Os segredos dos consórcios de jornalistas que abalam o poder

Há centenas de consórcios de jornalistas que se dedicam à investigação de temas complexos

Há centenas de organizações de jornalistas de investigação espalhadas pelo Mundo que expõem esquemas de corrupção, abusos de poder, violação de direitos humanos. Analisam, questionam, escavam. A colaboração é mais importante do que a exclusividade. A união faz a força. E o impacto é global.

Luanda Leaks, 2020. A mulher mais rica de África é suspeita de gestão danosa, fraude fiscal e favorecimento do pai, ex-presidente de Angola, em negócios transnacionais. A origem da sua fortuna está a ser destapada por meios de comunicação social em todo o Mundo com base em mais de 715 mil documentos analisados por 120 jornalistas de 36 meios em 20 países. Panama Papers, 2016. Cerca de 11,5 milhões de ficheiros da Mossack Fonseca, sociedade de advogados do Panamá, revelam 214 mil offshores e destapam uma teia de corrupção e fuga aos impostos. Um ano de investigação, 378 jornalistas de 107 meios de comunicação em 77 países. Lux Leaks, 2014. Documentos de uma consultora internacional conduzem a detalhes de operações secretas de mais de 300 empresas que fugiram ao pagamento de impostos no Luxemburgo. O escândalo financeiro é revelado por 80 jornalistas de 36 países. Swiss Leaks, 2015. Milhares de ficheiros expõem um esquema de evasão fiscal em contas de mais de 100 mil clientes, a partir do banco britânico HSBC através da sua filial na Suíça. Mais de 130 jornalistas em 45 países desenrolam os fios da história. Todas estas fugas de informação foram analisadas pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), criado nos Estados Unidos. Uma rede de mais de 200 jornalistas de investigação de mais de 90 países.

As fugas de informação, como os documentos revelados por Julian Assange, são analisadas à lupa pelas organizações internacionais de jornalistas de investigação Foto: Felipe Trueba/EPA

Há mais parcerias jornalísticas que extravasam fronteiras e mais casos. Football Leaks, 2016. O consórcio de jornalistas EIC (European Investigative Collaborations) usa o nome do blogue de Rui Pinto, o “pirata informático” em prisão preventiva em Portugal, e publica segredos do futebol, violação de regras da UEFA, esquemas de evasão fiscal. Malta Files, 2017. O EIC torna público a forma como Malta é um paraíso fiscal. Há ainda o WikiLeaks do australiano Julian Assange, preso no Reino Unido, que publicou no seu blogue mais de dez milhões de documentos confidenciais sobre crimes de guerra, corrupção, violação de direitos humanos.

Luanda Leaks, o assunto do momento. Em setembro de 2019, Micael Pereira, jornalista do “Expresso”, passa dois dias na redação do jornal “Le Monde”, em Paris. Dezenas de jornalistas de vários países partilham ideias sobre o que encontraram nos mais de 715 mil documentos relativos a negócios de Isabel dos Santos – e que mais tarde se viria a saber que tinham sido fornecidos por Rui Pinto à PPLAAF, plataforma de proteção de denunciantes em África. Nessa altura, Luanda Leaks ainda não existia como nome. A operação havia sido lançada em segredo pelo ICIJ, a partir de Washington, em junho de 2019. Os jornalistas estão em contacto através de duas plataformas online, uma espécie de Facebook e de Google encriptados. “Uma boa parte do nosso tempo foi gasto a ler, analisar e cruzar documentação. E a escrever notas de investigação ou comentários às notas dos nossos colegas. Está longe de ser como nos livros do Tintin, em que um jovem jornalista e o seu cão descobrem as coisas mais extraordinárias envoltos em peripécias e cenários igualmente extraordinários”, conta o jornalista do “Expresso”, que estava em Atenas em reportagem quando recebeu um telefonema de Washington para se juntar à equipa que estava a ser montada. Foi uma luta contra o tempo. Mas havia empenho.

Rui Pinto, o “pirata informático”, em prisão preventiva em Portugal, terá disponiblizado mais de 715 mil documentos que foram o ponto de partida do Luanda Leaks Foto: Ferenc Isza/AFP

Antes do final de 2019, o “Expresso” e a SIC, uma equipa dos programas “Panorama” da BBC, e “Frontline” da PBS, uma jornalista holandesa e jornalistas de “The Guardian” e do “Süddeutsche Zeitung” estão em Luanda para complementar a pesquisa, cruzar dados, ouvir gente. Para contar a história do desalojamento na Areia Branca, língua de terra na frente marítima da capital angolana. Em junho de 2013, mais de três mil famílias foram retiradas à força do bairro por polícias e militares. Sem qualquer aviso. As casas foram demolidas num piscar de olhos, os que resistiram foram cercados e afastados com gás lacrimogénio e cassetetes. “Em poucas horas, as famílias foram enfiadas em autocarros e largadas nas ruas da cidade”, escreve Micael Pereira na reportagem publicada na revista do “Expresso”. Tornam-se uma comunidade sem-abrigo, 515 famílias vivem agora no Povoado em casas de chapa e madeira, esgotos a céu aberto, ao lado de uma lixeira, com vista para a Areia Branca.

Os jornalistas reviram documentos do avesso e relatam o envolvimento de Isabel dos Santos num projeto megalómano para a Areia Branca, que se queria semelhante à ilha artificial do Dubai em forma de palmeira. Isabel dos Santos nega qualquer responsabilidade na expulsão da comunidade da Areia Branca e vai processar o consórcio de jornalistas.

Os consórcios de jornalistas funcionam em paralelo com a indústria dos media. Micael Pereira, jornalista desde 1994, no “Expresso” há quase 14 anos, participou no Panama Papers, Bahamas Leaks, Paradise Papers, Offshore Leaks, membro do ICIJ e do EIC, garante que não há nenhum segredo. Tudo depende da relação que se vai criando entre jornalistas de investigação. É preciso criar as próprias circunstâncias. “O jornalismo de investigação é muito interessante quando se olha para trás e se vê que as coisas correram bem. E menos interessante quando correm mal.” Há decisões a tomar. “Qual o risco que os órgãos de comunicação social querem correr ao ter um jornalista sem publicar durante meses, atrás de uma história, e, no final, não ter nada?” E tempo é dinheiro. Há outras questões. “O problema destas investigações, quando elas estão a decorrer, é que é difícil de saber quando parar de gastar energia em certos detalhes e mudar a agulha para outro lado. Esse é um risco que os jornalistas de investigação correm. De poderem estar a perder tempo com coisas que depois não dão em nada. É preciso saber lidar com esses momentos de frustração, respirar fundo e continuar.”

Isabel dos Santos está no epicentro de notícias em todo o Mundo. A mulher mais rica de África teve várias contas penhoradas e bens arrestados no nosso país Foto: Fernando Velud/Público/AFP

Há um lado romântico no jornalismo de investigação e uma cultura de parceria que não é habitual. “Há muito esforço que tem a ver com essa partilha e que não se adquire de um dia para o outro. É uma cultura que se vai criando de entusiasmo e de confiança”, conta. É preciso vasculhar, vasculhar sempre. “Não há glamour, é trabalho só.”

Com o Luanda Leaks, Luís Garriapa, jornalista da SIC, participa pela primeira vez num consórcio de jornalistas. Não ficou com dúvidas. “Este tipo de colaboração terá um papel decisivo no futuro do jornalismo de investigação a grande escala e na capacidade de denunciar os cada vez mais obscuros e complexos casos de corrupção, lavagem de dinheiro e abusos de direitos humanos.” De outra forma seria impossível analisar tanta informação de muitos países e jurisdições, recolher mais provas, ouvir testemunhos, ir para o terreno, exercer o contraditório. Tudo em pouco mais de meio ano. A conjugação de esforços, a distribuição de tarefas, a constante troca de ideias, foram determinantes, segundo Luís Garriapa. “O trabalho em consórcio é também a prova de que, em nome de uma boa história e do interesse público, é possível ultrapassar o espírito individualista e de concorrência próprio do jornalismo e dos jornalistas”, sublinha.

Escrutinar poderes, sustentar democracias

Há centenas de consórcios de jornalistas que se dedicam à investigação de temas complexos, à análise de documentos e ficheiros intrincados que podem abalar estruturas de vários países. Cada um tem as suas características e idiossincrasias. Mas o foco é comum: analisar, investigar, espremer informações, ir ao terreno, confrontar fontes, informar. Em nome do interesse público. Doa a quem doer.

O ICIJ é uma organização sem fins lucrativos, com sede nos Estados Unidos, trabalha com uma pequena redação, uma rede global de 249 jornalistas de mais de 90 países que se juntam para “investigar as histórias mais importantes do Mundo”, e parcerias com mais de 100 meios de comunicação social (“Expresso”, SIC, BBC, “The New York Times”, “The Guardian”). As suas investigações já expuseram crimes internacionais, abusos de poder, esquemas de corrupção. O Panama Papers venceu o Pulitzer em 2017 e provocou demissões, prisões e mudanças políticas em dezenas de países. Vive de doações de leitores, de fundações, de mecenas (Barbara Streisand e Meryl Streep estão nessa lista). Começou como um projeto do Centro para a Integridade Pública, do qual se viria a tornar independente no início de 2017. Aceita currículos de jornalistas de todo o Mundo.

O ICIJ é uma das 182 organizações de jornalismo de investigação da Global Investigative Journalism Network (GIJN), rede global de consórcios internacionais, a maioria sem fins lucrativos, que apresenta os jornalistas de investigação como “as forças especiais” do jornalismo global. Agiliza contactos, fornece recursos, publica em vários idiomas, organiza conferências e workshops internacionais, faz o que está ao seu alcance para garantir o acesso a documentos públicos em todo o Mundo. Está sedeada nos Estados Unidos. Há ainda outras organizações que não são membros da GIJN, mas que têm peso. O EIC (European Investigative Collaborations) é um exemplo, conhecido pelos projetos de investigação Football Leaks e Malta Files. Começou como um grupo informal que evoluiu para uma associação com sede em Hamburgo, Alemanha. Jornalismo de investigação, sem fins lucrativos, centrado na forma como as estruturas de poder afetam as sociedades europeias. O “Expresso”, o alemão “Der Spiegel”, o italiano “L’Espresso”, o dinamarquês “Politiken” são membros.

A maioria dos consórcios de jornalistas de investigação não tem fins lucrativos e trabalha em rede Foto: Aziz Karimov

São centenas de profissionais em muitas geografias. O Centro de Investigação Jornalística faz investigações no Chile e coloca documentos e informações oficiais à disposição do público. Em Nova Iorque, a Democracy Now Produtions, com 24 anos de vida, é uma organização independente sem fins lucrativos, financiada pela sua audiência e fundações, de porta fechada a publicidade ou financiamento governamental. Todos os dias da semana, transmite pela internet o programa “Democracy Now!”, que chega a mais de 1 400 estações de rádio e televisão em todo o Mundo com reportagens, entrevistas e trabalhos de jornalismo de investigação.

No Brasil, a Agência Pública faz parte do ICIJ. É a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil, fundada em 2011, tem mais de 30 prémios e mais de 700 meios de comunicação social – como “El País”, “The Guardian” e “The Independent” – republicam os seus trabalhos. A Pública investiga a administração pública, impactos sociais e ambientais de empresas e suas práticas de corrupção, a transparência e equidade do poder judiciário, a violência contra populações vulneráveis na cidade e no campo. Colaborou no Panama Papers, Implant Files, e agora no Luanda Leaks. “Como o dinheiro desviado de Angola pelo governo corrupto veio parar na Paraíba” é o título de umas das suas peças.

“O jornalismo investigativo é uma das ferramentas essenciais para qualificar o debate democrático e, portanto, a própria democracia. Só um público informado pode interferir nos rumos do país, exigir políticas públicas afinadas com modelos democráticos e sustentáveis de crescimento, cobrar transparência dos governantes, denunciar corrupção, desvios e sobretudo violações dos direitos humanos e das garantias constitucionais”, diz à NM Marina Amaral, jornalista desde 1984, diretora da Pública. A agência começou com três jornalistas fundadoras, hoje tem 23 colaboradores (22 jornalistas e um gerente financeiro). A Pública vive de doações de fundações com total independência de conteúdo. “Não aceitamos ‘encomendas’ de temas, os projetos são escritos por nós e depois apresentados para potenciais doadores e ninguém tem acesso ao nosso conteúdo antes da publicação.” O número de fundações aumentou, o financiamento até há pouco exclusivamente internacional é agora também brasileiro, “onde a cultura de doações é ainda pouco desenvolvida.” “Também aumentamos a participação do público, transformando campanhas bianuais de crowdfunding para o financiamento recorrente que já conta com mais de 1 200 doadores mensais.” O objetivo, adianta, “é que esse financiamento do público seja cada vez maior, a ponto de eventualmente superar o das fundações”.

Público e privado, separar o trigo do joio

Trazer a público histórias que os poderes querem manter ocultos é o lado mais nobre do jornalismo para Joaquim Fidalgo, professor de Jornalismo na Universidade do Minho, doutorado em Ciências da Comunicação. “É o jornalismo a honrar os seus pergaminhos mais antigos.” É o trabalho dos consórcios de jornalistas. “A colaboração internacional, supranacional, é muito interessante, é um aspeto positivo”, comenta. O jornalismo que denuncia, e o faz bem, fundamentado, vigilante dos poderes, é um jornalismo relevante em termos públicos. O ICIJ é um exemplo. “São coisas de uma sofisticação técnica e tecnológica que acaba por implicar que haja muita competência e trabalho.”

Hélder Bastos, professor de Ciências da Comunicação, ex-jornalista, membro do Centro de Investigação Media e Jornalismo, vê nos consórcios de jornalistas uma boa resposta a vários problemas. Seguir histórias que jornalistas de um ou dois países dificilmente conseguiriam, pegar em grandes temas de corrupção, de criminalidade económico-financeira que não tem fronteiras. “É impensável um grupo de jornalistas de um só país investigar casos extremamente complexos, congregar esforços e talentos”, afirma. E o que vem a público tem muito valor em diferentes ângulos. “Uma utilidade extrema para os países que são afetados por este tipo de escândalos.” Há o escrutínio público também. “O jornalismo é um plano inseparável do conceito de democracia.”

João Paulo Batalha, presidente da associação cívica Integridade e Transparência (Transparency International Portugal), não tem dúvidas. O trabalho colaborativo dos consórcios de jornalistas é fundamental para a democracia, para escrutinar poderes, responder a necessidades sociais e até do próprio jornalismo na relação com os leitores, na gestão da escassez de meios e recursos, numa época em que se multiplicam canais de informação alternativos. Na sua opinião, há uma “grande sabedoria” no jornalismo de investigação, na troca de informação, partilha de fontes, questionar instituições, recolher pontos de vista. “É um jornalismo mais interventivo e com mais capacidade de investigação. Amplifica o que produz e apetrecha os jornais com dados de interesse público.” O que é necessário nas democracias que se querem sólidas. “O escrutínio jornalístico é absolutamente fundamental, o filtro é fundamental. O jornalismo tem de se apetrechar para ir atrás dessas histórias além das fronteiras.”

O promotor responsável pelo caso do Lava Jato, no Peru, Rafael Vela, chega ao Ministério Público Federal para fazer perguntas aos empresários envolvidos no processo Foto: Hedeson Alves/EPA

Os milhares de documentos do Luanda Leaks, supostamente obtidos por acesso indevido a sistemas informáticos, são provas ilegais que não podem ser usadas na investigação criminal. “A lógica da investigação jornalística e a lógica da investigação policial não são exatamente as mesmas”, repara Joaquim Fidalgo. Até que ponto é lícito ou ilícito trabalhar com base em documentos “roubados”? “Os documentos são um ponto de partida, não um ponto de chegada. Os consórcios de jornalistas não se restringem a receber documentos e a publicá-los, vão para o terreno”, responde.

O Luanda Leaks esteve para ser lançado a 13 de dezembro de 2019, mas havia problemas para resolver. “Havia pistas em aberto para as quais era preciso encontrar documentos-chave que não estavam incluídos na fuga de informação e era preciso identificar pessoas dispostas a falar. E ir atrás delas. Só assim seria possível ter histórias sólidas e com impacto global”, lembra Micael Pereira. O Luanda Leaks rebentou a 19 de janeiro deste ano e o jornalista do “Expresso” garante que foram seguidos critérios rigorosos de trabalho e tudo o que veio a público é de interesse público. “O que estão em causa nestas histórias são esquemas usados para um enriquecimento desproporcionado e que implicou sacrificar ainda mais um povo que sofre por falta de condições básicas de saúde, educação e habitação. Não há qualquer devassa da vida privada de ninguém. Mesmo em relação ao património escondido de Isabel dos Santos – sobre o qual nós publicámos -, o foco foi o enriquecimento de uma figura pública à custa de ser filha de uma pessoa que foi presidente da República durante quase 40 anos.”

Marina Amaral, da Pública, diz que não é difícil perceber o que é de interesse público. Há perguntas que têm de ser feitas. O público tem direito a essa informação? A privacidade da pessoa envolvida é violada? “O interesse público é o que separa o público do privado em jornalismo.” Há o exemplo do Vaza Jato. “As mensagens trocadas pelos procuradores e juízes selecionadas para as reportagens sempre foram aquelas diretamente ligadas com a Lava Jato, com a atividade profissional de juízes e procuradores. Não faria sentido vazar mensagens pessoais, trocadas entre conjuges ou mesmo relacionadas com a vida íntima de qualquer um dos personagens envolvidos no caso”, diz a diretora da Pública.

Hélder Bastos lembra que o jornalismo não é todo igual. “Há jornalismo e jornalismo. Há o jornalismo com ‘J’ grande que, de facto, trabalha para o interesse público com objetividade, que questiona, investiga e escava o que os poderes tentam esconder.” O interesse público é o que deve prevalecer. “O jornalista não pode fechar os olhos, tem de separar o trigo do joio, pesquisar o que se passa.”

Há notícias que se diluem na espuma dos dias, no frenesim da atualidade. E há trabalhos jornalísticos que perduram na História. Que ficam na História. E que, muito provavelmente, serão estudados, segundo Hélder Bastos, como “casos exemplares” nas escolas de jornalismo por todo o Mundo.