimento mais elevados. “Muitas vezes, os animais tornam as pessoas mais pacientes e mais amorosas umas com as outras”, conclui Joana Arantes.

Outro estudo de Queens em torno da empatia, com 108 mulheres e 84 homens, todos envolvidos numa relação, demonstrou que a preocupação empática aumenta quanto mais tempo se vive com um animal. “O número de anos que os participantes tinham o animal de estimação estava ainda correlacionado positivamente com comportamentos de manter a relação, compromisso com o relacionamento amoroso e identidade do casal”, revela a psicóloga.

O amor aos animais interfere na vida? Interfere. Ana Paula Pereira fez as malas e mudou de casa várias vezes por causa dos seus dois cães. Comentários de vizinhos, um senhorio que não queria os animais dentro de casa. Não lhe facilitaram a vida. “Todos os dias fechava as persianas, os vizinhos não eram muito amigáveis, comentavam o que iam fazer aos cães e que eu os tratava e falava com eles como se fossem crianças”, lembra. Não se sentia segura, mudou-se. Encontrou uma casa num rés-do-chão com pátio. “O senhorio entendia que os cães não deviam estar dentro de casa, queria-os numa casota de cimento”, lamenta.

Ana Paula, 42 anos, de Águeda, auxiliar no Hospital de Aveiro, não queria abdicar da casa, nem do conforto dos cães. Comentou alto que ia fazer uma casota com telhas sanduíche, o projeto chegou aos ouvidos do senhorio que não gostou da ideia. “Optei por sair, foi um tiro no escuro, não sabia para onde ir. Pô-los num canil nunca foi uma opção”, conta. Os cães sempre foram e sempre serão a sua prioridade. Encontrou outro rés-do-chão em Esgueira, até que se mudou para Águeda, garantindo à senhoria que os seus cães eram “muito limpinhos, muito sossegados”. É onde vive há quatro anos sem contratempos com a vizinhança.

Ana Paula Pereira fez as malas e mudou de casa várias vezes por causa dos seus dois cães
(Foto: Maria João Gala /Global Imagens)

Neste momento, tem apenas o Joca, de 13 anos. O Óscar, de 15 anos, morreu-lhe nos braços em dezembro do ano passado. Em setembro, diagnosticaram-lhe um linfoma, deram-lhe pouco tempo de vida, três meses depois, numa madrugada, Ana Paula percebeu que tinha chegado a hora. Não tinha dinheiro no telemóvel, embrulhou o Óscar, colocou-o numa alcofa, saiu com ele para fazer o carregamento. Ligou à veterinária, despediu-se sempre por perto, sempre a fazer festinhas. Custou-lhe muito e o luto perdura. “Ficou um vazio.”

Ana Paula sempre teve cães, o primeiro, aos oito anos, era branquinho, resgatou-o de um esgoto. Era o Bobby, gostava de massa com bacalhau, durou sete anos. Seguiram-se outros, muitas alegrias, e os desgostos dolorosos das partidas em que se perde o chão e o coração fica em ferida. Abdicou de várias coisas na vida em nome dos animais e não se arrepende. Hoje, na casa onde vive, sente-se segura com o Joca e não lhe dá rédea solta, não vá ir para a estrada que passa à porta. “São seres que sentem o mesmo que nós, nas devidas proporções. São iguais a nós, só muda a aparência. Têm o seu próprio valor, único, inigualável.” O Joca é da família e merece-lhe todo o amor. Até ao fim, venha quem vier, seja quem for.