Os vigilantes da internet

O campo de batalha é a Internet. Em Inglaterra, nos Estados Unidos, em Portugal. Alvos: predadores sexuais e recrutadores de terroristas, abusos sobre trabalhadores e polémicas do quotidiano citadino

Denunciam pedófilos e combatem a propaganda dos extremistas do Estado Islâmico através das redes sociais. Há também grupos criados para mostrar ofertas de emprego manhosas ou relatar problemas nas cidades. Fazem da Internet o ponto de partida de casos que, muitas vezes, acabam nos tribunais.

O grupo nasceu em abril de 2016 e tem como missão “ajudar a manter a segurança das crianças”. À “Notícias Magazine”, Joe Jones, de 50 anos, um dos elementos dos Guardians of the North (Guardiões do Norte, em tradução livre), explica o que esteve na base do grupo fundado no nordeste de Inglaterra. “Foi pouco depois de saber que o meu filho tinha sido abordado por um predador sexual através da Internet. Face ao teor da conversa, contactei as autoridades que me disseram que nada poderiam fazer. Como não podia ficar à espera, decidi descobrir quem era.”

Desde então, os casos multiplicaram-se e o grupo, atualmente constituído por sete pessoas, deixou de atuar apenas naquela região e reporta casos um pouco por toda a Inglaterra. “A nossa última viagem à volta do país fez-nos percorrer mais de 2 400 quilómetros e levámos à polícia 24 suspeitos.”

A estratégia é simples mas arriscada. Nas redes sociais, ou em fóruns usados para encontros sexuais, fazem-se passar por rapazes ou raparigas menores. Usam fotografias, em alguns casos até pessoais, e mentem na idade, apresentando-se como tendo 14 ou 15 anos. “São as idades mais apetecíveis”, justifica Joe.

Depois, esperam que alguém os contacte. E isso acontece com regularidade. A conversa pode durar várias semanas. Durante a troca de mensagens, estes vigilantes recebem informação pessoal de quem está do outro lado, o que os ajuda a descobrir de onde são, o que fazem e se já têm antecedentes criminais. É comum receberem fotografias. Muitas vezes de cariz sexual. Mas nem sempre é fácil confirmar a identidade verdadeira, já que o alvo, em alguns casos, se esconde em imagens falsas e mente na idade.

Os Guardians of the North, ingleses, já entregaram 24 suspeitos de abuso de menores à polícia

As conversas são gravadas e as fotos comprometedoras entregues às autoridades, que depois decidem o que fazer com o material. Foi assim que, em 2017, chegaram a Anthony Fish, um homem, então com 45 anos, que pensou estar a trocar mensagens de cariz sexual com duas raparigas. Na verdade eram dois dos elementos dos Guardians of the North que receberam propostas e imagens de teor sexual enviadas por Anthony, pedindo fotos às “jovens”, mesmo sabendo que seriam menores.

O homem acabaria por, em 2019, admitir que tentou incitar uma criança a envolver-se em atividade sexual, assumindo também duas outras tentativas de se encontrar com menores com o objetivo de manter relações sexuais. Foi condenado a 16 meses de prisão e o seu nome ficará nos registos dos agressores sexuais nos próximos dez anos.

Noutras situações, o contacto deixa o terreno virtual e passa à realidade. Um dos casos mais recentes envolve Liam Gray, de 32 anos, que em dezembro foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão. O homem manteve conversas com alguém que pensava ser Chloe, uma rapariga de 13 anos. Os vigilantes acabaram por o encontrar, confrontaram-no com as mensagens que receberam e levaram-no para uma esquadra. Durante a investigação, Liam foi ainda acusado de um outro caso de agressão sexual, ocorrida no Dia de São Valentim, em 2004, quando tinha apenas 17 anos.

Relação complicada com as autoridades

Estes são apenas dois casos numa lista extensa. Só nos últimos dois anos denunciaram 300 pessoas. Cem já foram condenadas. Mas a colaboração com as autoridades nem sempre é fácil. “As fileiras mais baixas da polícia não gostam da carga de trabalho que colocamos sobre eles”, adianta Joe Jones.

“Para financiar estas ações, desenvolvemos campanhas de recolha de fundos e temos de gastar, muitas vezes, dinheiro do nosso próprio bolso”, revela o “guardião”, que não esquece os riscos associados a esses encontros. “Quando vamos para o terreno, já estamos em vantagem porque temos muita informação sobre os envolvidos. Além disso, estão à espera de um jovem ou de uma criança e não de três adultos. Mesmo assim, vamos protegidos com luvas e outro material de defesa.”

Denunciam pedófilos e combatem a propaganda dos extremistas do Estado Islâmico através das redes sociais

Mas as dificuldades não ficam por aí. Tal como explica Manuel Masseno, especialista em cibersegurança do Instituto Politécnico de Beja, a própria atividade dos vigilantes poderá cruzar a linha da legalidade. “Poderá dar-se a prática de crimes como os enquadrados na devassa da vida privada, nas fotografias ilícitas ou mesmo na difamação, se divulgarem os nomes e/ou as fotografias daqueles a que atribuem a condição de ‘pedófilos’”, refere. Em último caso, e como os vídeos e as imagens que colocam nas redes sociais rapidamente se tornam populares, podem levar à “instigação pública da prática de crimes, incluindo homicídio”. O vigilante inglês defende-se: “Nunca nos enganamos. Verificamos muitas vezes e em algumas situações até pagamos para que confirmem os endereços”.

Mas as consequências não são apenas de ordem legal. O material de cariz sexual com que são confrontados nas conversas que mantêm com os suspeitos deixa marcas. “Perdi horas de sono e sinto muitas dificuldades em comer”, admite Joe. “Somos confrontados com conversas e imagens que nos deixam perturbados.”

Contraterrorismo em forma de vídeos

O crescimento do Estado Islâmico não se fez apenas no mundo real e no terreno. “O Estado Islâmico utilizou a Internet para criar uma vasta rede de recrutamento e de propaganda”, diz Anne Speckhard, diretora do Centro Internacional de Estudos de Extremismo Violento (CIEEV), em Washington, nos EUA.

A verdade é que para a Síria e para o Iraque terão viajado entre 25 e 27 mil estrangeiros, pelo menos oito mil provenientes de países da União Europeia, sendo que as redes sociais desempenharam um papel preponderante no recrutamento de soldados mais jovens.

“Através delas, sem qualquer intermediação por parte dos jornalistas, os extremistas podiam publicar a informação que queriam, espalhando as suas mensagens. Depois, esperavam pelo feedback, como gostos, partilhas e comentários. E assim conseguiam descobrir alvos potenciais com quem entravam em contacto, iniciando desse modo o processo de recrutamento”, exemplifica a especialista em contraterrorismo, que é também professora de Psiquiatria na Universidade de Georgetown, também em Washington. “A Internet permite estabelecer uma relação íntima e as pessoas mais vulneráveis podem ser encorajadas a juntarem-se a esses grupos.”

Foi para combater a propagação das mensagens dos terroristas na Internet que surgiu a iniciativa Breaking the ISIS Brand Counter Narratives Project. Se a violência nem sempre pode ser combatida com mais violência, os conteúdos virais podem, pelo menos, ser condicionados com mais vídeos. E é isso que o projeto faz.

O crescimento do Estado Islâmico não se fez apenas no mundo real e no terreno

Os vídeos são criados para serem muito parecidos com os utilizados pelo Estado Islâmico nas ações de propaganda. Só que quem os vê, em vez de receber mensagens de apoio ao movimento terrorista, é confrontado com informações relacionadas com a corrupção e o perfil anti-Islão dos membros do grupo terrorista. Para a realização desses conteúdos, que depois são disseminados em plataformas como o Facebook ou o Telegram, são mesmo entrevistados alguns ex-elementos do grupo ou prisioneiros que sofreram às mãos dos terroristas. “Até ao momento foram entrevistadas 220 pessoas”, revela Anne.

Segundo dados disponibilizados pelo CIEEV, o material foi distribuído em mais de 40 países e o apoio de governos, como o belga ou o dinamarquês, não se fica apenas pela componente financeira. Alguns ajudam mesmo a localizar os alvos para a realização das entrevistas. Os vídeos também são usados por entidades nacionais, em escolas, junto dos mais novos, ou em prisões, na reabilitação de elementos que tiveram contacto com os terroristas. “Tivemos conhecimento do caso de uma menina de 13 anos, a viver no Reino Unido, que tinha tudo preparado para seguir viagem em direção a Raqqa, na Síria. Terá sido dissuadida de se juntar aos terroristas depois de ter visto um dos nossos vídeos”, conta.

Empregos escravos denunciados online

A Internet não é apenas um espaço para crimes violentos e abuso sexual. Em Portugal, há quem use as redes sociais para denunciar más práticas laborais e de recrutamento.

“Aceitam-se voluntários que se possam deslocar pelos seus meios e cobrir a suas próprias necessidades logísticas.” O Museu Monográfico de Conímbriga – Museu Nacional, tutelado pelo Governo através da Direção-Geral do Património, anunciou na sua página de Facebook a proposta de trabalho sem qualquer remuneração. A denúncia foi feita na plataforma “Ganhem Vergonha” e a publicação original foi, entretanto, apagada. Por trás da página, criada em 2013, e que esteve na origem de um livro e de uma petição pública apresentada no Parlamento, está Francisco Ferreira, que caracteriza a plataforma que gere sozinho como “um meio de exposição pública de abusos cometidos sobre trabalhadores”.

Página da plataforma portuguesa “Ganhem Vergonha”, que denuncia más práticas laborais

E os exemplos das más práticas, “que chegaram a ser cinco denúncias por dia”, sucedem-se. No passado mês de agosto, foi a empresa KAB + 1 a publicar uma oferta denunciada na plataforma. No OLX, o anúncio era para um trabalho de limpeza, com turnos e com horário noturno. Em troca, os interessados eram aliciados com a oferta de estadia. Ainda assim, a empresa responsável pela oferta de trabalho pedia aos interessados para enviar um CV, que seria avaliado.

O caso reportado na conta de Facebook do “Ganhem Vergonha” mereceu centenas de reações e comentários e chamou a atenção dos responsáveis do hostel lisboeta que, de acordo com Francisco, negou que a proposta apresentada fosse de borla, já que contemplava o pagamento de “cama, água e Internet”. “É oferecido uma cama com quarto compartilhado e lavandaria em troca de 24 horas semanais de tarefas simples”, defendeu-se, também nas redes sociais, o responsável pela empresa.

A verdade é que as publicações feitas nesta conta do Facebook merecem, em muitos casos, reações por parte dos envolvidos. São alteradas e muitas vezes apagadas. Mas nem sempre tudo corre da forma mais simples. “Já tivemos dois processos judiciais que não deram em nada. Insultos e ameaças foram muitos”, confessa Francisco.

Um Fórum para os problemas da Invicta

Criado em 2013 pelo arquiteto Luís Marques Silva, inspirado pelo Fórum Cidadania Lisboa, nasceu o Fórum Cidadania Porto. No Facebook juntam mais de mil membros e todos os dias são feitas publicações de autores diferentes. Têm também um blogue ativo onde os casos são discutidos de forma mais aprofundada. “As denúncias mais comuns são do foro urbanístico: violações de regulamentos, demolições injustificadas”, explica José Pedro Tenreiro, um dos rostos responsáveis pela dinamização da comunidade.

Entre os casos acompanhados pelo grupo está a “demolição do Bolhão” ou a construção de habitações na Rua Marechal Saldanha, uma das zonas mais cobiçadas no Porto. “Neste último caso, por exemplo, numa das obras nunca foi afixado o aviso que deve ser exposto conforme a regulamentação existente e a Câmara Municipal do Porto aprovou a construção de dois edifícios que ocupam 100% de um terreno, o que também não é previsto pelas regras em vigor, incluindo ainda o abate de uma araucária centenária”, denuncia o responsável. “Fizemos uma queixa ao Ministério Público, pois além desta situação verificámos outras irregularidades, mas a demolição avançou na mesma.”

E numa altura em que a desinformação nas redes sociais é debatida com grande frequência, os gestores do grupo assumem os “cuidados que mantêm com as inverdades”. Mesmo assim, não recuam. “Temos consciência da importância de dar voz às denúncias fundamentadas e ajudar aquelas que vão ao encontro das causas fundadoras do movimento: defesa do património edificado, do património arbóreo, de mais e melhor espaço público, de melhor mobilidade pedonal.”

O Fórum Cidadania Porto preocupa-se com problemas urbanísticos da Invicta, do património edificado à mobilidade pedonal

Apesar da diferença de latitudes e da tipologia de casos denunciados, os vários grupos têm um ponto comum: usam as redes sociais como isco e como rampa de lançamento dos casos. Para a investigadora Inês Amaral, da Universidade de Coimbra, esse tipo de iniciativas “é uma consequência direta de diferentes padrões de comunicação online que influenciam os indivíduos a modificar os seus comportamentos quanto ao seu envolvimento cívico”.

São plataformas “que não precisam de uma identidade coletiva ou de uma organização formal” para “reunir indivíduos em torno de causas” e que, “sem estruturas hierárquicas rígidas”, conseguem “partir do online para o offline”. Para a especialista, “os vigilantes podem ter um papel importante na denúncia de situações graves e desconhecidas”. No entanto, a atividade desses grupos, sublinha, deve centrar-se “na denúncia e na educação” e “não na ação”.

A título de exemplo, a informação que nestas plataformas circula de forma rápida e sem barreiras pode criar “alarme social em circunstâncias que não se justificam”. E conclui: “Existe igualmente incapacidade de organização dos seus aderentes, o que pode transformar o grupo em vigilantes justiceiros”.

Pelo mundo

Ficção alimenta-se de realidade canadiana
É uma das séries do momento na Netflix. “Don’t F***k with Cats” conta a história de um grupo que se uniu para encontrar um assassino de gatos que, afinal, escondia um crime ainda mais grave. O canadiano Luka Magnotta foi alvo de um alerta internacional da Interpol e detido em 2012. Foi condenado a prisão perpétua.

Gado roubado na Índia acaba em tragédia
No ano passado, uma multidão espancou até à morte três homens suspeitos de roubarem gado. Três “vigilantes” foram mais tarde detidos. Várias mensagens circularam no WhatsApp, denunciando os alegados ladrões, e os casos repetiram-se noutras cidades indianas. A rede social lançou mesmo uma campanha de publicidade nos jornais alertando para os riscos dessas informações falsas.

Sem tempo para investigar materiais no Porto
As imagens da demolição da casa no número 707 da Rua Marechal Saldanha, no Porto, deixaram em alerta os utilizadores das redes sociais. Azulejos Arte Nova, vitrais, portas, janelas e traves de boa madeira, tudo foi deitado ao lixo.