Pandemia nas flores

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
O homem ergueu-se no banco dos arguidos do tribunal, calmo como quem sobe ao pico da montanha, e vê um futuro feito de nuvens e um vale escuro cá em baixo. Não sabe se espera no cume, se começa a descida, se mergulha em queda livre no abismo. À medida que o homem falava, recordava as minhas expedições à grande florista das Avenidas Novas, em Lisboa, o rés-do-chão invadido por uma selva doméstica e húmida, perfumada de rosas, cravos vermelhos, estrelícias erectas, orquídeas luxuriantes, modestos manjericos. Ramos, vasos, coroas, um tapete de pétalas no chão. Ia-se comprar flores para alguém (quando isso se fazia por amor e luto). Veio 2020 e o homem contou:
– Estou lá há 40 anos, eu e a minha mulher. A florista foi fundada pelos meus sogros.
É o sócio-gerente. A inspecção entrou lá em 2019 e passou-lhe uma multa de seis mil euros. Tinha à venda “espécies exóticas”, sem licença. Tirou a licença, afixou-a e pensou que já estava tudo tratado. Mas chegou a contra-ordenação, a multa.
– Mas sabe que tinha à venda estas espécies, disse a juíza.
– Sinceramente, não sei. Dizem “exóticas”, mas também “indígenas”. Não sei quais são as plantas indígenas.
Mostraram-lhe fotos. Pareceram-me belas orquídeas.
– Tinha lá essas plantas?
– Tinha, tinha.
– Mas não tinha a dita licença.
– Não, porque desconhecia. E assim como eu, muitas floristas.
– Já tinha há muito tempo?
– Sim, é normal… A loja está aberta há 60 anos, acredito que há 60 anos ainda não, mas desde que apareceram essas plantas, tínhamos.
– Como é que está a situação económica?
– Mal. Estamos todos, não é? Foi tremendamente difícil quando apareceu esta pandemia, tive que entrar um mês em lay-off… Eu mais a minha mulher íamos todos os dias à loja regar as flores, mandar para o caixote do lixo, porque podia começar a apodrecer e cheirava mal. Todas as flores que havia na loja foram… pronto!
– Que prejuízo teve?
– A gente estava tão preocupada com tudo, que não contabilizámos essas flores, mas que foram todas, foram.
– Claro.
– Tive mesmo de as deitar fora, senão o cheiro era incomportável.
– E reabriram quando?
– No passado mês. Nós tentámos antes, mas não conseguimos, porque a receita diária nem dava para pagar os gastos. Agora reduzimos o horário, é das 9 às 19 horas, mas eu e a minha mulher entramos mais cedo, fazemos 12 horas todos os dias.
– Como é que está o negócio?
– Mal. Não há casamentos, inclusive os funerais, agora, se entram no velório, entram às 9.30 horas, dá-se a missa e às 10.30 horas saem logo e … é para cremar…. as pessoas já não levam uma coroa, levam um raminho, não vale a pena. E nós vivíamos muito dos casamentos que, pronto, era óptimo, e vivíamos muito também das peças de funeral, não é, hoje em dia as pessoas irem comprar um ramo, é muito raro. Hoje em dia, passa-se um dia inteiro sem entrar ninguém. Vamo-nos aguentando, mas é uma angústia no fim do mês pagar os ordenados. Tenho empregados com 40 anos de casa, ou mais.
– Quantos empregados tem?
– 26 a 28. Inclusive, tenho um caso que é uma família inteira, o pai, a mãe, o filho e a nora. O que é que acontece? Se eu cair, arrasto estas pessoas todas comigo. Estou muito preocupado porque não sei o que é que isto vai ser. Se voltassem a fechar como fecharam, eu não tinha hipótese. E estas pessoas que ali estão há 40 anos não conseguem arranjar emprego em lado nenhum, com esta idade.
O homem tem 71 anos. Não quer deitar fora mais flores. No dia dos mortos de 2020, nos finados, quase não se venderam flores, disseram os jornais.
– Quer dizer mais alguma coisa?
– Não. Quer dizer, se me puder tirar a multa, era muito bom. Eu não quero desistir, mas começa a ser difícil.
Vou esta semana comprar-lhe rosas, caro senhor.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)