Outros reinos
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
O cinema português, como teria de ser, renasce. Na passada semana, no festival Curtas de Vila do Conde, o cinema português recomeçou.
O Luís Costa tem, hoje, 27 anos. Um dia, disse-me que gostaria de fazer uma curta-metragem adaptando de algum modo o meu primeiro romance, “o nosso reino”. Há qualquer coisa mais adulta no Luís, como se por dentro dos olhos visse para depois de nós, depois do lugar e do tempo, talvez à procura mas seguramente não no imediato, sem precipitação. Falámos de paixões comuns. Os dois primeiros nomes que dissemos coincidiram em absoluto. Béla Tarr e Andrei Tarkovsky. O segundo é uma aquisição com décadas, como se já fosse um pano de fundo da minha própria vida e do meu imaginário. O primeiro chega-me mais recentemente, talvez há apenas 15 anos, e por isso me obstina ainda, me fascina de um modo esmagador, deixa-me imóvel, sem saber pensar.
Vi o filme do Luís, que leva o título do meu livro e que gira em torno da figura de uma criança que ausculta a morte, imaginando como opera, como Deus a escolhe para cada um. Tive a mesma impressão de me solicitar um imediato silêncio, uma solenidade espiritual que não poderia ser poluída com minha voz, apenas teria de seguir respirando, regressando lentamente à tona do dia, como acontece a quem é admitido a sobreviver depois de certo acidente.
A criança vê num enorme cão o ofício da morte. Mais desalentado do que furioso, possante, sempre resfolegando, fantasmático, o cão acontece por aparição. É de ordem bíblica. Vai pelas casas espiando pelos que chegaram à sua hora e convoca-os. No meu livro, a criança repara como tal cão se avizinha da casa daqueles que acabam. Uma e outra vez. Até que o cão entre na sua própria casa. Até que escolha a sua própria casa, onde a sua família é chamada para desaparecer também.
O que vejo na curta-metragem de Luís Costa é a pura aparição. Mais do que uma narrativa que decorre do meu livro, que poderia ser sobretudo normal de se fazer, ele imaginou e construiu outra coisa. O filme inteiro é uma aparição porque a figura do cão é de ordem santa e é por ele que somos dirigidos. Assistimos ao estupefacto milagre do gesto de Deus. Esse que reclama a vida. Em redor de uma grandeza assim, como perante qualquer milagre, a nossa resposta competente é o silêncio.
Eu julgo que nunca vi um filme de estreia mais deslumbrante. Embora seja suspeito, não me sinto impedido de o afirmar porque a opção do Luís Costa teve que ver exactamente com uma libertação perante o livro, gerando um objecto que se levanta numa maravilha própria onde, por fascínio, vejo a minha criança como nunca poderia esperar ver.
O cinema português, como teria de ser, renasce. Na passada semana, no festival Curtas de Vila do Conde, o cinema português recomeçou. Que eu passe tão perto disso deixa-me grato, orgulhoso, feliz.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)