Pais para toda a obra

(Foto: Octávio Passos/Global Imagens

Ter um filho leva os pais a testar diariamente os limites. Começa pelas noites mal dormidas, cruza o desgaste das rotinas, sobrevive às ausências das mães e quase sempre termina nos abraços que sussurram “está tudo bem”. Hoje é Dia do Pai. E estes são alguns dos que merecem todo o amor.

As viagens nas montanhas-russas são todas iguais e todas diferentes. Algumas começam com arranques lentos, agoniantes. Outras com puxões rápidos, como chicotadas. As mãos agarram as proteções com força. Confiando a desconfiar. Uma vez em movimento, não há nada a fazer. Nas subidas íngremes, os ossos pesam uma tonelada. Nas descidas clivosas, parecem eclipsar-se contra o vento. Entre loopings, o frio que arranha a barriga. A vida. O estômago parece mudar de lugar, fica às portas da garganta. Os olhos em alerta. Grita-se para fora. Congela-se por dentro. O coração prestes a explodir. A adrenalina a pulsar. Mil sensações condensadas numa aventura de minutos, mas que parece uma eternidade. Se o cérebro deixar, algures no turbilhão, ainda nos perguntamos: “Onde raio me vim meter?”. No fim, só os resistentes – que os há, como também há quem lhes chame malucos – esquecem a aflição daqueles instantes e voltam à fila, para sentir tudo de novo. Uma, outra e outra vez.

“A paternidade é como uma montanha-russa”, garante João Tereso, 39 anos. Homem sereno e sorridente, que rebobina os dias dele e da mulher, Rita Gaspar, 43 anos, até chegar ao ponto zero da aventura. “Queríamos muito ser pais. A decisão foi consciente. Planeada.” A notícia da gravidez foi recebida com aquela alegria que não cabe no peito e com alguma apreensão. “Somos arqueólogos e sabíamos da precariedade do nosso trabalho.” Mas esperar pela melhor altura podia significar nunca terem crianças. “Arriscámos.”

O arqueólogo João Tereso ficou com os filhos, Artur e Pedro, durante vários meses para que a mulher pudesse trabalhar (Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

O pequeno Artur nasceu em outubro de 2008, no mesmo ano em que o casal se mudou para a Invicta, após João, natural de Alcobaça, receber uma bolsa de doutoramento na Universidade do Porto. Rita, de Sintra, estava desempregada. “Nenhum de nós tinha família por perto. Mas aquele primeiro ano em que ambos ficamos em casa com o Artur foi muito bom.” Cresceram juntos a aprender com as pequenas tarefas a que um filho obriga. Até que Rita recebeu, em 2010, uma proposta para trabalhar na Barragem do Baixo Sabor, em Bragança. “Ponderámos e acabámos por concluir que enquanto família precisávamos daquele rendimento.”

A grande decisão foi saber quem ficaria com o bebé. “Por causa da minha bolsa de doutoramento era mais fácil para mim gerir horários.” Rita partiu sozinha. Regressava aos fins de semana. “Para estar com o filho e para prepararmos a semana seguinte.” Limpavam a casa, faziam as compras, organizavam as refeições. “Era um trabalho de equipa. Não fui abandonado com um filho nas mãos.” Mas durante cinco dias esse apoio estava à distância. “Tive medo de não dar conta de um filho sozinho.

Há momentos que se transformam em cicatrizes. A ida da mãe para longe coincidiu com a entrada de Artur na creche. “Naquele inverno, apanhou as primeiras viroses.” Foi assim que descobriu que as suas capacidades enquanto pai eram maiores do que imaginava. Certa vez, o pequeno não parava de chorar, de vomitar, e de sujar as fraldas com diarreia. “A Rita chegou a casa na sexta-feira e foi logo pegar no Artur para eu dormir um pouco, mas ele recusou-se.” Estava habituado aos braços e cuidados do pai.

“Acabámos por ficar os dois acordados. Eu a tentar sossegá-lo e a Rita às voltas com aquela rejeição.” Foi até por esse motivo que, ao fim de um ano, o casal decidiu não aceitar a renovação do contrato da barragem. Voltaram atrás meses depois. “Aquele rendimento fazia-nos falta. A Rita não pôs a carreira à frente da família.” Foi o contrário. “Pôs o nosso bem-estar à frente dela. E as pessoas não entendiam. Como se tratar das crianças fosse um dever exclusivo da mulher.” João está ciente que foi ele quem mais ganhou. “Fui um privilegiado. Pude ver os primeiros passos do meu filho, enquanto a mãe saiu num domingo e quando voltou, na sexta seguinte, ele já caminhava.”

Quando Artur era ainda mais pequeno, beijava o computador para se despedir da mãe, Rita Gaspar (Foto: Direitos Reservados)

Quando a barragem estava para terminar, o casal planeou o segundo filho. A história repetiu-se na alegria da notícia. Só que o trabalho, afinal, atrasou. Artur já apagava quase tantas velas quantos os dedos de uma mão quando o irmão Pedro nasceu, em agosto de 2013. Três meses depois, Rita estava de volta a Bragança. “E eu fiquei com os dois”, naquela mesma vida solitária, até maio de 2015. “Foi mais exigente por ser um recém-nascido. Mas o desafio maior prendeu-se com a logística de cuidar sozinho de duas crianças tão pequenas.” Apesar das olheiras e do cansaço indescritível, João não voltava atrás. “Pude criar uma relação muito forte com os meus filhos.”

Felizmente, aqueles tempos não deixaram sequelas nos meninos, hoje com 11 e seis anos. “Adoram a mãe.” De modo geral, assegura João, saíram “muito reforçados”. Não fossem as tecnologias, a situação podia ter sido mais crítica. “Ajudaram-nos imenso. Fazíamos chamadas por Skype. À noite até jantávamos juntos. O Artur chegou a abraçar e a beijar o computador para se despedir da mãe. Nem quero imaginar como teria sido sem essas ferramentas.”

Jorge Ribeiro bate no mesmo ponto. O engenheiro civil, de 45 anos, natural de Proença-a-Nova, passou por um teste de paternidade idêntico. Confessa que, no início, não havia surpresas. Planearam os filhos, que saíram filhas, com intervalos de três anos. Com as responsabilidades a aumentarem, Jorge e Marta, professora de Inglês, hoje com 41 anos, fizeram as escolhas profissionais que melhor se adaptavam às exigências da vida. Jorge passou de segurança numa escola a engenheiro técnico e, depois, a dono do próprio gabinete de engenharia civil. Ao passo que Marta foi alargando horizontes.

“Cada vez se candidatava para dar aulas em zonas mais distantes de casa. Até que foi para Lisboa, de onde é natural, e porque podia ficar na casa dos pais.” Durou um ano. Nessa altura, ainda só tinham duas das miúdas. Maria, com cinco anos, e a Rita, com dois. “A Marta preparava as roupas e a comida para a semana e eu cuidava do resto sozinho.” Era uma ginástica, mas correu bem. No final do ano letivo a mulher regressou à base e até tiveram Francisca. Em 2011, nova reviravolta. Marta recebe uma proposta para ir trabalhar para a Alemanha. Os dois meses de ausência passaram a um ano. Jorge aguentou o barco. À época, as miúdas tinham sete, quatro e um ano.

“No início, parecia fácil. Depois, revelou-se tudo complicado para um homem só. Ter que preparar as refeições, vesti-las, arranjar-lhes aqueles conjuntos de roupa para irem para a escola, os lanches, chegar às 17 horas e largar o que quer que estivesse a fazer para voltar para casa. Para cozinhar, para lhes dar banho.” Uma canseira. À noite, depois de um dia esgotante, deitavam-se na mesma cama, filhas e pai, e faziam uma videochamada para falar com a mãe. “Era quase como se estivéssemos todos juntos.” Uma forma de enganar a realidade que voltava em força na manhã seguinte. Entretanto, quem também voltou foi Marta. E até foi colocada perto de Proença. Madalena, a quarta filha, foi gerada nesse contexto.

Jorge Ribeiro com Madalena, Francisca, Rita e Maria. Aprendeu com as quatro filhas a ser “um pai mais completo” (Foto: Pedro Martins/Global Imagens)

“Depois dela nascer, a Marta voltou a dar aulas em Lisboa por dois anos.” A mais nova foi com a mãe. O pai ficou com as restantes. “Como já eram maiorzinhas foi mais calmo.” Desses tempos Jorge guarda lembranças, reflexões e lições. “É preciso uma estabilidade emocional muito elevada. Em casa, dividir tarefas é uma coisa, fazer tudo sozinho é outra. E há mulheres a fazer isso sozinhas, mesmo com os homens em casa.” Felizmente vai-se apercebendo da mudança de mentalidades. “Na minha zona há cada vez mais colegas a tirarem licenças e a ficarem sozinhos em casa com os miúdos.”

Os números apontam nesse sentido. Entre 2017 e 2019, verificou-se um aumento de quase 12% do número de pedidos de licença parental facultativa por parte do pai a darem entrada nos serviços da Segurança Social, revelou o “Jornal de Notícias”, no final de fevereiro. Por consequência, aumentou também o número de subsídios parentais obrigatórios exclusivos do pai. As 62 337 licenças, em 2017, subiram para 67 689, no ano passado.

A pioneira nesta matéria foi a Suécia, nos idos anos 1970. Atualmente, mais de metade dos países da União Europeia segue o modelo escandinavo. Em Portugal, no ano passado, entrou em vigor a nova lei da parentalidade, que veio reforçar, sobretudo, os direitos do pai, que agora goza obrigatoriamente 20 dias úteis, em vez dos 15 anteriores, passando a ter cinco opcionais e não dez como dantes. A mudança institucional era precisa para marcar, cada vez mais, a mudança cultural e a tomada de consciência de que o pai pode, e deve, assumir um papel significativo em diversas dimensões, como no cuidar e no afeto.

Foto tirada por Marta, mulher de Jorge Ribeiro, numa das vezes em que veio da Alemanha para passar uns dias com a família (Foto: Direitos Reservados)

Jorge Ribeiro reforça os benefícios de assumir a paternidade com tudo o que ela exige. “Antes chegava a casa e brincava com as minhas filhas. Quando fiquei sozinho, a brincadeira diminuiu um pouco e passámos a ter uma relação mais sólida. Não era só brincar, havia horários para cumprir, precisei de educar mais.” Foi aí que percebeu que não era um pai tão participativo quanto pensava. “Houve dias em que não achei graça nenhuma. Se não tivesse passado por estas experiências não sei se teria sido um pai tão completo.”

Adelino Cardoso apercebeu-se cedo dessa riqueza. O professor reformado do Ensino Secundário, que acumulou funções como investigador e revisor de livros, tinha o hábito natural de cuidar dos filhos enquanto trabalhava. “Lembro-me de estar a fazer a revisão de provas e as minhas filhas, Mariana e Marta, que faziam diferença de 15 meses, quererem ajudar. Sentei uma em cada perna e ia dizendo ‘risca ali’, ‘risca ali’. E, no final, o livro não tinha mais gralhas do que qualquer outro.”

Aos 69 anos, revive com saudade o crescimento das suas crianças, duas meninas e um rapaz, com quem assumiu um papel de pai ativo, que fugia, e muito, aos cânones da época. “Tinha consciência que era encarado com estranheza do ponto de vista social.” Trabalhava em Lisboa mas vivia no Prior Velho. “Nos anos 1980, aquela zona era quase uma aldeia e notava-se a diferença na maneira como eu lidava com as minhas filhas. Naquele contexto dava muito nas vistas eu andar sempre com elas.”

Adelino Cardoso com o filho, Samuel (Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Fazia-o, reforce-se, com naturalidade. Não era uma questão da mãe ser ausente. Era mais a questão do pai ser presente. “Tinha a ver comigo. Eu era o terceiro mais velho de 11 irmãos. Sempre gostei de acompanhar os pequeninos, de ver as pequenas transformações interiores. Para mim, a educação esteve sempre associada a um enorme valor cultural. Uma criança é um ser prodigioso e foi com grande prazer que acompanhei as minhas crianças.”

Parte desses anos, Adelino era aluno bolseiro. “Podia definir os meus horários e adaptar-me às necessidades das crianças.” Ajudava ainda a elevada capacidade de concentração. “Conseguia acompanhá-los e trabalhar ao mesmo tempo.” Um exemplo: certa vez, teve uma reunião com o poeta Hélder Moura Pereira e levou a filha de 11 meses. “Já sabia como carregá-la ao colo e continuar a ter liberdade de movimento de forma a escrever comodamente.”

 

Adelino Cardoso com as filhas, Marta e Mariana, na praia (Foto: Direitos Reservados)

Mesmo nas fases mais complicadas, como a privação de sono, Adelino nunca se queixou ou abdicou daqueles que para si eram os seus deveres de pai. “Acordavam várias vezes durante a noite, e era eu quem ia ver o que fazia falta, se mudar a fralda, que na altura eram de pano, se dar-lhes o biberão. Nunca senti que as minhas filhas fossem para mim um peso, nem nunca senti um incómodo por ser eu a tratar mais delas. Digo-o com alegria e satisfação.” A mais velha chegou a ter dificuldade para adormecer. “Se fosse verão, até íamos passear a pé os dois.” E quando Samuel, o mais novo, nos primeiros tempos necessitou de cuidados médicos frequentes, Adelino foi, com o filho nos braços, várias vezes para a maternidade de madrugada. “Sempre vivi esses momentos como sendo muito importantes em termos de proximidade com eles.”

Comportou-se de igual modo com todos. “Vestia-os, dava-lhes banho, dava-lhes de comer. Tinha esse papel mais ativo, embora não assumisse essas funções em exclusivo. Só escolher o vestuário é que era mais tarefa da minha mulher.” A relação de Isabel com os filhos não se ressentiu. “Só podia haver desconforto naquelas raras situações à noite, quando eles choravam e se lhe pedia para ir lá ver as crianças eles diziam que queriam o pai e não a mãe.” A propósito disso, surge outra memória caricata. A dada altura, a filha mais velha do casal chegou a tratar o pai por “mãe” e a mãe apenas por “mamã”. “A Mariana tinha dois ou três anos. Durou alguns meses, sem que tivéssemos tido necessidade de a corrigir.” Hoje, Mariana tem 35 anos. Marta conta 34 e Samuel 27. E continuam a ter uma relação “muito intensa e forte” com o pai. “Foram anos de aprendizagem mútua, muito felizes.”

É por essa felicidade que António Pedro Mota luta todos os dias. “Só quero que o meu filho sinta orgulho no pai dele, como eu senti do meu.” Porém, o sorriso que o pequeno Rodrigo traz tatuado no rosto tem feito o pai, 36 anos, natural de Novelas, Penafiel, atravessar o caminho das pedras.

O pequeno Rodrigo vive apenas com o pai em Penafiel, desde que este se divorciou da mãe. Têm uma relação muito próxima (Foto: Octávio Passos/Global Imagens)

O sonho de construir uma família normal saiu-lhe gorado. “Apaixonei-me, casei, tive um filho, mas a vida não correu nos moldes que eu idealizei. Ao cabo de ano e meio, e depois de diversos problemas conjugais, soube que a minha mulher tinha outra pessoa e separei-me. Pelo meio, até de violência doméstica sofri. E como fazia tudo pelo meu filho o Tribunal deu-me a guarda do menino. Desde então somos só nós.” Com a ajuda dos profissionais de ação social que acompanham o caso de perto.

“Quando me divorciei, trabalhava numa fábrica de cordas na Maia. Ia e vinha de camioneta. Entrava às 15 horas e acabava o trabalho pelas 23.30. Chegava a casa à uma da manhã.” Como a creche fechava às 19 horas, arranjou quem ficasse com ele. “No dia a seguir de manhã, estava a pé cedo para tratar dele. Não me descuidava.” Mas as viroses surgiam com frequência, apesar dos mil cuidados do pai. “Passava a vida no hospital, faltava. Os patrões sabiam, ainda assim não toleraram e mandaram-me embora.” Mais uma vez, com ajuda, arranjou emprego na Junta de Freguesia de Oldrões, onde é cantoneiro, há três anos.

António, cantoneiro na Junta de Freguesia de Oldrões, vive em função do seu “menino”, como carinhosamente trata o filho (Foto: Direitos Reservados)

De resto, têm sido dias de muita aprendizagem e sacrifício. “Aos poucos, fomo-nos habituando.” A rotina vai fazendo a sua parte. “Vivemos só os dois e eu trato de tudo.” Do almoço, do jantar, da higiene, leva-o à terapia da fala e à terapia ocupacional, onde anda desde os dois anos, e agora também à patinagem. “Inicialmente tinha muitos receios. Não estava por dentro do que era cuidar de uma criança. Só sabia cozinhar.” Tudo o mais foi aprendendo. “O meu menino é a minha vida. É tudo o que eu tenho.”

Por isso, empenha-se ao máximo. “Sou cuidadoso. Ando sempre a ver se ele tem fome, se quer ir à casa de banho, do que precisa. E tento crescer com ele. Faço o melhor possível.” E assim vive num desassossego tranquilo. “Ele dorme que é uma maravilha, mas de noite vou sempre lá ao quarto espreitar. Ver se está coberto. Se for preciso, ajeito os lençóis, dou-lhe um beijinho e volto para a minha cama.” O carinho estende-se pela manhã. “Tento acordá-lo de forma meiga, às vezes até lhe faço uma massagem nas costas para que desperte bem-disposto.”

Rodrigo poucas preocupações dá. Não gosta muito de doces. Gosta de jogar à bola e de correr. “Cá para mim vai ser atleta.” De vez em quando, lá acontece uma birra. “Faz parte, não é? O que foi, filho, queres fazer chichi?” Cuidar de um menino de quatro anos sozinho dá trabalho, mas vale a pena. “Só de vê-lo sorrir ganho forças para continuar a lutar.”

As batalhas que os pais travam pelos filhos acarretam sempre uma enorme dose de coragem e determinação. Seja em Portugal ou em qualquer outro ponto do planeta. Que o diga Abílio Caldas, 63 anos, pai de seis, residente em Cassa, Timor-Leste, onde também é professor de português, na Escola Básica 6 de Setembro. A sua história é contada a dois. Pelo filho, Isaías, padre jesuíta a viver em Madrid, e pelo próprio, que nos escreveu de Timor. O homem com quem Isaías aprendeu “a sonhar”.

Abílio Caldas com o filho Isaías, em Timor-Leste, terra natal de ambos. O jovem, que agora é padre jesuíta em Madrid, tem o pai como herói (Foto: Direitos Reservados)

De todos os tropeços da vida, há um que quer recordar. Tinha o jovem 14 anos quando foi estudar para Díli, no colégio de Balide. Um mês depois, a 30 de agosto de 1999, mais de 98% da população timorense foi às urnas votar o referendo sobre a independência do país, ocupado pela Indonésia. A centelha de mudança durou pouco.

Acossados pelo resultado, as milícias indonésias começaram a atacar os independentistas, “queimaram casas, violaram mulheres, obrigando o povo a fugir”. Sem possibilidade de voltarem a casa, Isaías e os amigos escaparam para Timor Ocidental. “Eu era o único filho de quem os meus pais não sabiam o paradeiro.” Começou, então, a procurá-lo. Ligaram às paróquias, aos campos de refugiados, aos centros de acolhimento, às ONG. Nada. Para dificultar a tarefa, em setembro, Abílio e a família foram evacuados para Atambua, na Indonésia.

Na travessia, por coincidência, cruza-se com o padrinho do filho, que o tinha visto em Cupão. Abílio foi até lá. “O padre disse-me que tinha regressado a Timor-Leste.” Abílio voltou a Atambua com o intuito de levar a mulher e os restantes filhos para casa. Com a família a salvo, subiu e desceu as montanhas que separavam o distrito de residência da capital, Díli. Sozinho, apenas com a esperança de encontrar o filho com vida, durante cinco longos dias. Para sobreviver comia mangas. No troço final, ainda contou com a boleia dos soldados portugueses.

Foi desde Cassa, onde é professor na Escola Básica 6 de Setembro, que o timorense respondeu à “Notícias Magazine” (Foto: Direitos Reservados)

“Quando o reencontrei, abracei-o e chorei”, recorda Abílio. O filho completa-lhe as memórias. “Foi um forte abraço.” A voz saiu-lhe num murmúrio cansado, mas feliz. “Entre lágrimas repetia-me: já estamos bem filho, já estamos juntos.” Era o que importava depois de cinco tortuosos meses sem saberem um do outro. Não podia ser de outra forma, garante Abílio. “Ser pai é ser criador, cuidador, protetor.” Por isso, continua a trabalhar, para garantir que os seus filhos mais novos possam estudar. “A educação é um bem precioso.”

Para Isaías, é um herói. Condição que se reflete no momento mais íntimo da sua vida religiosa. “Enquanto crente, esse episódio marcou-me muito. Desde então, sempre que rezo o Pai Nosso é-me mais fácil imaginar um Pai que cuida, que não desiste. E que me procura sempre, mesmo sem eu saber.”