Países que previnem para não remediar

O norte da Europa tem conseguido conter a propagação do novo coronavírus

António Guterres, secretário-geral da ONU, avisou sem rodeios que estamos em guerra. O Mundo entrou num combate sem precedentes, as circunstâncias são excecionais, as medidas sucedem-se para tentar conter a propagação do novo coronavírus que infeta e mata. Os países não estavam preparados, aprendem uns com os outros, pelas piores razões – com mais de 250 mortes num só dia em Itália, com o aumento da mortalidade na vizinha Espanha, com uma França em quarentena. O passado de guerras e surtos, a experiência acumulada, a robustez dos sistemas de saúde, a antecipação e preparação e o sentido de comunidade são fatores que fazem a diferença nesta frente da batalha. Prevenção e informação são palavras-chave nos territórios que, de alguma forma, resistem à disseminação da pandemia.

Macau tem sido apresentado como um caso exemplar neste combate lento, pesado, doloroso. Prevenção, acima de tudo. Prevenir para não remediar. Conter para não sofrer. Houve um momento de dez casos contabilizados, que já tiveram alta hospitalar, nenhuma morte, nenhum teste positivo durante mais de um mês. As escolas fecharam e só reabrem a 20 de abril, uma lei tornou obrigatório o uso de máscaras fora de portas, os funcionários públicos têm de preencher diariamente um formulário online sobre o seu estado de saúde, os transportes públicos são desinfetados várias vezes ao dia e os seus horários mudaram para manter mais gente em casa. Os números dos elevadores dos prédios têm plásticos de proteção e são desinfetados hora a hora. Nos serviços públicos, reduzidos ao mínimo, mede-se a temperatura aos clientes, as filas são nas ruas, as entradas controladas. Os casinos fecharam durante 15 dias, o que nunca tinha acontecido. Reabriram com restrições nos acessos, nas mesas de jogos, medidas de higiene e segurança reforçadas. Os supermercados não ficaram sem comida.

São mais de 650 mil pessoas em 30 quilómetros quadrados. É muita gente num pequeno território. A densidade populacional é evidente, a proximidade à China, com a qual faz fronteira, ajudou a perceber rapidamente a dimensão do problema. Tinha tudo para correr mal, correu bem. Em meados de janeiro, Macau estava já em alerta. No dia 21 desse mês, era criada uma estrutura interdepartamental, o Centro de Coordenação de Contingência do Novo Tipo de Coronavírus, por despacho governamental. Todos os dias, às cinco da tarde, há conferência de imprensa para fazer o ponto da situação.

Macau preparou-se com uma abordagem articulada entre os vários setores da sociedade. Os briefings diários foram sossegando a população e confirmando que as medidas restritivas tinham efeitos. Todos os casos suspeitos são testados. Sofia Pereira resume numa frase essa contenção da propagação do novo coronavírus em Macau, onde vive há pouco mais de quatro anos. “Medidas de garra do Governo e uma adesão absoluta por parte da população”, refere a ex-jornalista. Deu um pulo a Portugal e as últimas indicações sobre a sua viagem, que já aconteceu, eram precisas, definidas ao milímetro. Aterraria em Hong Kong, haveria uma linha vermelha para os residentes em Macau que seriam separados em dois grupos, de alto e médio risco. Seria transportada do aeroporto para Macau e colocada em quarentena num hotel a designar pelo Governo. Sofia destaca as fortes medidas de contenção, a adesão e colaboração da população, o comportamento das autoridades locais, a resposta do sistema de saúde. Desde o início, a contaminação era um cenário real e prevenir foi a palavra de ordem. Macau, por estes dias, vive “uma normalidade em contingência”. Na sua opinião, a Europa saltou logo para o combate sem se preparar para o tamanho desafio que lhe batia à porta.

Uma máscara dói, é um sinal do medo

Sofia Pereira chegou a subir ao terraço do seu prédio em Macau para ver a cidade sem gente, respirar sem máscara, no nono andar. Num dia, nessas alturas que custam a passar, no mês passado, passou para o papel o turbilhão de emoções. “Usar máscara dói. Não só na cara, ou nos pulmões ou no nariz porque transforma o ar numa espécie de mofo, mas também porque é sinal de um receio, que ultrapassa o individual. É coletivo, à escala de milhões.” Milhões agora unidos, distantes e tão próximos ao mesmo tempo. Anónimos, mas iguais. “Mas, entretanto, estamos mais juntos, mais perto e somos mais um. Suspensos. Não só com quem nos acompanha, mas com aqueles todos, por esse Mundo fora. Somos uma comunhão na incerteza, no receio, mas também nas diferenças e no amor. Espero eu”, escreveu.

Adelaide Almeida, investigadora na área dos vírus e antibióticos, professora de Microbiologia na Universidade de Aveiro, percebe a resposta de Macau. “É o terceiro surto por coronavírus, tem a experiência de outras pandemias, estava mais assustado do que nós”, comenta. A população estava sensibilizada para o perigo, para os riscos de mais um coronavírus que se instalava a seu lado. “As pessoas estavam assustadas e sabiam que se tinham de proteger, que tinham de se isolar.”

Em Macau, os casinos fecharam durante 15 dias, o que nunca tinha acontecido. Reabriram, entretanto, com restrições, nos acessos e nas mesas de jogo, e com medidas de higiene e segurança reforçada
(Foto: Carmo Correia/Lusa)

A Europa vai respondendo à sua maneira. Há uma semana, num dos balanços do dia, a Alemanha tinha 5 620 casos e dez mortes – antes disso, tinha estado nos 2 369 casos e cinco mortes – menos casos e menos mortes na Europa, uma das mais baixas taxas de mortalidade por Covid-19 a nível internacional. Nesse dia, o país anunciava o fecho e controlo das fronteiras. Num primeiro momento, as decisões de combate foram tomadas a nível regional, são 16 estados, 16 governos diferentes. Depois, começou a funcionar como um todo, junto e em conjunto. É um país preparado. Guerras bem pesadas e um muro que dividiu as suas gentes dão-lhe estofo. Um sistema de saúde robusto, considerado um dos melhores da Europa, é um bem demasiado precioso nas atuais circunstâncias. Muitos hospitais em todos os 16 estados, seguro de saúde público para todos, apenas os trabalhadores por conta própria têm de pagar um seguro privado – e se não tiverem possibilidades económicas, o Estado paga.

Confiança é uma palavra-chave na Alemanha que, num único fim de semana, cancelou 80 mil jogos de futebol. “O país não tem tomado medidas radicais, tudo está a ser feito com bastante calma”, conta Joana Sousa Dias, a partir de Berlim, onde mora há quatro anos. O encerramento das escolas foi anunciado sexta-feira, dia 13, e foi um processo gradual, não fecharam todas ao mesmo tempo. “Apesar de não haver ordens de quarentena, muitas famílias estão há vários dias em casa. As empresas facilitam o teletrabalho, solução que é muito usual por cá. As compras de supermercado e o fenómeno de ‘hamsterkäufe’ (amealhar, fazer stock) já começou há semanas.”

A jornalista, correspondente da TSF e da agência Lusa, não vê pânico, algum receio sim, e muita confiança no sistema de saúde alemão, talvez o fator mais forte para conter a propagação do vírus. Há outros. Muitos testes realizados desde o início da epidemia que se tornou pandemia, muitos laboratórios a fazer exames. “Outro motivo é a confiança das pessoas na entidade laboral e a facilidade de teletrabalho. O alemão quando está doente não vai trabalhar ou trabalha desde casa, mesmo que seja uma gripe leve. Sabe que não vai perder o emprego por causa disso.” O respeito pelas regras de higiene é outro aspeto. Se anteriormente já eram estritas, agora são ainda mais. “O alemão cumpre as regras e é prático. Se tem de ficar em casa, fica. E se tem de lavar as mãos dez vezes, lava.” A informação oficial vem toda do mesmo sítio, o Robert Koch Institute, agência do Governo federal, instituto de pesquisa, controlo e prevenção de doenças. Há balanços constantes, mas não uma presença mediática do Governo e em peso perante os jornalistas.

“Os alemães têm uma cultura diferente, são muito rigorosos, cumprem melhor com as medidas impostas, e o serviço nacional de saúde funciona muito bem”, comenta a investigadora Adelaide Almeida.

Monitorização constante, assistência gratuita

Taiwan, tal como Macau, tem sido eficiente no controlo da situação. Informação frequente, assistência médica gratuita, setor público e privado em sintonia, monitorização constante. No dia em que teve 59 casos identificados, tinha apenas uma morte a registar, e 20 casos recuperados. Com a China ao pé, fluxo de residentes e turistas, podia ter corrido mal, mas foi o primeiro país a cortar as viagens a partir de Wuhan, pouco depois do primeiro caso positivo. Aeroportos com medidores de temperaturas, tecnologia de ponta para cruzar dados, quarentena seguida por GPS no telefone, multas para quem não cumprir e esconda sintomas, sistema de saúde coeso, despesas asseguradas pelo Governo no período de quarentena. Se for preciso repetir um teste, repete-se, locais públicos só com pessoas com febre testada e mãos desinfetadas, máscaras racionadas e agora mais baratas.

Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, há duas palavras fundamentais que se destacam nesse combate dos países que têm sido mais eficazes no balanço entre o número de casos e mortes anunciadas. “Prevenção e informação”, realça. “Tem a ver com a forma como os países estão preparados para este tipo de situação.”

Taiwan tem sido eficiente no controlo da propagação do novo coronavírus

O norte da Europa tem conseguido conter a propagação. Dinamarca é um dos exemplos, a primeira morte foi há uma semana, os casos já ultrapassam os 800, na semana passada continuava no fundo da lista como um dos países com menor taxa de mortalidade, 0,33%, quando, nessa altura, a média mundial estava nos 3,4%, segundo a Organização Mundial da Saúde. O país fechou fronteiras a turistas, as escolas estão fechadas, os espaços culturais encerrados. A população é aconselhada a ficar em casa.

A Noruega anunciou a primeira morte por Covid-19 a 12 de março, na altura andava pelos 600 casos confirmados, é dos países com a menor taxa de mortalidade. O país encerrou escolas, restaurantes, museus, lugares de espetáculos, suspendeu todos os eventos desportivos.

“O que é o sucesso neste caso? A mais baixa taxa de mortalidade”, constata Henrique Barros, epidemiologista, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Nesse combate, a escolha é da sociedade. O que se sabe, e que ninguém pôs em causa até ao momento, é como o vírus se transmite, de pessoa a pessoa através de gotículas ou superfícies. “Se sabemos como o vírus se transmite, é colocar barreiras às formas como se transmite.”

“O mundo em que vivemos tem dois tipos de sociedade: as pessoas que usam a cabeça e a informação e tratam de si e dos outros, e as pessoas que acham que o Estado tem de tratar de tudo, proibindo.”

Nesta luta, a informação não é tudo ou nada, não é preto ou branco. “Não temos dados científicos para decidir se esta escolha é melhor do que aquela. A decisão é uma decisão de sociedade.” E é sempre importante perceber os riscos sociais, económicos, a curto, médio e longo prazo.

Tudo começou em Wuhan, na China, com o primeiro caso em dezembro do ano passado, mas só em janeiro é que o Mundo começou a ter eco do que se estava a passar. A China fechou a cidade de Wuhan, de 11 milhões de habitantes, mais do que Portugal inteiro. Do dia para a noite. E o controlo foi total. “É uma ditadura, as medidas foram impostas e as pessoas obedecem”, aponta a investigadora e professora Adelaide Almeida. Os passos de cada chinês são controlados por uma aplicação no telemóvel. Quarentena obrigatória para dezenas de milhões de pessoas. Mede-se a temperatura dos distribuidores de comida de duas em duas horas. Quem entra no país é levado para um centro de exposições convertido em central de atribuição de quarentena, dividido em filas e por meses com os distritos chineses. Formulários para preencher, informações e explicações dadas sobretudo em chinês, todos os condomínios têm equipas exclusivamente dedicadas a supervisionar as quarentenas, as medidas extremas de limpeza continuam. Neste momento, imagina-se que 80% das medidas tomadas pela China, a nível de prevenção e cordão sanitário, têm sido eficazes para evitar a exportação do vírus para outros países.

Sara F. Costa, escritora e professora, a viver em Pequim, veio para Portugal para ter o seu filho. Chegou em janeiro com a China no olho do furacão. Sara não tinha ideia de que o que tinha começado em Wuhan chegasse à Europa com tanta violência. “De momento, não sei quando vou regressar à China. O meu trabalho de professora está suspenso devido à crise do vírus. Neste momento, qualquer estrangeiro que chegue a Pequim é obrigado a cumprir quarentena nas instalações do Governo e com um bebé de poucos meses não me apetece muito passar por essa situação. Não há previsões ainda de regresso à normalidade.”

Em Londres, a vida está a mudar. A resistência inicial ao fecho de diversos equipamentos esmoreceu depois de um estudo científico ter revelado que poderiam morrer 250 mil pessoas
(Foto: Tolga Akmen/AFP)

Para Francisco George, médico, especialista em Saúde Pública, ex-diretor-geral da Saúde, ainda é cedo para avaliar as medidas caso a caso, país a país. Essa análise, na sua opinião, terá de ser feita, sobretudo ao nível académico e científico, sem política pelo meio. “Temos de ter em atenção que a pandemia, que foi identificada a meio de dezembro de 2019 na China, teve, até ao momento, pouco mais de três meses no seu percurso, nesta expressão pandémica”, observa. “Muito se fez, muito se faz, muito se fará. Ainda é cedo para fazer uma análise detalhada”, acrescenta. Daqui a algum tempo, é preciso olhar para trás, analisar o que foi feito, perceber os resultados, se as medidas foram ou não eficientes. “Um debate académico e científico, e não político”, defende.

Portugal está na luta também. Ser um país periférico, na ponta da Europa, terá ajudado? Sim, se se pensar apenas na distância geográfica; não, se se pensar na possibilidade de importação do vírus da China. Escolas e fronteiras fechadas, comércio e serviços encerrados, atividades e eventos cancelados, hospitais em velocidade máxima, um concelho em calamidade pública com cerca sanitária. Amanhã faz uma semana do anúncio da primeira morte, na última quarta-feira o segundo óbito, hoje serão centenas ou até mesmo milhares de casos confirmados. “Ganhámos algum tempo para nos prepararmos. Estamos melhor agora do que estávamos há uma semana, nessa semana estávamos melhor do que na semana anterior”, sublinha Francisco George.

A luta não dá tréguas. António Sarmento, diretor do serviço de Infeciologia do Hospital São João, professor da Faculdade de Medicina, não consegue parar. É tanto trabalho numa altura destas. Doentes, colegas, telefonemas, ponto de situação. Neste momento, confessa, está focado no que realmente interessa com um serviço organizado e profissionais de saúde empenhados e motivados. É isso que explica em breves minutos. “Estamos a trabalhar por todos, por si, pelos nossos filhos.”

Imunidade coletiva, o estranho plano do Reino Unido

Um primeiro-ministro despreocupado, uma população apreensiva, uma estratégia pouco comum e sem certezas, serviços e comércio a funcionar normalmente. A postura está, no entanto, a mudar depois de um estudo científico ter revelado que poderiam morrer 250 mil pessoas se o país não alterasse o caminho. Há poucos dias, o Reino Unido estava acima da média mundial da taxa de mortalidade por Covid-19, com mais de 100 mortes.

Há mais de uma semana, Boris Johnson apresentava um plano que contraria as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Imunidade coletiva, com previsão que poderiam morrer 20 mil pessoas, que iria proteger os britânicos do próximo ataque do vírus. A seu lado, o principal conselheiro científico do Governo, Patrick Vallance, defensor dessa possibilidade de deixar que a infeção alastre para conter a pandemia. Porque prevê que o vírus regresse todos os anos, porque acredita que a imunidade dominará a doença. A posição criou alvoroço na comunidade científica do país de Sua Majestade e mais de 200 cientistas, numa carta aberta, pediram a Boris Johnson medidas mais restritivas para travar a disseminação, que olhasse para o que estava a ser feito na Europa. Disseminação de um vírus ainda desconhecido, usar grupos saudáveis em risco sem garantias de uma imunidade duradoura, arriscar sem rede e previsão das consequências foram ideias recebidas com desconfiança e desconforto.

O discurso começou a mudar na última semana que já contabilizava mais de 1 100 casos confirmados. A resistência inicial ao fecho de escolas, fronteiras, cafés, discotecas, começou a esmorecer, dando lugar a decisões nesse sentido.