Será uma nova forma de viver a quadra. A Covid-19 trocou rotinas e adiou projetos. Exige reclusão e isolamento social. Como vão viver os portugueses esta época? Apesar de fisicamente separadas, as famílias estão a reinventar-se no que respeita às tradições pascais.
Este ano vai ser diferente. Ainda que a família se reúna como habitualmente, ficam a faltar os abraços, os beijos, o toque, a presença. As habituais viagens serão substituídas por videochamadas e o típico almoço de domingo de Páscoa será, desta vez, à distância. A Covid-19 impõe reclusão. Pede para ficar em casa. E, para muitas famílias, isso representará a quebra de tradições. Catarina Caldeira, 40 anos, e o marido António, de 46, costumam passar uma semana em Vilar Formoso, vila do concelho de Almeida, distrito da Guarda, onde vivem familiares de ambos. “O meu pai, já falecido, era de Vilar Formoso e é para lá que vou desde bebé”, explica Catarina, que aproveita esta época do ano para rever a tia e as primas que vivem lá.
Também os pais e padrinhos do marido são dessa terra fronteiriça que os viu crescer. António viveu em Vilar Formoso até perto dos 30 anos e continua a ter fortes ligações à vila. Na quinta-feira que antecede a Páscoa, a tradição passa pela visita às cruzes espalhadas pela localidade, realizando-se, da parte da tarde, a abertura oficial das festas. “Rezamos e visitamos a família. Comemos o folar, bebemos jeropiga e, na Sexta-Feira Santa, acordamos bastante cedo para acompanhar a procissão do Nosso Senhor dos Passos”, prossegue. Depois, a família junta-scruzee para o almoço e, da parte da tarde, participa em alguns jogos tradicionais, que se juntam à celebração religiosa. A tradição passa ainda pela oferta do folar, dos padrinhos aos afilhados. “A minha mãe também costuma participar nas cerimónias e acompanha-nos. Aproveitamos para visitar o cemitério, pois o meu pai está sepultado em Vilar Formoso”, acrescenta Catarina.
Com três filhas, Stela, de 11 anos, Margarida, de sete, e Francisca, de quatro meses, as férias da Páscoa são também um bom pretexto para as meninas reverem as primas e aproveitarem toda a liberdade que não têm em Oeiras. “Neste momento em que vivemos esta pandemia, ainda vão sentir mais falta de brincar na rua, à-vontade, sem receios. Estão um pouco tristes por não podermos ir este ano, mas compreendem os motivos”, diz Catarina. Esta seria também uma oportunidade para alguns familiares conhecerem ou reverem a bebé Francisca. “Assim que o estado de emergência for ultrapassado, e logo que seja possível viajar em segurança, temos programado voltar a Vilar Formoso”, partilha. António reforça que a Páscoa “é um ponto de encontro entre todos”, pois alguns familiares estão espalhados pelo país e outros vivem fora de Portugal.
Quando foram confirmados os primeiros infetados com Covid-19, Rita Barbosa, de 48 anos, ainda imaginava que iria manter as duas viagens ao estrangeiro que tinha programado, a primeira delas à Disney, em março, e a última à Serra Nevada, nos dias a seguir à Páscoa. “Comecei a ponderar as viagens que tínhamos programado e informei-me melhor, mas comecei por pensar que poderia ser alarmismo e que não seria necessário adiar ou cancelar as viagens”, observa. Relativamente à visita à Disney e a Paris, o projeto familiar tinha sido muito bem programado juntamente com as filhas, Teresinha, de quatro anos, e Constança, de nove. “Quisemos que as nossas filhas percebessem que devemos poupar dinheiro para um determinado objetivo e fizemo-lo durante três anos para que a nossa filha mais nova crescesse um pouco e aproveitasse a viagem da melhor forma.” Ambas as viagens acabaram por ser adiadas ou canceladas. “Estava a custar-me imenso tomar uma decisão que teria de ser sobretudo racional”, confessa.
Rita e o marido, Pedro Toscano Rico, de 53 anos, pertencem a famílias em que a tradição da Páscoa é sinónimo de casa cheia. Todos os anos vão para a casa do sogro de Rita, em Portel, no Alentejo, e é o momento em que cerca de 25 pessoas se reencontram. “Juntamo-nos todos, temos muitas crianças na família e fazemos questão de preservar as nossas próprias recordações de infância ligadas à celebração da Páscoa”, vinca Rita. Na Sexta-Feira Santa, acendem-se velas e juntam-se todos à janela – avô, tios, sobrinhos e primos – para assistir à via-sacra. “No sábado de Aleluia, convidamos alguém para almoçar e no domingo de Páscoa, dia da Ressurreição, vamos à missa e almoçamos em família.”
Há ainda tempo para criar atividades com as crianças mais pequenas: pintam ovos, desenham coelhos, decoram o jardim e cada um dos meninos escreve o que significa a Páscoa. Constança, filha de Rita e Pedro, chegou a escrever uma composição para a escola onde exprime a alegria que sente pela forma como é vivida a quadra. “A minha família é muito criativa e com ela tudo é possível. Antes de irmos à procura dos ovos, vamos à missa, na igreja onde fui batizada, encontro sempre o padre que me batizou e rezo pelos que já foram para o céu.” Por parte dos adultos, existe “a preocupação de explicar a importância dessas vivências e do fortalecimento dos vínculos familiares”.
Este ano, a Páscoa será passada em casa, como ditam as medidas decorrentes do estado de emergência. Segundo Teresa Carvalho, psicóloga clínica, terapeuta familiar e de casal da equipa técnica da clínica PIN, “o adiamento de viagens ao estrangeiro, fins de semana em Portugal e almoços e/ou jantares com familiares provavelmente provocarão zanga, desilusão, frustração e tristeza. Contudo, pode ser uma boa oportunidade para a criatividade, para se decidir o que fazer com essas emoções e dar um novo sentido a esta época”. A terapeuta reforça o quanto a atual fase pode ser exigente para os mais velhos, que sentirão ainda mais a necessidade de estar em família. “Resta-nos sensibilizar para a importância da manutenção do isolamento, não só pela saúde dos mesmos, mas também dos mais novos e de toda a comunidade.” E é certo que o momento que atravessamos pode gerar um sentimento de medo e de impotência, pelo que poderá ser vivido “com especial intensidade por parte de algumas pessoas, evoluindo para estados de maior frustração, ansiedade ou depressão. A distância física da nossa rede de apoio aumenta os sentimentos de saudade”.
Voltar ao início da igreja católica
Para o bispo do Porto, D. Manuel Linda, “nada substitui a comunidade que se abraça, que está ali, que canta e que está reunida. Nada retira esse valor imenso de uma comunidade que se reúne para, toda ela, rezar a Deus. Mas, já que as circunstâncias não o permitem, ao menos que se mantenha a sintonia espiritual a partir das suas casas e acompanhando o senhor padre e aquilo que está a acontecer naquele momento”. Considerando que a pandemia vai obrigar-nos, “a todos”, a pensar mais e a refletir sobre o que é realmente importante na vida, D. Manuel Linda faz um paralelismo com o início da Igreja Católica, no tempo do Império Romano, em que as pessoas rezavam essencialmente nas suas casas. “Como neste momento as igrejas estão fechadas, é em ambiente familiar que encontramos feedback de pessoas que há muitos anos não rezavam e que agora estão a fazê-lo. Hoje, mercê daquilo que estamos a viver, muitas das nossas famílias estão a tornar-se numa verdadeira igreja doméstica porque é lá que se fala de Deus e é lá que se celebra o culto divino.”
Também D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, sublinha essa ideia. “As atuais restrições à convivência habitual têm levado muitas famílias cristãs a redescobrir a dimensão doméstica da Igreja e a experimentar o realismo da promessa de Cristo, de que estaria presente onde dois ou três se reunissem em seu nome. São muito belos e convincentes os relatos que chegam sobre oração em família e os seus frutos. Belos também os gestos que fazem em relação a vizinhos e a pessoas necessitadas, com a precaução necessária, mas sem os esquecer.” É certo que neste ano as celebrações presenciais não serão permitidas, mas os sacerdotes não deixarão de as celebrar. “Nem deixarão de acompanhar as pessoas, num ‘compasso’ realizado pelo telefone ou pela internet, que os levará a casa de cada um, em especial junto dos que estão doentes ou mais sós.” D. Manuel Linda corrobora: “Algumas pessoas utilizam os meios tecnológicos e, em algumas zonas do País, temos assistido a adesões maiores do que seria expectável, a julgar pelo número de pessoas que vai à missa ao domingo”.
O cardeal-patriarca de Lisboa enaltece ainda o esforço de várias instituições de solidariedade social, que, apesar das limitações humanas e materiais acrescidas, não desistem de encontrar meios e formas de atuação para prosseguir o seu trabalho. “Contam necessariamente com o devido apoio público, juntando o que fazem à generosidade de muitos.” Não são também esquecidos os que estão na primeira linha do combate à epidemia, especialmente nos cuidados de saúde, “acompanhando-os com a oração e o que mais for possível”. Em suma, “uma Páscoa à distância não pode significar uma Páscoa distante. É um modo diferente de viver a Páscoa de sempre”.
Catarina conta o que está idealizado para o próximo domingo. “Iremos reunir a família por videochamada durante a refeição. Vamos arranjar-nos melhor e tentar substituir o fato de treino por uma roupa mais especial, almoçar na sala, em vez de o fazermos na cozinha, e assistir à transmissão da missa através da televisão.”
Rita Barbosa não tem dúvidas de que, após o atual período e todas as suas exigências, haverá um novo começo. “Quando ultrapassarmos a pandemia, e fazendo uma analogia com a Páscoa, iremos todos viver a ressurreição, no sentido de recomeçarmos a viver com a mesma força e com esperança. Temos fé, somos católicos, tentamos ir à missa aos domingos, mas, mais do que isso, passamos a importância do amor e de ultrapassar as dificuldades às nossas filhas.” A Páscoa, este ano, será em casa, a quatro, com videochamada durante o almoço de domingo, através de uma das muitas aplicações que nos últimos tempos, mais do que nunca, ajudam a encurtar distâncias e a matar saudades. “Haverá tempo ainda para a tradicional caça aos ovos, no jardim perto de casa, e, sobretudo, vamos esforçar-nos para que esta época seja, de igual forma, feliz e mágica para as nossas filhas.”